A arte de envelhecer sem se tornar um velho

Adriano Silva - 4 jun 2021
Cena de "Up – Altas Aventuras", animação produzida pela Pixar e lançada pela Disney, de 2009.
Adriano Silva - 4 jun 2021
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Quando virei pai, aos 34, experimentei uma troca de papeis importante em minha vida.

Deixei em definitivo de ser o jovem promissor para virar o adulto estabelecido. Deixei de ser o mais novo na sala. Deixei de ser filho, solto na vida, para virar pai, amarrado a um cinturão de responsabilidades.

Minha voz ganhou peso, e minhas ações, consequência. (Ao menos para mim mesmo. O que já gera um impacto e tanto no jeito da gente levar a vida.) 

Ao longo da década seguinte, os anos 10, quando vivi meus 40 anos, essa foi a arena em que lidei.

Esse cenário trouxe novidades para mim – mais sensibilidade ao risco, um desejo de segurança e estabilidade, menos tranquilidade e descompromisso diante das mudanças que foram se apresentando pelo caminho e das várias incertezas da existência 

Eu amadurecia – e perdia um tanto de leveza e liberdade.

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Ainda assim, o foco estava em mim. Aquela transformação trazida pela paternidade não me tirava do protagonismo. Só mexia com as características do personagem que eu encarnava. 

Eu continuava no proscênio da minha vida – ainda que com outro tipo de expectativas, com mais preocupações em relação ao presente e mais ansiedades em relação ao futuro.

Agora, nessa virada para a década de 20, com 50 anos recém-feitos, uma nova mudança de persona se apresenta para mim.

Não vou chamar de crise de meia-idade, porque não estou exatamente em crise. Nem vou chamar de segunda crise de meia-idade, uma vez que as mudanças em curso são muito diferentes das que vivi há dez ou quinze anos.

Aos 40, eu estava pressionado pelo papel de provedor. Estava, talvez, no ápice da energia que podia colocar na carreira e em minha capacidade produtiva 

Era o momento não apenas de garantir meios de entregar conforto e segurança à minha família, mas também de começar a construir formas de assegurar uma velhice tranquila e digna. 

Eu tinha que ter para gastar no presente. E tinha que guardar para o futuro.

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Aos 50, o redemoinho se apresenta com outras feições. 

Basicamente, sinto meu protagonismo arrefecer. Estou me tornando menos necessário. Menos coisas dependem diretamente de mim 

Isso me tira um bocado de peso dos ombros – o que é ótimo. Isso me afasta um pouco também do centro dos processos de que participo. 

Além de alívio, esse deslocamento produz uma sensação esquisita, que ainda não sei avaliar bem, de ser cada vez mais periférico, coadjuvante, não-essencial.

Para quem sempre esteve ao volante do carro, com o pé no acelerador, essa é uma realidade nova.

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Imagino que uma das alavancas desse sentimento seja acionada pelo fato de que meus filhos avançam celeremente em direção à vida adulta. 

O papel de pai, que me impactou grandemente há 15 anos, com a chegada de dois bebês, agora começa a mudar rapidamente. Outra vez sou chacoalhado – só que agora por dois adolescentes a um passo da maioridade.

Eu envelheço – perco um tanto da força e da importância. (Que talvez eu mesmo me atribuísse, ou me impusesse, muito mais do que os outros.)

Aprendo que a gente não envelhece só com a idade. A gente envelhece muito mais com a troca de papéis vida afora. 

É desafiador ser pai de duas crianças que demandam sua presença para crescer. É igualmente desafiador ser pai de dois jovens que demandam sua ausência para desenvolver plenamente sua autonomia

E, daqui a pouco, com os filhos fora de casa, vivendo suas vidas de modo independente, como adultos, ou se tornando eles próprios pais (e, assim, deixando de ser apenas filhos), é provável que outra placa tectônica venha a se movimentar em minha vida, me empurrando de onde estou para outro lugar que ainda não conheço – para assumir outra persona que ainda não existe, e que terei de construir ao caminhar.

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Outra alavanca para esse sentimento de perda progressiva de relevância é o fato de que minha geração está entregando o manche da locomotiva e buscando encontrar assento entre os passageiros, em algum vagão do trem.

Aos 50, você em geral já trabalha há quase 30 anos. Então você não é mais a força jovem que vem para levar o mundo adiante. Você não representa mais o sangue novo que chega para renovar o mercado.

Você não está aposentado – ainda. Mas seus dias de rising star, wonder boy, next big thing (tenha isso tudo sido realidade ou apenas imaginação) já passaram há muitos anos.

Você não é mais vanguarda. Você não é mais moderno. E você começa a deixar de ser contemporâneo 

Você não sabe mais a música que está tocando, nem qual é o assunto (meme, trend topic etc.) do dia, nem qual é a nova celebridade. 

O seu discurso não é nem o mais afiado e dominante, porque o mainstream não é mais o seu terreno, nem o mais charmoso e inspirador, porque não é para você que as pessoas olham na hora de desafiar o mainstream. 

Você começa a ficar invisível. Ou, ao menos, irrelevante. As pessoas ainda lhe enxergam – mas lhe escutam cada vez menos.

O ambiente em que você aprendeu todas as coisas que você sabe não existe mais. Grande parte dos diferenciais de sucesso que lhe fizeram ser quem você é já caducou. 

Você corre o risco de virar um saudosista. Ou pior – um reacionário. Um tipo conservador cada vez mais adverso à evolução dos jeitos de viver e trabalhar.

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Em paralelo, com meus pais envelhecendo, outro papel fundamental em minha vida se altera: a condição de filho.

Uma coisa é você chegar aos 30, começando a viver o auge da vida adulta, e olhar seus pais com 50 e poucos. Outra coisa é você ter 50 e poucos – e contemplar seus pais a caminho dos 80

É uma coisa morna, que te envolve devagar. Que tem a ver com desejo de reconexão, com vontade de estar junto, de abraçar sem dizer nada. De ficar bom tempo reparando num detalhe. De encostar a mão para sentir o calor do outro. De respirar o perfume impresso na roupa ou nos cabelos. 

E é também uma coisa encharcada de urgência. Que envolve um tanto de culpa. Pelas coisas ditas – e por aquelas que jamais conseguiremos dizer. Como o remorso dos que ficam. Uma coisa amorfa. Como uma certeza de dor.

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Por fim, os 50 consolidam em mim algumas mudanças físicas que vinham ocorrendo aos poucos. As transformações, que começaram a acontecer de modo imperceptível, e que depois ainda era possível ignorar ou disfarçar, se tornaram explícitas.

Não se trata mais de uma ruga aqui ou de um vinco acolá: minha cara está caindo. A pele das mãos, enrugando. Os cabelos passaram a rarear, finalmente. Fios brancos vão surgindo em todo lugar

Os limites físicos expõem uma fragilidade inédita. Se não dormir bem, tenho dor de cabeça. Se não comer direito, passo mal. Não consigo mais beber como antes. Qualquer segunda dose me estraga. 

A asma e a rinite melhoraram, mas desenvolvi sinusite e enxaqueca. Meus olhos enxergam cada vez menos. Já não consigo jogar futebol – a lombar foi embora. E a manutenção do tônus muscular é uma batalha perdida que empreendo (quase) todo dia.

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Como pano de fundo disso tudo, um fenômeno interessante acontece: passo a ser visto como um coroa. Não mais como um homem adulto – mas como um homem de idade. Reconheço essa estampa na retina alheia. E, às vezes, diante do espelho.

No entanto, por dentro, não sou aquilo. Começa a crescer o descompasso entre minha idade física, expressa em meu corpo, e minha idade subjetiva, expressa na imagem que faço de mim

Me sinto cada vez mais jovial. No sentido da rebeldia, da crítica, da não-acomodação. (Apesar de tudo que passei a admitir, ou a ignorar, ou a acomodar dentro de uma inaudita capacidade de resignação. Tento entender isso como sabedoria e não como desistência.) 

Penso que sou hoje menos chato e quadrado e estrito do que era aos 20. Aquele garoto estava aprendendo a viver. Creio que hoje, com os anos, ele aprendeu a levar a vida com um pouco mais de flair, tornando a jornada um pouco mais agradável a si e também para os que caminham a seu lado.

Mas não é isso que as pessoas veem em mim. Não é isso que minha cara e minha postura mostram a elas.

Eis o ponto: aos 50, meu look and feel finalmente mudou. Independente do que eu pense ou faça. Não sou mais jovem. Nem é essa a minha aparência. Ponto. Isso é inevitável. Irreversível. Não depende de mim.

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A felicidade está na menor diferença possível entre quem você é e quem você quer ser ou pensa que é. Essa é uma grande verdade – que pretendo desafiar. 

Quero permanecer jovem e pop e curioso e questionador e desajustado para sempre. Aziras. Essa é uma contradição que vou nutrir, como fonte de felicidade, e não de tristeza, enquanto envelheço. Já começou. Vem comigo.

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Future Health. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV A República dos Editores.

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