Foi naquele tempo enclausurada e retomando velhos hábitos durante a quarentena da pandemia de Covid-19, no ano de 2020, que decidi voltar a estudar o movimento LGBT+ brasileiro.
Sempre tive uma vivência nos âmbitos de militância bem presente e ativa e, pensando a respeito do tema, cheguei no entendimento de que isso me levava para algo mais urgente: as políticas públicas, os problemas atuais que enfrentávamos, o que eu desejava mudar no mundo…
Esse tempo ocioso na pandemia, por outro lado, me permitia o novo: revisitar um passado que eu ainda não conhecia, e entender a história dos meus (e minhas) semelhantes.
Foi aí que me debrucei a estudar sobre a história LGBT+ brasileira, lendo estudos sobre o Brasil colônia, LGBTs indígenas, os diversos movimentos, as lutas, a própria ditadura.
E para estudar a comunidade, estudei o país em si (haja antropologia!).
A cada capítulo, de cada livro temático da história LGBT, uma vontade de chorar e desistir muito grande habitava o meu corpo. E nem era porque nossa história “foi muito difícil” ou porque “não foi fácil de ler”. E sim porque eu não me encontrava ali.
Que história era aquela, sobre mim, se eu não me via? Foi estudando a história LGBT que eu percebi que muito pouco existe das mulheres nela
Temos uma infinidade de detalhes, de riquezas de conteúdos sobre os homens gays e suas descobertas. Sobre as mulheres trans, talvez pela forma que tratavam o corpo como domínio público, também temos uma riqueza maior de material. Bissexual? Que é isso?! Lenda até hoje, praticamente. Homem trans? Era sapatão.
Fui entendendo que o registro da mulher lésbica era: estar na luta. A mulher, em geral, serve para duas coisas: servir (um homem/alguém) ou lutar.
Me vi diante de um misto de questões. “E essas mulheres das quais temos registros, elas não amavam? Elas são lésbicas e não tinham relacionamentos? Quem eram suas companheiras?”.
Foi assim, no meio desses questionamentos, que surgiu a necessidade de criar o Documentadas. Entendendo que até hoje não tínhamos um local de documentação e de fala sobre o amor entre mulheres.
E então, o .doc, como carinhosamente chamo, surgiu como uma forma artística e política de contar as histórias de amor dessas mulheres brasileiras que amam outras mulheres (lésbicas e bissexuais, cis e trans)
No começo fui questionada: “Um blog? Um projeto fotográfico? Uma exposição? Um livro?”.
Talvez nesse “lapso de ousadia” surgiu a resposta que vive até hoje: Documentadas nasceu enquanto uma plataforma. Lá existe a documentação, a história, mas não é um projeto com começo, meio e fim.
O .doc se dispõe a discutir o amor entre mulheres na historiografia lésbica e bi de uma forma que nunca foi feita, e para além disso, do legado que deixará nas próximas gerações
Também pretende mudar as coisas nesse mundo urgente/emergente que citei lá no começo dessa nossa conversa: as políticas públicas, os debates atuais, o que acontece no agora.
A plataforma se dispõe a oferecer um mapeamento da diversidade existente entre as mulheres documentadas, além de geração de emprego, apoio psicológico e também conectar mulheres através do acolhimento e da escuta.
Nesses dois anos de vida do projeto, o Documentadas já registrou mais de 260 mulheres, em dez estados brasileiros. Se me contassem isso lá em 2020, enquanto eu lia os livros, eu acreditaria, sabe? Acreditaria porque reconheço o caminho que percorro.
Venho de uma cidade no interior catarinense. Saí de casa ao completar 17 anos porque queria viver uma vida independente e, também, uma sexualidade independente numa cidade grande.
Não sentia representatividade no local onde morava, não me sentia representada nas ruas, nos espaços que frequentava, e também não sentia que pertencia àquele lugar
Hoje em dia, é uma grandiosidade imensa estar com o Documentadas, mostrando que os casais homoafetivos compostos por mulheres, nos interiores brasileiros e nas capitais, são formados por diferentes idades, raças, estilos, profissões, opiniões e diversidades.
Serve para que outras mulheres não se sintam como um dia eu já me senti: sozinha, sem imaginar que poderia ter uma companheira ou uma família. Me enxergando como uma pessoa estranha.
Colocar o .doc em prática, no entanto, é um grande desafio. O projeto sobrevive de forma independente desde o seu lançamento, em março de 2021.
Para manter o site no ar não custa tanto, além da anuidade, mas temos os gastos envolvendo publicidade, viagens até os casais documentados, hospedagens, transportes, custos com equipamentos etc.
Tudo fica mensalmente registrado no que chamo de “Prestação de Contas”: do que gastamos ao que recebemos de doações. Em alguns meses a gente realiza um PixDay — dia de doações para que o projeto se mantenha ativo — e os casais participantes também colaboram (assim, ganham as fotos registradas no processo).
Entender o desafio é pensar para além de pagar as contas do mês, entender que precisamos viver e não sobreviver. Queremos atingir muito mais de 260 mulheres em dez estados brasileiros
Não queremos só pagar as contas básicas. Se tivéssemos investimento, estaríamos em muitas cidades do interior, teríamos rodado o país conversando amplamente — com tempo para estar nesses lugares e disposição financeira –, atingindo outros casais que ainda não podemos alcançar. E essa é uma das nossas novas metas.
Manter o Documentadas vivo é entender o legado que deixamos para a história LGBT brasileira e mundial. As conquistas que temos em dois anos de projeto são fruto de muita dedicação para que ele aconteça.
E aqui, sem grandes romantizações, porque o corre é diário: é um grande desafio ser artista independente neste país e criar algo completamente diferente do que existe.
Entender o projeto enquanto um grande impactador na vida de muitas mulheres que voltam a acreditar, vivenciar e compartilhar o amor, as relações de afeto e de cuidado é fundamental para que ele siga existindo
Daqui para frente, o desafio é que ele se mantenha para além das doações, que novas fontes de financiamento existam: editais, patrocínios, exposições, livros (aí sim!), ampliação de equipe (não é fácil fazer um projeto desse tamanho sozinha!).
Outro desafio (e desejo) é que o .doc se popularize enquanto uma fonte de conhecimento e de diálogo sobre as mulheres que amam outras mulheres.
Fernanda Piccolo Huggentobler, 26, é catarinense e atualmente vive no Rio de Janeiro. Se dedica à fotografia há 11 anos. É pós-graduada em Diversidade, Acessibilidade e Inclusão e constrói sua militância política ativa falando sobre a presença das mulheres no movimento LGBT+ brasileiro.
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