Todo mundo vai morrer. Você sabe disso, né? Eu também.
A boa notícia é que, tudo dando certo, você e eu vamos viver bastante.
O outro lado dessa moeda é que, exatamente por isso, algumas coisas podem azedar lá na frente.
Perceba: quanto mais tempo de funcionamento impusermos ao motor, mais instável ele se tornará. Mais engasgos teremos que enfrentar.
É um paradoxo – grandemente inevitável. A partir de determinado ponto, quanto maior a quantidade de dias você tiver à disposição, menos você conseguirá aproveitá-los bem
A falência é uma equação infalível em organismos humanos depois que acumulam um certo número de décadas em atividade.
Não se trata de mau agouro. É um fato. É assim que se cumpre o ciclo da vida.
Muitos de nós conseguirão viver com saúde e bem-estar até o final. Alguns de nós irão embora dormindo – o mais suave dos fins. Que possa ser assim comigo e com você e com a imensa maioria das pessoas.
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Minha geração, que está entrando agora nos 50, viverá pelo menos mais 30 anos. (Nossos filhos viverão até os 90 – ou mais.)
Então consolidaremos o caminho que já está sendo trilhado pelos nossos pais – a vida como uma aventura que dura mais, como uma experiência que se estende por mais tempo, em comparação com as gerações que nos antecederam.
O ponto de atenção é aquele de sempre: uma estrada mais longa impõe um pedágio ao viajante – encarar os perigos que se concentram nas últimas curvas do caminho
De novo: pode ser que não aconteça comigo nem com você. E eu torço por isso. Mas os desfiladeiros estão lá.
Tem arritmia cardíaca, hipertensão, insuficiência renal. Tem AVC, câncer, diabetes. Tem doenças respiratórias. Tem Alzheimer, Parkinson, demência senil.
Enfim: para morrer, basta estar vivo. À medida que a idade aumenta, essa afirmação vai ganhando uma proximidade cruel.
Eis o que desejo para mim mesmo, para você e para todo mundo: uma vida que se estenda até o ponto em que ela tenha qualidade e que possa ser desfrutada com dignidade.
E nem um dia a mais.
Assim que essas condições desaparecerem para mim, rogo uma morte rápida e indolor
Faço questão de qualidade e de dignidade para viver.
E quero qualidade e dignidade na morte também.
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Esses dias estava fazendo aquele exercício – bobo – de escolher entre possíveis quadros de perda. O cenário para mim ficou mais ou menos assim:
Se perdesse o olfato, ou a gustação, certamente me ressentiria por não gozar mais dos prazeres da mesa da mesma forma. Ou por não usufruir dos perfumes do mundo. E eu sou um cara bem sensorial nesses dois flancos. Mas penso que essas diminuições estariam entre as que causariam o menor impacto em minha vida.
Se perdesse o movimento das pernas, acho que aprenderia a conviver com isso. Escolheria uma cadeira bacana, adaptaria meu carro, minha casa – e continuaria vivendo, buscando restabelecer minha mobilidade de outras formas.
Se perdesse a audição, lamentaria muitíssimo por não poder fruir da música do jeito que sempre fiz. (A música é um elemento muito importante em minha vida.) Assim como lamentaria não ter a experiência audiovisual completa do cinema. (Filmes também são elementos importantes em minha vida.) Trataria de aprender dois novos idiomas – Libras e a Linguagem de Sinais Americana – e a vida seguiria.
Se perdesse a fala, ficaria sem parte importante da minha capacidade de comunicação. Mas meu instrumento de expressão individual, e minha ferramenta profissional, sempre foram muito mais o teclado do que o microfone. Aprenderia aquelas duas línguas de sinais (há mais de 200 mundo afora!) e tocaria a vida.
Se perdesse a visão, bem, seria complicado. Aprenderia a ler e a escrever em Braille. Assistiria a filmes com o recurso da audiodescrição. Mas perderia minha janela para o mundo. O sentido que me é mais caro. A vida seguiria – com uma perda muito importante
Agora…
Se não conseguisse mais me movimentar sozinho, nem realizar atividades cotidianas, como comer ou tomar um copo d’água;
Se perdesse o controle dos esfíncteres ou não pudesse mais realizar minha própria higiene;
Se precisasse ficar preso a uma cama, com cânulas e sondas enfiados no corpo, ou conectado por fios a aparelhos;
Enfim: se eu perdesse minha independência, minha autonomia, minha privacidade;
E mais…
Se deixasse de saber quem sou, se perdesse minha memória e minha identidade, se não pudesse mais reconhecer as pessoas;
Se perdesse o acesso à linguagem, e não conseguisse mais me comunicar, e as palavras me escapassem, e não pudesse mais construir uma frase ou compreender uma ideia;
Se não conseguisse mais organizar o pensamento, raciocinar, aprender, formar uma opinião, discutir um tema, discordar, achar graça;
Se me visse preso a um corpo inválido, sem chance de recuperação, trancafiado dentro de um organismo inerte, tendo pela frente apenas o definhamento – e, pesadelo absoluto, se estivesse lúcido dentro desse casulo pavoroso;
Esse seria, sem a menor dúvida, o momento de ir embora.
Porque isso não é vida.
Vida com sofrimento não é vida.
Vida com dor não é vida.
Vida em desespero não é vida.
Outra vez: vida sem qualidade e sem dignidade não é vida. Não quero. Não me interessa.
Uma vida assim é pior do que a morte.
(Viver nessas condições é a pior das mortes.)
Quero uma vida longa – e ótima.
E quero uma boa morte – rápida, indolor e digna.
Quero ter o direito de escolher a hora de ir embora. De decidir sobre mim mesmo. De escolher meu próprio destino. Como uma liberdade individual básica – que não existe hoje no Brasil. Como um direito civil fundamental – que é negado aos brasileiros
A minha vida, e como vou vivê-la, é minha alçada – e de mais ninguém. A minha morte, e as condições em que ela vai acontecer, também.
Há uma dúzia de países no mundo que reconhecem essa prerrogativa do indivíduo – o Canadá, onde resido, felizmente é um deles.
A medicina evoluiu muito e já chegou ao ponto de poder manter um organismo vivo – com uma pessoa morta ali dentro – por tempo indeterminado.
Que a medicina também possa nos ajudar a ir embora. De modo legalizado, consciencioso e transparente. De modo humanizado, suave e misericordioso. Respeitando, acima de tudo, o direito de cada um à autodeterminação.
Porque morrer é inevitável. Já morrer sofrendo, sob tortura, em desespero, sem ter a quem recorrer, é coisa que cada um de nós deveria poder evitar em sua vida.
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Você tem interesse em saber mais da discussão sobre os direitos de fim de vida no Brasil e no mundo? Acesse o site boamorte.org.
Adriano Silva, 52, é jornalista, fundador da The Factory e publisher do Projeto Draft, do Future Health e de Net Zero. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
Luis Nuin e Ana Claudia Cruz já tinham dois whippets quando decidiram adotar seu primeiro vira-lata. Hoje, com 13 cães, ele conta como transformaram em sua missão de vida o acolhimento a cachorros doentes e esquecidos em abrigos superlotados.
Não basta ser feminista, é preciso ser antimachista: como a minha filha abriu meus olhos para o horror cotidiano do assédio na vida de meninas e mulheres – e a persistência grotesca do machismo estrutural.