por Marilia Barrichello
Há cerca de um ano fiz um curso na Singularity University, no Vale do Silício, onde tive a chance de entrar em contato com o universo das tecnologias disruptivas e poder refletir e questionar sobre as fronteiras tênues e mutantes da relação homem-máquina. Passada essa experiência emblemática, decidi que era hora de vivenciar o que parecia ser para mim o outro extremo da equação: o foco ecológico e a visão sistêmica propostos pela Schumacher College.
O curso de três semanas parecia algo extenso demais para uma profissional e mãe de duas crianças como eu, mas eu estava encantada com a proposta de entender melhor “as dimensões do poder e das lideranças em um mundo complexo e mutante”, então decidi encarar a viagem aos campos ingleses, longe de casa e do trabalho.
Como alguém que vive há 18 anos o mundo corporativo e suas relações intempestivas, antiquadas e mesmo antagônicas com o poder, vi com alento e curiosidade a possibilidade poder juntar conceitos do budismo à prática do mindfulness e ao pensamento complexo para procurar um novo olhar sobre o real significado de poder na contemporaneidade — é isso que a Schumacher propõe, e é por isso que fui até lá.
Logo de cara pude sentir a dicotomia entre as duas experiências: o concreto da NASA (onde a Singularity fica baseada), seu foco futurista, antropocêntrico, sua abordagem com ênfase masculina, tudo isso substituído pela floresta verdejante onde a escola respira, pelo feminino, pela visão ecológica e pelo foco presentista da Schumacher College.
Os laptops, gadgets, celulares de último modelo deram espaço para a madeira, o aconchego, o afeto humano e a visão profunda de grupo.
O ritmo frenético desacelerou e percebi que deixar o computador de lado e partir para o papel e caneta era parte da experiência de se conectar com o aqui agora, com a simplicidade em todos os sentidos
As diferenças entre as duas experiências também se potencializavam na forma de entender e perceber o aprendizado. A experiência no Vale do Silício era pautada sobretudo em apresentações high tech, breves, com pouco espaço para questionamento, interlocutores performáticos e programação precisa e detalhada. Nos campos de Devon, no sudoeste da Inglaterra, uma sala de aula funcionava como espaço de discussão, palestra, meditação e dança. Tudo com foco no humano.
Na Schumacher o aprendizado é ativo, sem ter a pretensão de ser um processo de um para muitos, numa abordagem vertical. O que faz muitos buscadores ao redor do planeta se encontrarem neste recanto é a possibilidade de uma troca horizontal, de muitos para muitos.
No primeiro dia já deu para perceber que não seguiríamos uma estrutura premeditada de ensino. O processo era aberto e construído diariamente em função do andamento do grupo, das necessidades e descobertas. Como eu me senti? Navegando em mar aberto sem bússola. Eu e todos ali fomos sendo tirados, um a um, de nossas zonas de conforto.
No segundo dia, ainda buscando a segurança de uma métrica que não existia, comecei a perceber que para aproveitar o curso eu teria que zerar qualquer expectativa e me permitir envolver. O sentido daquilo tudo viria pelo sentir, não pelo pensar.
Então, fui abandonando os comandos de um cérebro cartesiano e parei de me preocupar em entender, mas em estar presente, em me perceber melhor e também perceber o outro e a natureza. Aliás, toda vez que o tempo permitia, grande parte das atividades eram realizadas na floresta Red Woods, que é o coração da Schumacher.
Com o passar dos dias, fui me acostumando a ter os cabelos cheirando a fumaça (as rodas de conversa na floresta sempre tinham fogueira), a usar botas de fazenda e a ter sempre terra em alguma parte do corpo. Eram como que lembretes de tudo aquilo que eu estava vivendo.
Afinal, viver é a grande tônica do curso. Lá, não existe separação entre o aprender e o viver: o tempo do estudo se funde ao tempo do preparo do alimento, do cuidar do jardim, do meditar, do cuidar de si e do outro, da limpeza e da purificação por dentro e por fora.
Onde está o ensino sobre liderança? Na percepção de que não dá para separar o líder da pessoa. Por mais óbvio que soe, para ser um bom líder é preciso ser antes uma boa pessoa. Nesse aspecto, poder para o líder contemporâneo é saber dar poder, ou seja, saber empoderar o outro a partir de movimentos integrados e conscientes.
O verdadeiro líder não é aquele que ofusca, que oprime, mas o que faz os outros brilharem também. Assim, o poder que não traz felicidade aos outros é inútil
Um aprendizado importante da Schumacher College é perceber que a base para uma relação mais saudável com o poder está no autoconhecimento e, por isso, a meditação nos acompanhou todos os dias. Numa das sessões, fomos convidados a meditar andando bem devagar, tão devagar como uma criança que está aprendendo a andar. Ao perceber cada pequeníssima parte da planta do meu pé tocando o chão, eu sentia meu corpo perder o eixo, ao mesmo tempo em que me sentia segura e equilibrada. Muitas vezes o devagar é mais difícil que o rápido.
A floresta Red Woods, no sudoeste da Inglaterra, é palco de boa parte das vivências do curso da Schumacher College (foto: Bruno Queiroz).
Nessa hipérbole da atenção plena, fui ampliando o olhar para além daquilo que simplesmente a visão alcança. Você já parou pra pensar que um chá pode ter gosto de raio de sol ou de nuvem? Ele não é só uma infusão a base de ervas. Também estão lá o orvalho da manhã, as gotas da chuva, o carinho da colheita.
Tive o prazer de fazer parte do grupo da cozinha que dividiu com Satish Kumar, fundador da Schumacher, a preparação do alimento para o jantar. Foi um momento inesquecível para mim, alguém não muito iniciada nas artes culinárias e que viu nesse indiano de quase 80 anos um líder inspirador, carismático e generoso também no momento de picar, cozinhar, temperar, preparar e servir uma deliciosa refeição indiana. Nessa noite, Satish conduziu um conversa na lareira que me marcou muito.
Para ele, o verdadeiro líder não tem duas coisas: ego e medo. É preciso tirar o foco de si e oferecer seu melhor aos outros. Medo das incertezas? As incertezas, segundo Satish, estão plenas de possibilidades. “Acolha a complexidade, saiba improvisar, abra espaço e deixe as oportunidades emergirem. E lembre-se de estar atento e preparado”, disse.
Pela subjetividade e profundidade da experiência, sinto que cada um viveu o curso de um jeito diferente. Cada sentido é único e a arte de dar sentido àquilo depende de cada um de nós.
Mais que um curso, fui submetida a um experimento que testaria minhas convicções sobre liderança, aspirações e relações de uma forma verdadeira e amorosa
Nesse processo de exploração, usamos várias formas de expressão: fazer com as mãos, exercícios corporais, lutas marciais, dança. Tive a chance de oferecer aos meus filhos o primeiro brinquedo de madeira feito por minhas mãos: um estilingue que eu construí do zero: serrei, cortei, lixei, perfurei. Voltei à minha infância perto das bonecas mas também fazendo molecagem, fazendo arte.
Ao longo das três semanas que metafórica e literalmente fizeram a passagem do outono para a primavera, sinto que degelei. Senti aflorar uma explosão de brotos de imaginação, criatividade, intuição, aceitação e também o respeito e entendimento das muitas forças que estão acima de nós, da perfeição, beleza e amorosidade da natureza. Criei raízes, quebrei as carcaças de proteção, desatei os nós, retirei tudo aquilo que me tirava de mim mesma.
Cheguei sozinha com minhas buscas e saí me sentindo parte de uma comunidade, no sentido mais puro e verdadeiro da palavra. Mais do que respostas para minhas perguntas, sinto que encontrei força, inspiração e confiança para seguir de acordo com as minhas próprias convicções e inquietações.
Muitas coisas estão fora do nosso controle e não vão mudar, mas podemos mudar nossa relação com essas coisas
Respirei com gratidão. Consciente e preparada para perceber que em cada pequeno movimento que faço, a cada pequeno dia, digo sim ao convite da vida. Todos os dias a vida nos convida para dançar.
E nessa música a tecnologia — e tudo que pulsa quase do outro lado do mundo, na Singularity University — com certeza vai estar presente para nos permitir ir além, chegar a novos lugares, usar melhor o tempo, comunicar com mais eficiência.
Podemos usar a tecnologia em favor das nossas buscas, mas as respostas para nossas perguntas mais profundas não estão fora da gente. Para encontrá-las é preciso ter a coragem de sair, questionar, calibrar e voltar para nosso verdadeiro lar. Aquele, primordial e único, que bate incansavelmente desde nossa origem, que nos faz querer ser melhores e acreditar que, sim, podemos mudar o mundo.
Marilia Barrichello Naigeborin, 38, é publicitária e mestra em Comunicação e Sociologia. Apaixonada pelo valor qualitativo do tempo, tema da sua dissertação, estudou com Domenico de Masi na Itália. Hoje, trabalha como consultora.
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