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Entre a dor e a escuta: como criei uma ferramenta web gratuita para dar voz a quem enfrenta desafios na fala ou na mobilidade

Otavio Melo - 18 jul 2025
Otavio Melo, fundador da Comunicar.
Otavio Melo - 18 jul 2025
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Eu nunca planejei criar algo voltado para a comunicação, nem para a educação. Na verdade, eu vinha de outro universo, com outros planos, outras rotas desenhadas na cabeça. 

Mas a vida tem um jeito curioso – e, muitas vezes, doloroso – de nos colocar em lugares que nunca imaginamos estar. E às vezes, ela faz isso através da dor.

Em outubro de 2023, meu pai sofreu um AVC. Foi grave. Ele perdeu a fala, a mobilidade e parte da capacidade de entender o mundo ao redor

De uma hora para outra, meu pai passou a viver preso dentro do próprio corpo, e isso é uma das coisas mais difíceis de ver. Nada te prepara para isso. Nem os laudos, nem os médicos, nem o tempo.

Os dias viraram uma mistura de silêncio, tentativas e frustração. Ele começou a fazer fisioterapia, fonoaudiologia, e aos poucos houve alguma melhora. Mas a fala nunca voltou. A mobilidade também ficou bastante limitada. 

O que mais doía, no meio de tudo isso, era vê-lo tentando se comunicar… e não conseguir. O olhar dele dizia tudo. Era como se gritasse sem som, preso em um mundo onde ninguém podia ouvi-lo 

A frustração era um peso diário, uma dor que transbordava até nos pequenos gestos, ou na ausência deles.

Foi a primeira vez na vida que me senti completamente impotente. E foi por amor, e também por desespero, que comecei a buscar alternativas. 

PARA AJUDAR O MEU PAI, CRIEI UM SITE QUE DÁ VOZ A QUEM ENFRENTA DESAFIOS NA FALA OU NA MOBILIDADE

Pesquisei por horas, madrugadas. Descobri algo chamado Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) — pranchas com blocos visuais que emitem sons e ajudam pessoas a se expressarem mesmo sem falar. 

Era um universo completamente novo para mim. Encontrei alguns aplicativos, testei, tentei adaptar. Mas nenhum funcionava bem para o caso do meu pai. 

Ele não conseguia clicar com precisão, esbarrava sem querer, não conseguia controlar os movimentos. Aquilo que deveria facilitar acabava frustrando ainda mais

Foi aí que a ideia do Comunicar começou a nascer. Não como um projeto. Não como uma empresa. Mas como uma necessidade, algo que eu tinha que fazer. 

Eu não sabia como, ou nem mesmo que ferramentas usar para isso, mas sabia que precisava ser feito. 

No início, era só para ele. Uma tentativa de devolver um mínimo de autonomia. Um gesto de cuidado, de quem só queria ajudar alguém a dizer: “Estou com sede”, “está doendo”, ou simplesmente “estou aqui” 

Cada ajuste que eu fazia no protótipo tinha um propósito real, quase artesanal: tornar possível o que a vida parecia ter tirado.

Hoje, o Comunicar é uma ferramenta web que não exige login, instalação ou qualquer tipo de pagamento: basta acessar o link e começar a usar. 

A plataforma utiliza pranchas inteligentes compostas por blocos interativos: ao clicar em um deles, o sistema reproduz o som correspondente e exibe, em destaque, a palavra acompanhada de um emoji 

Essa combinação de áudio e representação visual torna a comunicação mais acessível, especialmente para pessoas com dificuldades de fala, compreensão ou expressão. 

Além disso, o Comunicar conta com modos que utilizam inteligência adaptativa para ajustar automaticamente os blocos conforme a construção da frase, sugerindo conectivos e complementos que ajudam a manter a coerência e fluidez da comunicação.

FOI EMOCIONANTE VER O COMUNICAR SENDO USADO POR OUTROS PÚBLICOS, DE MANEIRA TRANSFORMADORA

Com o tempo, minha prima e sócia, Luana Melo, entrou na história. E isso mudou tudo. Com o olhar dela para gestão, estrutura e organização, conseguimos crescer. 

Começamos a apresentar a ferramenta para profissionais, cuidadores e terapeutas. 

E foi numa dessas trocas que tive uma das experiências mais marcantes de toda a jornada: vi uma fonoaudióloga usando o Comunicar com uma criança autista não verbal. Ela tocava os blocos, sorria, prestava atenção nos sons 

Era como se, diante de algo tão simples, surgisse um novo caminho de expressão. Algo que inicialmente não tinha sido criado com aquele objetivo estar sendo usado e sendo útil de verdade… Aquilo mexeu profundamente comigo.

Pouco tempo depois, uma mãe me disse: “Meu filho fica no celular o dia todo. Saber que existe algo dentro do próprio celular que ajuda no desenvolvimento dele… me emociona. Tenho usado o Comunicar com ele para destravar a fala”. Ela contou que antes o celular era só um refúgio e distração, e agora podia se tornar uma coisa útil e importante. 

São esses relatos que me fazem continuar. Porque cada pessoa que encontra no Comunicar uma forma de expressão carrega também sua própria história de luta, de silêncio, de tentativa 

E quando essas histórias se cruzam com a minha, tudo ganha sentido.

A COMUNICAÇÃO É UM DIREITO HUMANO BÁSICO: NINGUÉM DEVERIA TER QUE PAGAR PARA PODER DIZER O QUE SENTE

Fui entendendo que cada pessoa precisava de uma abordagem diferente. Um sistema único não seria suficiente. Por isso, novos modos surgiram. 

Um deles ajuda na construção de frases, outro oferece uma navegação mais dinâmica, com blocos coloridos pensados para chamar atenção e facilitar o uso — especialmente em contextos como o da infância. 

E tem também o Modo Guiado, que conduz o usuário com perguntas simples como “Quem?”, “O quê?”, “Como?”, e vai montando a frase junto com ele, passo a passo.

A inteligência artificial nesse caso não está ali como tecnologia de ponta, mas como um cuidado: ela adapta, conecta, dá sentido à frase final. Ajuda a organizar o pensamento, mesmo quando tudo parece confuso

O Comunicar não é só uma ferramenta. É um gesto. Uma mão estendida. Uma tentativa de devolver a alguém aquilo que é básico, essencial: a possibilidade de ser compreendido.

Hoje, ele é uma plataforma totalmente gratuita, e assim vai continuar sendo. Porque a comunicação é um direito humano básico. E ninguém deveria pagar para poder dizer o que sente, dizer o que precisa, dizer “sim” ou “não”.

APRENDI QUE ÀS VEZES A MELHOR FORMA DE LIDAR COM AS FRUSTRAÇÕES É AJUDANDO OUTRAS PESSOAS

Mas eu não quero parar aqui. Existem pessoas com a mobilidade completamente comprometida, que só conseguem movimentar a cabeça e, em casos ainda mais graves, apenas os olhos. 

Tenho estudado e trabalhado intensamente em alternativas que possam atender também esses cenários, para que elas consigam se comunicar sem precisar usar as mãos ou o toque. 

É desafiador, mas também urgente. Acredito que, com tudo o que aprendi até aqui, o Comunicar vai seguir evoluindo e tocando a vida de cada vez mais pessoas

Se eu pudesse compartilhar algum aprendizado com isso tudo, seria: A vida acontece onde quer que você esteja, quer você queira ou não. Então, ao invés de se desesperar porque as coisas saíram do controle, sinta o chão sob os seus pés, controle como você reage a essas adversidades e tente entender que às vezes a melhor forma de lidar com suas frustrações é ajudando outras pessoas. 

Ainda estamos só começando. Mas se, no meio de tudo isso, uma única pessoa conseguiu dizer o que sente, conseguiu se comunicar… então tudo já valeu a pena.

 

Otavio Melo, 27, é mineiro, designer gráfico, entusiasta do mundo da tecnologia e inteligência artificial e criador da ferramenta Comunicar.

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