Esta é a produtora Cavalo Marinho: cinema de quebrada para ir muito além da quebrada

Isabela Mena - 4 nov 2014
Thais e Gilberto, no dia da exibição do filme Graffiti Dança no MIS, em 2013
Isabela Mena - 4 nov 2014
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Viver só de cinema é o sonho de muita gente que tem uma produtora de audiovisual no Brasil. No caso da Cavalo Marinho, de Thais Scabio, 37, e Gilberto Caetano, 35, transformar isso em realidade era um desafio ainda maior, pois dependia de diminuir a distância entre o cinema e quem nasce na periferia das grandes cidades brasileiras. Localizada em Diadema, região metropolitana de São Paulo, a Cavalo Marinho fez da dificuldade a sua força, e se especializou em filmes institucionais e documentários de baixo custo. Mais do que isso, eles tomaram como missão do projeto levar a cultura do cinema exatamente às regiões menos favorecidas de São Paulo. Assim, ganharam prêmios, visibilidade, e estão conseguindo tornar o negócio financeiramente sustentável. Daria um filme.

Gilberto e Thais se conheceram em 2001, produzindo curta-metragens no Núcleo de Cinema e Vídeo Com-Olhar, em Diadema, onde ele mora (ela mora em Cidade Júlia, na divisa com São Paulo). Começaram a namorar. No mesmo ano, ela começou a estudar cinema na Universidade Santo Amaro, graças a um sistema de cotas da Educafro ainda não oficializado por lei — durante três do quatro anos da graduação, ela teve de trabalhar na secretaria da faculdade como contrapartida.

Dentre os vários filmes que fizeram juntos, o curta Como Declamar Drummond, com direção dela e roteiro dele, trouxe o convite para que estudassem na Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André. Dessas aulas, surgiu o investimento inicial da Cavalo Marinho, em 2005: três mil reais ganhos com o filme Comportamento Kamizake, que levou o prêmio principal na Mostra de Artes e Cultura de Diadema. Selecionado para o Mapa Cultural Paulista (programa de fomento do governo estadual), ficou entre os cinco melhores filmes do Estado de São Paulo.

“Nosso diferencial é o trabalho audiovisual caminhando junto com a responsabilidade social”, diz Gilberto.

O dinheiro foi usado para a compra de um computador de segunda mão e, assim, nascia a Cavalo Marinho. “Começamos fazendo trabalhos de edição porque era a demanda do mercado. As pessoas conseguiam facilmente uma câmera, mas não quem editasse”, conta Thais. Durante três anos eles dividiram o tempo entre a produtora e trabalhos paralelos, para conseguirem pagar as contas. Thais deu oficinas e aulas, Gilberto foi trabalhar com telemarketing. Todo dinheiro ganho foi reinvestido.

“O crescimento da produtora nesse tempo foi pequeno, por volta de 20% ao ano. Parece um bom resultado, mas em números reais dá até vergonha”, diz Gilberto. Nessa época, também, eles fizeram um outro curta, “69”, sobre sexualidade na terceira idade. O filme foi assistido por um funcionário da Secretaria de Saúde de São Paulo, que se interessou em comprá-lo para veicular nos Centros de Referência de DST e Aids do Estado.

Teoria na prática: DIY é o lema da Cavalo Marinho. Essa imagem, Thais usou no Facebook para convocar o público para uma das exibições da produtora

Teoria na prática, é este o lema da Cavalo Marinho.

Feito com mil reais, foi o primeiro job de cinema da produtora e rendeu pouco dinheiro (foram vendidas 100 cópias a 15 reais cada) mas acabou colocando a Cavalo Marinho em um nicho especializado. A própria Secretaria de Saúde contratou a produtora para dar oficinas de cinema a idosos e outras Secretarias, como Cultura e Educação, também viraram clientes. “Nos especializamos em trabalhos na periferia já que, na época, outras produtoras não faziam”, fala Thais.

OFICINAS CONTRA O PRECONCEITO

O grande salto no orçamento da Cavalo Marinho aconteceu em 2009, quando eles criaram o JAMAC Cinema Digital, projeto de oficinas de cinema dentro de uma comunidade do Jardim Miriam e foram patrocinados, até 2011, pelo Centro Cultural da Espanha. No segundo ano, o valor do patrocínio dobrou (chegando a 60 mil reais), tamanho o sucesso das oficinas.

“Percebíamos que nas faculdades as aulas eram chamadas de cinema digital mas na periferia falava-se em vídeo, mesmo que a filmadora fosse idêntica”

Thais prossegue: “Criamos uma metodologia que unia nossa expertise com oficinas no Núcleo, passando por Paulo Freire e minha experiência no magistério”.

Em 2012, o JAMAC Cinema Digital foi um dos dez contemplados — levou 20 mil reais — entre projetos do Brasil todo, pelo prêmio de Economia Criativa do Ministério da Cultura. Também foi selecionado como Ponto de Cultura, programa Ministério da Cultura que garantiu mais três anos de oficinas. E de grana.

Até o ano de 2010, quando conseguiram alugar uma sala no centro de Diadema e contratar um estagiário, tudo o que ganharam foi investido na compra de equipamento. A partir daí, o faturamento cresceu — chegou a 110 mil reais em 2013 e a previsão é de 150 mil reais este ano —, permitindo que finalmente eles se dedicassem integramente à Cavalo Marinho.

Oficina de animação em 2D

Oficina de animação em 2D

Isso significa ministrar oficinas, fazer cinema e produzir documentários institucionais e de baixo custo. “As empresas que nos procuram têm pouco dinheiro e precisamos ser bastante criativos. Só não fazemos casamento e aniversário porque não gostamos, e não fazemos publicidade porque não conseguimos entrar no meio, que é muito fechado “, diz a cineasta.

CINEMA DE QUEBRADA, PARA IR ALÉM DA QUEBRADA

Também arrumam tempo para tocar o Mascate Cine Clube, um projeto de cinema itinerante e gratuito, criado no Núcleo Com-Olhar em 2004, para comunidades carentes. A primeira sessão foi projetada em uma lona de caminhão emprestada por um amigo, assim como projetor e som.

Continuou mambembe, se expandindo de Diadema para São Paulo, até que foi apresentado à Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo e recebeu apoio do programa de fomento VAI (Valorização de Iniciativas Culturais). Este ano, começou a fazer exibições em 3D e também fora de Diadema.

“Uma vez, o som não funcionou. Eu ia cancelar a exibição e uma menina gritou para que continuasse só com a imagem, porque ela nunca tinha ido ao cinema. Contei a história enquanto o filme era projetado e isso me marcou para sempre”, lembra Thais.

O Mascate acontece quinzenalmente e em parceria com líderes de comunidades que sugerem, para a curadoria dos filmes, temas de interesse local – há um microfone aberto no fim de cada exibição.

São priorizados filmes nacionais e um tipo de cinema que Thais chama “de quebrada”. “Quando começamos, postei na página do Facebook: ‘Se você acha que seu filme é cinema de quebrada, manda pra gente’. E vi que as pessoas consideravam quebrada lugares esquecidos pelo poder público, mesmo dentro de São Paulo, como os cortiços”, diz ela.

Alunos do projeto JAMAC em visita, com familiares, ao Anima Mundi em 2011

Alunos do projeto JAMAC em visita, com familiares, ao Anima Mundi em 2011

O curta Graffiti Dança, feito em stop motion, foi a produção da Cavalo Marinho que deu mais retorno: foi exibido no MIS (Museu da Imagem e do Som), ganhou o prêmio de Melhor Curta Brasileiro no Festival Anima Mundi de 2013 e deu mais visibilidade à Thais, que foi convidada para fazer a curadoria da II Mostra de Cinema da Quebrada do Cinusp, da Universidade de São Paulo.

Uma temática recorrente no trabalho da cineasta é o feminino. Seu primeiro filme, A Melhor Face do Espelho (fez roteiro e direção), trata da forma como as mulheres se relacionam com o corpo. Já Imagem e Mulher, documentário de Maristela Bizarro com produção da Cavalo Marinho, rendeu uma parceria com a WIFT (Women in Film and Television), associação que apoia, incentiva e divulga o papel da mulher no cinema e da qual Maristela é diretora executiva.

Agora, a produtora está fase de captação do seu primeiro longa, baseado na história real de um triatleta que sofre de uma doença degenerativa. Thais e Gilberto farão juntos a produção executiva.

As funções podem variar de acordo com o projeto: ela gosta de produzir e ele, de roteiro e edição. “É um bom casamento”, diz a cineasta. E, por enquanto, o único dos namo-sócios (como se definem) do projeto. “A sociedade na Cavalo Marinho já é um casamento, temos testemunha, contrato e até filhos, que são os nossos filmes. A gente planeja, faz e depois que solta para o mundo fica torcendo pelo sucesso deles.”

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