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Automação x sensibilidade humana: o futuro do recrutamento com inteligência artificial

Giovanna Gregori Pinto - 22 out 2025 Giovanna Gregori Pinto, fundadora da People Leap.
Giovanna Gregori Pinto, fundadora da People Leap.
Giovanna Gregori Pinto - 22 out 2025
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Há poucos anos, falar em inteligência artificial no recrutamento parecia coisa de futuro distante. Hoje, é rotina. Softwares de triagem, plataformas de people analytics e ferramentas de automação já são tão comuns quanto planilhas e entrevistas.

Um estudo da DemandSage estima que o mercado global de recrutamento com IA movimentou 661 milhões de dólares em 2023 e deve ultrapassar 1,1 bilhão de dólares até 2030, crescendo 6,78% ao ano. E não é diferente no Brasil: segundo a pesquisa Panorama da IA no RH (Think Work, 2025), 78% dos profissionais de RH já utilizam alguma forma de IA no seu trabalho.

Mas os números, por si só, escondem a questão essencial: o que estamos realmente terceirizando para as máquinas? O entusiasmo pela eficiência corre o risco de nos fazer esquecer que recrutamento não é apenas filtragem de dados, é interpretação humana, julgamento ético e construção de vínculos

Quando delegamos parte desse processo à IA, não estamos apenas acelerando tarefas. Estamos redefinindo quem decide o que é talento, potencial e pertencimento.

As vantagens são inegáveis. A IA processa milhares de currículos em minutos, elimina redundâncias, melhora a experiência do candidato e, quando bem calibrada, pode reduzir vieses inconscientes. Ferramentas preditivas permitem mapear probabilidades de sucesso e identificar perfis que se encaixam em determinada cultura organizacional.

É um avanço significativo, mas a busca pela eficiência carrega um custo silencioso: a padronização excessiva. Quanto mais automatizado o processo, mais dependente ele se torna de critérios quantificáveis, e menos capaz de perceber nuances humanas. Perfis criativos, atípicos ou não convencionais correm o risco de desaparecer na lógica estatística. A tecnologia, se usada sem consciência crítica, transforma o que deveria ser diversidade em desvio.

Costuma-se dizer que a IA é “objetiva”. Isso é um mito confortável. Todo algoritmo reflete as escolhas (e os possíveis preconceitos) de quem o criou e dos dados que o alimentam

Se os históricos corporativos usados para treinar os modelos reproduzem desigualdades de gênero, raça ou idade, os resultados tenderão a perpetuar exatamente essas exclusões, apenas revestidas de legitimidade técnica

Além disso, a falta de transparência agrava o problema. Muitas empresas que utilizam sistemas automatizados sequer conseguem explicar por que um candidato foi aprovado ou rejeitado. Quando a decisão é do algoritmo, quem é responsável? O gestor? O fornecedor do software? O RH? Essa zona cinzenta cria uma nova forma de opacidade corporativa: a terceirização da responsabilidade ética.

Usar IA em recrutamento não é apenas uma decisão técnica, é um ato político. Ao automatizar parte da escolha de quem entra ou não em uma organização, as empresas transferem poder decisório para sistemas que funcionam como caixas-pretas. Essa “governança algorítmica” redefine a própria noção de meritocracia: quem controla o código controla o acesso

Os candidatos, por sua vez, tornam-se sujeitos avaliados por critérios invisíveis, enquanto os empregadores dependem de lógicas que muitas vezes não dominam. O que antes era uma decisão baseada em contexto e discernimento humano se transforma em um cálculo probabilístico. E, quando esse cálculo erra, e ele inevitavelmente erra, ninguém sabe a quem cobrar.

Por trás da promessa de objetividade, a IA impõe novos valores: o que conta como “bom perfil”, “fit cultural” ou “potencial de sucesso”. Treinada com dados históricos, ela tende a perpetuar o passado em vez de transformá-lo. O verdadeiro desafio, portanto, não é técnico, mas ético e político: criar mecanismos de auditoria, explicabilidade e contestação que devolvam às pessoas o direito de compreender e questionar as decisões que moldam suas trajetórias profissionais.

Nada disso significa rejeitar a tecnologia. A IA é, sim, uma aliada poderosa, desde que usada com propósito e vigilância crítica. Ela pode liberar tempo, reduzir vieses, ampliar o alcance de recrutamento e gerar insights valiosos. O erro está em tratá-la como oráculo

Segundo a pesquisa AI in Hiring 2025, da Insight Global, 93% dos gestores reconhecem que a presença humana continua indispensável. E é fácil entender por quê: nenhuma máquina, por mais sofisticada, compreende ambição, medo, potencial ou caráter da forma como um ser humano é capaz. A sensibilidade continua sendo o diferencial competitivo que nenhum algoritmo consegue replicar.

O futuro do recrutamento não se resume a equilibrar automação e sensibilidade. Trata-se de decidir quais valores queremos codificar. Se usarmos IA apenas para acelerar o que já fazemos, perpetuaremos as mesmas desigualdades em alta velocidade. Se, ao contrário, a utilizarmos como espelho crítico para questionar nossos próprios vieses e revisar nossas práticas, ela pode se tornar um vetor real de inclusão e justiça organizacional.

Em última instância, a questão não é se a IA substituirá o olhar humano, mas se nós, humanos, teremos coragem de continuar olhando, com empatia, senso crítico e responsabilidade, para as pessoas por trás dos dados.

 

Graduada em psicologia pela PUC-Campinas, com MBA em gerenciamento de projetos pela FGV, Giovanna Gregori Pinto é fundadora da People Leap.

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