Num mundo que muitas vezes tenta enquadrar as experiências humanas em categorias rígidas, a dramaturga e escritora sergipana Euler Lopes vive de desafiar essas limitações, celebrando a diversidade e a complexidade de existências dissidentes.
“Tenho um percurso de vida como bicha, como homem gay, mas nunca me enquadrei direito nisso”, diz Euler, 33, que hoje se identifica como não-binária e se refere a si mesma pelo pronome feminino. “Quando pensei no Mariconas, queria falar de uma perspectiva que eu ainda não tinha visto.”
Mariconas é a estreia de Euler como romancista. Depois de uma trajetória no teatro que vem desde 2010, como diretora e dramaturga da companhia A Tua Lona, ela decidiu enfrentar outro formato e explorar um foco diferente do que a “literatura que se diz LGBTQIAPN+” costuma enfatizar:
“Parecia que era sempre uma história de homens que estão se descobrindo, saindo do armário… Eu queria ir para a outra ponta, a velhice, que é um tema que eu adoro. Fiquei me perguntando: ‘Como será que é ser uma bicha velha em Aracaju?’”
Ambientado na capital sergipana, onde Euler vive, o romance traz a história de Ira, Gil e Erê, dois homens gays e uma mulher trans, alternando as vozes das personagens (um “romance balbúrdia”, segundo a autora) e abordando temas como envelhecimento, amor, perda e autodescoberta.
O projeto foi viabilizado por meio do Catarse. Finalizada em março de 2024, a campanha bateu 218% da meta e arrecadou R$ 16.365. O dinheiro bancou os custos da edição do livro, prestes a ser publicado pela Caos e Letras, uma editora mineira independente.
Euler conta que amor pela leitura veio do exemplo do pai, que devorava livrinhos com história de caubói vendidos no mercado municipal da cidade.
“Era muito barato: 50 centavos, 1 real, na época. Meu pai sempre rubricava os que havia lido. Eu achava muito massa quando via ele rubricando, e comecei a ler por isso.”
Foi no ensino médio que Euler encontrou o teatro e começou a se descobrir dramaturga (em entrevista ao Portal da Dramaturgia, ela falou sobre o impacto de ler, aos 14 anos, Perdoa-me por me traíres, peça de Nelson Rodrigues então disponível na biblioteca da escola).
“O teatro me deu a possibilidade de escrever e ver o texto imediatamente em ação. Eu não precisava ter dinheiro para lançar um livro — era só escrever, ter amigos, pessoas que queriam montar aquele texto”
Foi assim que ela acabou enveredando pelas artes cênicas. Enquanto cursava letras (é graduada e mestre pela Universidade Federal de Sergipe), Euler desbravava seu caminho como diretora e dramaturga do grupo A Tua Lona.
Entre suas montagens constam os espetáculos Menina miúda (2011), O vômito (2011), Ela esteve aqui (2013) e O conselho (2016).
A TRAJETÓRIA DE EULER NA DRAMATURGIA GANHOU IMPULSO COM UM CONCURSO DO SESC
Ainda em 2013, Euler foi uma das vencedoras (com O conselho) do III Concurso de Jovens Dramaturgos realizado pelo Sesc, que selecionou obras de cinco autores de todo o país.
As peças, segundo ela conta, foram publicadas em um livro com tiragem de 1 mil exemplares, e ganharam, na época, leituras dramáticas em escolas públicas do Rio de Janeiro.
“Para mim, representou um boom. Eu virei ‘a dramaturgia de Aracaju’. A partir disso, comecei a escrever para outros grupos, tanto do estado quanto de fora”
Enquanto intensificava sua atuação, Euler publicou duas coletâneas de seus textos para teatro: 10 afetos (com suas peças escritas entre 2010 e 2015) e +10 afetos, compilando a produção de 2016 a 2020.
“Tanto o 10 afetos como o +10 afetos foram publicados de forma independente, mas contando com verba de editais do estado de Sergipe.”
Apesar da produção teatral intensa, Euler acreditava que criar e publicar um romance estava fora de questão.
A crença de que fazer sucesso na literatura era quase impossível para alguém que vive fora do eixo Rio/São Paulo — onde estão as principais editoras e “as coisas acontecem” — a levou a bloquear o desejo, durante anos, de se experimentar como romancista.
“Sempre quis testar o gênero, ir para outros caminhos, mas eu pensava [com desânimo] ‘Nossa, tô em Aracaju’… Hoje isso é muito bobo — mas há dez anos, quando comecei, as coisas eram diferentes”
Ela diz que essa percepção começou a mudar em agosto de 2019, ao ser convidada para o evento Nordeste das Artes, promovido pelo Sesc.
Junto com outro escritor nordestino, o fortalezense Marco Severo, Euler participou da mesa “Juventude e Literatura no Brasil”, que tinha ainda dois autores do Sudeste: Juliana Leite (natural de Petrópolis, RJ) e Tobias Carvalho (gaúcho de Porto Alegre), ganhadores do Prêmio Sesc no ano anterior nas categorias Romance e Conto, respectivamente.
“Foi uma mesa maravilhosa, incrível, que durou quatro horas. E isso me deu um estalo de perceber que eu também podia escrever um romance”
No começo de 2020, a Covid-19 chegava ao Brasil. Naquele período de distanciamento social, Euler se inscreveu em uma oficina online ministrada pela escritora paulistana Andréa del Fuego (vencedora do Prêmio José Saramago, em 2011, pelo romance Os Malaquias), através da Escrevedeira.
A ideia inicial para o projeto do Mariconas deu seu primeiro sinal de vida durante essa oficina:
“Era um exercício de epígrafes que precisaríamos escrever para nosso livro, mesmo que ele [ainda] não existisse. Nisso, pensei algo mais ou menos assim: ‘Esfreguei, mas a purpurina não saiu do edy’ [ânus]. E aquilo ficou na minha cabeça”
Por um ano, Euler se dedicou a outras oficinas e estudos, enquanto se debruçava sobre a escrita de seu romance.
Mariconas estava previsto para maio, mas houve um atraso na editora. Segundo a sinopse apresentada no Catarse, “é um texto sobre como o envelhecer gay pode ser solitário, decadente, mas ainda procura a purpurina para brilhar antes da morte chegar”.
Euler conta que buscou unir suas experiências como pessoa não-binária e androssexual e a ideia do envelhecimento como experiência universal. Por outro lado, ela diz que quis evitar o “quadrado da literatura regional”, que confina obras do Nordeste em um “nicho menor”:
“Nosso território é invisibilizado, mas o Nordeste é imenso, tem muita diversidade. Minha angústia era dizer que vivemos em Aracaju, essa cidade está aqui, existe vida aqui. Se eu consigo conhecer a Vila Madalena na literatura, eu quero que alguém conheça o Rio Sergipe”
Outro tema que transparece na relação entre as três protagonistas de Mariconas, segundo Euler, é a irmandade, conceito forte entre comunidades LGBTQIAPN+ que, muitas vezes, perdem suas famílias de sangue por conta da intolerância.
“Elas são uma família, se apoiam, são ‘a boate’ delas, ‘o divertimento’ delas, saem pra dançar, se divertir na rua. Ao mesmo tempo, eu queria marcar que a gente tem [em Aracaju] um Carnaval, um São João, falar desses corpos em festa — desses corpos velhos em festa.”
“Muambeira das artes”, como ela própria se intitula, Euler trabalha em muitos projetos de forma concomitante.
Há cerca de um ano, ela vem realizando uma performance batizada de Rio, sim. “É um espetáculo em audiotour para uma única pessoa. Nós caminhamos de mãos dadas pelas ruas do centro de Aracaju enquanto, nos áudios, eu conto da minha relação com o teatro.”
Outro projeto em andamento é o Vendo meus dias por carta, que irá até 31 de dezembro:
“Eu vendo as cartas por meio do meu Instagram. A pessoa escolhe o dia, faz o pix no valor, e no dia combinado eu escrevo a carta e depois posto nos Correios”
No segundo semestre, Euler deve lançar seu próprio curso de escrita, de quatro meses. Em paralelo, está escrevendo o roteiro de um longa (em 2023, ela participou dos laboratórios Casa da Praia, no Rio Grande do Norte, e do Sesc Argumenta, no Rio de Janeiro) e também o seu segundo romance.
“A literatura tem o poder de fazer com que a gente se enxergue, de ser um espelho da nossa vida em sociedade. Tem o poder de nos mostrar coisas e lugares que não sabemos. Ela faz com que a gente repense quem somos — e o que estamos fazendo aqui.”
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