• LOGO_DRAFTERS_NEGATIVO
  • VBT_LOGO_NEGATIVO
  • Logo

“É um projeto caro, trabalhoso, sem apoio, mas a cada transformação das minhas alunas, eu renovo a minha fé e encaro a labuta”

Eva Mota - 19 dez 2025 Eva Mota, jornalista e instrutora de marcenaria para mulheres (foto: Filipe Redondo).
Eva Mota, jornalista e instrutora de marcenaria para mulheres (foto: Filipe Redondo).
Eva Mota - 19 dez 2025
COMPARTILHAR

Mainha conta uma história curiosa. A primeira palavra que falei na vida não foi a esperada. Entre a expectativa, encantamento e noites mal dormidas, os dois aguardavam o bom e velho “mamã”, “papá” ou qualquer mistura de letras que derretem os ouvidos das pessoas genitoras. Mas eu soltei um “verde” e os dois custaram a entender que era mesmo verde, a cor. 

Juraram que tinha algum problema médico, logo mais seria chamada de “E.Tesquisita” pela irmã mais velha, mas a única constatação era que, de tanto meu avô materno me pegar no colo e defender que “verde era a cor mais bonita”, meu cérebro miúdo deve ter capturado a palavra. 

Acho que é uma boa forma de começar essa história que já adianto o final: a criatividade seria minha guia e passaria a vida buscando novas opções para o que já existe. Seja para um “gugudadá” ou um modelo de negócio. Prazer, Eva.

Nasci Eveline Alves Mota em Jequié. No Sudeste da Bahia, entre a Caatinga e Mata Atlântica, a pequena Jequié é a terra de um sol para cada um, da mochila gigante, onde o velho Antônio Carlos Magalhães caiu do palanque e de filhos fora da curva como Waly Salomão e Zéu Britto 

Até os 18 anos vivi nela e passei boa parte desse tempo na periferia onde painho e mainha também nasceram. Lidaram com todas as durezas desta condição que eu e minha irmã também vimos – mas tivemos uma infância digna. 

Estudei piano dos 7 aos 14 anos, violão e voz. Isso faria diferença quando estivesse cara a cara com a decisão de escolher uma profissão. 

O gosto por imagens, móveis ou estáticas também teria uma fonte: todo final de ano painho reunia as duas famílias, muitas outras do bairro e fazia uma grande festa de ano novo. Alugava uma câmera VHS gigante pra registrar a noite, motivo de briga entre a criançada que queria registrar em panorâmicas de fazer vomitar, seus olhares. Eu era uma delas.

Crescer nos interiores do Brasil, ao passo que faz a gente ter nossa origem como norte e fonte de originalidade, também me tirou o acesso a muita coisa que só quando adulta pude ter. Só aos 20 anos fui a um teatro ver uma peça, a um cinema, viajar pra capital do meu estado ou de outro. Daí viriam a minha curiosidade e vontade de expansão

Não escapei à socialização feminina. Tive uma criação machista, para casar, ter filhos, ter um emprego formal e estável. Compreensível até um ponto. Quem nasce na pobreza e consegue sair dela, faz de tudo para não voltar. Mas a socialização falhou comigo. Ainda bem.

ENGATEI CARREIRA NA TELEVISÃO, MAS NÃO ESTAVA DISPOSTA A FAZER ALGUNS “JOGOS” COMUNS NO JORNALISMO

Terminei o segundo grau e fui prestar vestibular. Direito, odonto, farmácia, fisioterapia e risos. Perdi em tudo. Fui fazer cursinho preparatório. Um ano depois estava decidida: jornalismo. Tudo a ver comigo. Amava ler, escrever, sempre fui boa em ouvir e concatenava ideias rapidamente.

Adorava usar minha voz, o mundo das palavras, mas também dos sons e imagens. Aulas de piano e panorâmicas de “fazer vomitar”, certo? Aos 19 anos, em julho de 2003 entrei para a Universidade do Sudoeste da Bahia, campus de Vitória da Conquista. Dois anos depois, estudante de telejornalismo no quinto semestre do curso, passaria no teste feito pela professora com outras três alunas.

Teste de fogo: cobrir ao vivo o Festival de Música da Bahia transmitido para todo estado de lá mesmo do interior. Passei no teste e fui a primeira apresentadora do jornal da Tv Universitária, parceira da TVE de Salvador e mais tarde, afiliada da TV Brasil

Depois daí assumi a reportagem e digo que essa função me explicou o mundo. Ampliou meu senso de humanidade, conhecimento e reafirmou minhas bandeiras. 

Me formei em 2007 e fui chamada para compor a equipe de produção da afiliada da Rede Globo. Esperei aparecer uma vaga na reportagem. Voltei a usar minha voz, palavras e imagens para contar centenas de histórias ao longo dos anos seguintes. 

Amava a minha função. Tudo que fui até ali me levou a ela e tracei uma trajetória de esforço e dedicação. E era muito boa, modéstia às favas 

Tentei me especializar em Jornalismo Cultural, mas as pequenas afiliadas não davam a opção de trabalhar por editorias. Eu era muito crítica, não fazia determinados “jogos” comuns do jornalismo. E logo o assédio moral e sexual virou motivo de luta dentro das empresas. 

A RAIVA PODE SER UM MOTOR: POR QUE O MUNDO PRECISA DA RAIVA FEMININA BEM CANALIZADA

Trabalhei no jornalismo regional até 2011. Entrei no estadual e nacional com contribuições algumas vezes. Na reta final ainda chefiei a reportagem da Record. 

Nesse mesmo ano pedi demissão depois de muitos desgastes. Desejava trabalhar para mim mesma, mas sem noção nenhuma de como faria isso. Que ousadia de uma não herdeira saída da periferia criar a sua própria forma de trabalhar, pensava 

A primeira opção seria, claro, continuar na Comunicação. E em 2013, depois de me formar em Design de Interiores num curso técnico superior, criei um dos primeiros blogs de decoração Faça-Você-Mesmo da Bahia. 

Reunia tudo que sempre fiz e as habilidades mais recentes com design. Escrevia meus textos, entrevistas com outras blogueiras, newsletter e o blog me mostrou um horizonte: dava para me comunicar e ter meu trabalho visto por outras pessoas de todo país. 

O interesse por marcenaria surge aí. Desenhar e projetar o mobiliário das pessoas clientes que me contratavam, me fazia viver dentro das marcenarias e comecei a desenhar meus próprios móveis e objetos.

A raiva bem canalizada sempre me foi um motor. E acho mesmo que o mundo precisa da raiva feminina. A insatisfação constante com o que estava posto também. 

Em uma tarde dentro da marcenaria que sempre pegava os projetos de minhas clientes, perguntei ao funcionário sobre a instalação de um tipo específico de dobradiça. Em troca da informação, ele sugeriu favores sexuais. E esse foi o exato momento que pensei: precisa existir um espaço desse só para mim

Comprei meu primeiro kit de ferramentas, o trio indispensável formado por uma serra tico-tico, uma lixadeira orbital e uma furadeira/parafusadeira para madeira. 

Pela necessidade de me especializar consegui me inscrever no único curso que encontrei em toda Bahia, um de móveis planejados em MDF no Senai Dendezeiros em Salvador. Morei por três meses na capital e embora não fosse o que queria, era o que podia ter acesso. 

COM EQUIPAMENTOS SIMPLES, CORAGEM E CRIATIVIDADE, DEI INÍCIO À OFICINA DE MARCENARIA PARA MULHERES

Não pararia mais de, como brinco, comer pó de serra. Trabalhava criando pequenos móveis dentro do nosso apartamento de 53m². Forrava toda sala com lençóis velhos e danava a cortar e lixar madeira. Pessoas vizinhas: peço desculpas até hoje… 

Compartilhava o que fazia nas redes e os pedidos das amigas brotavam, não fiz uma vírgula para ninguém, mas me propus a ensiná-las. 

Eis que dia 16 de dezembro de 2017, nos fundos de uma escola de teatro emprestada por uma amiga, reuni seis mulheres, meus materiais, madeiras parceladas no cartão, flores nas bancadas e uma vontade enorme de criar junto com elas. Sejam móveis ou uma nova história 

Nascia a Oficina de Introdução à Marcenaria para Mulheres. Abria turma todos os meses e nos primeiros seis, só prejuízo. 

As oficinas refletiam a vida de uma pessoa como eu. Eu não tinha uma marcenaria, não tinha grandes ferramentas, só tinha poucas máquinas simples, bancadas dobráveis, um formato itinerante e adaptável. O coração da criatividade, fazer muito com muito pouco. 

Meses depois uma madeireira liderada por uma mulher topou doar as tábuas de pínus e o Senac de Vitória da Conquista cedeu um espaço para as aulas. Foram três anos assim. Fui desenvolvendo métodos próprios, dominando os processos e lidando com as alunas

Um pequeno público de Salvador começou a se formar e comecei a mobilização para viajar oito horas de carro todos os meses se fechasse turma por lá. Dei a oficina por dois anos, montava três turmas de vez e pegava a estrada sempre que mulheres interessadas surgiam. 

VINTE E OITO HORAS DE ÔNIBUS E DOZE CAIXAS DE MUDANÇA DEPOIS, ESCOLHI SÃO PAULO COMO MEU NOVO LAR

Mas meu desejo de expansão não se limitava mais à capital do meu estado. Pensei em São Paulo. 

O caminho já tinha sido aberto com a primeira mulher das duas famílias a fazer um curso superior, minha tia Sandra. Em 2013, tinha começado um movimento pendular com São Paulo. E no final de 2018 vim fazer meu primeiro curso de marcenaria, com outra mulher.

Passei dias morando com tia Sandra na Zona Norte. Reconheci o território com o propósito de morar temporariamente para estudar marcenaria. Dia dois de fevereiro de 2019, Dia de Iemanjá, chegava em São Paulo com cursos já pagos e com a ajuda de painho para o aluguel: o dinheiro da venda de uma vaca 

Ao final dos três meses, tomei a decisão de fazer um grande movimento. Mudaria geograficamente, mas viveria lutos, renúncias profundas, estranhamentos, encantamentos, dificuldades e a certeza de que o passo dado era realmente o que queria. Voltei para Bahia, arrumei minhas coisas. 

Vinte e oito horas de ônibus depois e doze caixas de mudança, escolhi São Paulo como lar.

Encontrei escolas para dar minhas aulas, estudar. As oficinas ganharam corpo, espaços profissionais e desabrochei. Senti que elevei o nível e isso me exigia ainda mais estudo. Entendi que a ideia era pioneira mesmo pra São Paulo 

E a partir do público que construí com a comunicação digital e novas redes que fui tecendo, as aulas foram acontecendo. Fazia consultorias e projetos online e continuei o trabalho com comunicação com freelas e parcerias publicitárias. 

Desenvolvi meus três eixos de atuação. Comunicação, Design e Educação botariam minhas ideias no mundo e feijão no meu prato. Diferente de quase todo mundo da Bahia que conheço e migra para São Paulo com propostas de trabalho definidas, promoções, eu vim abrir e criar meu próprio caminho. 

E hoje, oito anos depois, não me arrependo. Estou no lugar que realmente queria, apesar de todas as contradições da cidade mais populosa das Américas. 

A MARCENARIA ME LEVOU VOLTA À TV POR MEIO DE UM REALITY SHOW TRANSMITIDO PARA MAIS DE 50 PAÍSES

A marcenaria levaria meu trabalho longe, até a Ilha de Guam, por exemplo. Dá uma olhada na região do Oceano Pacífico que você acha. É que consegui fazer a versão online das oficinas na maior plataforma de cursos online do mundo e ele chegou a outros 53 países e a mais de duas mil pessoas. 

A marcenaria também me colocaria de volta, anos depois, na televisão em 2020. Fui chamada para um teste durante a pandemia, para um novo reality de decoração do Discovery Home & Health Brasil. Passei. 

Durante dois anos e duas temporadas, o “Você Renova” me fez reunir todas as minhas habilidades para apresentar em rede nacional, projetar para famílias que meteriam a mão na massa e executavam meus projetos criativos e econômicos, enquanto eu, da oficina criava uma peça de marcenaria para cada episódio 

Cinco anos depois da estreia, o programa segue sendo visto por toda América Latina e parte da Central em reprises intermináveis que só o povo lá de casa tem paciência pra assistir e decorar cada um. 

TRACEI CAMINHOS CONTRÁRIOS AO QUE PLANEJARAM PARA MIM E HOJE LEVO MEU CASAMENTO NA PONTE AÉREA

As oficinas presenciais completaram oito anos agora em dezembro. Noventa turmas e mil e poucas mulheres introduzidas na técnica. Várias delas passaram a trabalhar com madeira. 

Algumas viraram grandes marceneiras, designers de mobiliário expondo em feiras renomadas de São Paulo, outras se formaram em Engenharia Florestal e também dão aulas. Muitas usaram as nove horas de oficina como renovação, como um novo momento de vida e assumiram como um hobby que devolve a autonomia e liberdade.

É um projeto difícil, caro, trabalhoso, sem apoio ou parcerias publicitárias, mas a cada transformação delas, renovo minha fé e encaro a labuta. 

Tornar o negócio 100% sustentável ainda não foi possível, nem todo mês fecho turma, mas novas tentativas me aguardam em 2026. A criação do módulo dois para a comunidade criada na Introdução e alguns cursos em parceria são algumas delas. 

Saber que criei um modelo de negócio que oferece uma formação para mulheres com segurança, acolhimento e leveza é uma grande alegria e uma maneira de exercer meu feminismo. Contribuir para um mundo mais equânime e justo para nós, onde uma pergunta não valha um favor sexual, é a minha microrrevolução

Criar novas formas para o aprendizado de marcenaria e chegar aos mesmos resultados que já existem, de uma forma confortável, não só é possível como é muito mais gostoso.

Não tive filhos, saí de Jequié e meu casamento é por ponte aérea. Meu marido é um aliado massa que fica lá na Bahia e eu aqui em São Paulo. 

Tracei outros caminhos contrários aos que planejaram para mim. Levo autonomia muito a sério. Sempre que posso contar minha história, me orgulho da trajetória improvável. Ainda não é comum pessoas saindo dos interiores do nosso país e ter seus trabalhos se espalhando por aí. 

Tem um poema que corre a internet há anos sem autoria definida. Diz “Recorda que és terra: conecta, constrói e entrega”. Me vejo nele. Conecto ideias por meio das minhas palavras, imagem e voz. Construo pontes entre o aprendizado e dezenas de mulheres. 

Entrego sim a possibilidade de novas formas de viver. Assim como projetos de decoração para novos lares e suas paredes pintadas. De verde. Claro.

 

Eva Mota é jornalista, designer e, desde 2017, instrutora de marcenaria para mulheres.

COMPARTILHAR

Confira Também: