Cindy chegou na vida de Sharlene Irente em 2012. Ela era uma cachorrinha vira-lata que sofria com epilepsia e não podia ficar muito tempo sozinha em casa. Por isso, a psicóloga passou a levá-la a quase todos os lugares e passeios.
Sharlene foi percebendo, no entanto, que a maioria dessas experiências não era pet friendly. Mas a tutora dava um jeitinho de encaixar Cindy em sua programação.
“Eu carregava a Cindy para todo o lado; viajava para fazer trilha e ela estava junto. Depois, adotei o Bob e ele também começou a sair com a gente. Só que isso em 2013, 2014, quando não era tão comum as pessoas levarem os pets para todos os lugares”
Na época, Sharlene trabalhava no RH de uma indústria automotiva e já estava desanimada com a rotina e a falta de propósito que sentia em 11 anos no setor corporativo.
“Vivia aquela crise dos 30 e poucos anos em que a gente surta e quer mudar de vida. Aí juntou esse desejo com a necessidade de cuidar da Cindy e decidi fazer um MBA em gestão de negócios e me preparar para empreender no setor pet.”
Seu TCC foi um plano de negócio de uma agência de turismo receptivo pet friendly com foco em ecoturismo. Depois, ela fez cursos no Sebrae, um de adestramento, e foi juntando recursos e coragem para se desligar do emprego. Até que, em 2017, a ideia saiu do papel com a Cãomigo.
O primeiro evento da Cãomigo foi em Cabreúva (SP), em agosto daquele ano. “A gente fez uma atividade que incluía café da manhã, trilha, passeio em um lago, depois um almoço com um day use em uma pousada. Foi um evento muito semelhante ao que a gente ainda oferece hoje.”
Caminhada das Uvas, passeio realizado em Jundiaí (SP).
Depois daquele passeio (ou “auventura”, como a Cãomigo nomeia), vieram muitos outros. Seis anos depois, em um evento em Sengés, no Paraná, quase na divisa com São Paulo, Sharlene conheceu Maria Paula Mansur Mader, que mora em Curitiba e levou Flora e Frederico, seus dois golden retriever, para viajar.
Professora universitária na área de comunicação há mais de duas décadas, ela também vivia um momento de repensar a carreira. Tinha um projeto de ações sociais e eventos na área pet, mas considerava um hobby, não um negócio.
“No dia do passeio, a gente conversou bastante e a Sharlene disse que estava buscando uma sócia. Eu voltei para a casa com isso na cabeça. Meses depois, resolvi ligar para ela, compartilhei que não conhecia nada da área de empreendedorismo nem de turismo, mas tinha experiência com comunicação e com o meu projeto pet”
As duas deram match, e a sociedade teve início, com uma diretoria canina de peso: Cindy (in memoriam), Bella e Cacau (adotadas por Sharlene em 2017), Bob, Frederico e Flora.
Antes da entrada de Maria Paula na sociedade, no fim de 2021, Sharlene já apostava em consultorias para pousadas, restaurantes e estabelecimentos se tornarem pet friendly.
Juntas, as sócias ampliaram esse braço de negócios:
“Criamos um projeto dog friendly para o Japaratinga, resort de Alagoas, já demos consultoria para o Shopping Plaza, de São José do Rio Preto (SP), e fizemos um projeto para o escritório da Apsen, uma indústria farmacêutica, em Santo Amaro (SP)”
Elas também estruturaram o programa de multiplicadores, com o objetivo de escalar os passeios e chegar a outras partes do Brasil. “Tem uma inspiração em franquia, licenciamento da marca, mas não é exatamente isso”, diz Sharlene.
Passeio realizado pela Cãomigo em Morretes (PR).
Na prática, elas selecionam guias turísticos e oferecem formação online para que esses profissionais passem a incluir os pets dos clientes em suas ofertas.
“Passamos a treinar e criar experiências com aquilo que nós aprendemos durante toda essa jornada de preparação e estudos para empreender na área”
Elas estudaram bastante antes de montar o treinamento. Sharlene fez pós em turismo; Maria Paula, um MBA em administração, e agora cursa uma pós em análise do comportamento e bem-estar animal. É ela quem explica a proposta:
“A ideia é melhorar esse mercado e os serviços disponíveis. Depois que esses guias terminam o treinamento, eles podem oferecer as mesmas atividades e passeios que já propomos, mas na sua região”
O programa é gratuito e conta com oito módulos e mais de 30 horas de conteúdo. Quando os guias organizam experiências usando o nome da Cãomigo, a empresa recebe uma comissão de 20%. E cuida de toda a parte de vendas, divulgação e suporte.
Com isso, a Cãomigo já levou roteiros para cidades como Jundiaí, São Pedro, Extrema (MG), Porto Alegre (RS) e Olinda (PE), com o primeiro passeio no Nordeste realizado em junho de 2025.
Inicialmente, a Cãomigo foi pensada como uma empresa tradicional do setor pet. Mas, para crescer, as sócias perceberam que precisavam de outro modelo.
“A gente nem sabia direito o que era uma startup, mas começamos a buscar entender esse ecossistema no segundo semestre do ano passado”, diz Maria Paula.
Elas se inscreveram no InovAtiva Brasil e em um curso de formação para fundadores. Sharlene lembra:
“Eu não entendia a metade daquela siglas em inglês que falavam, mas continuamos participando e depois fomos aprovadas no InovAtiva. Ficamos super felizes e, no final da aceleração, ainda fomos premiadas como destaque na nossa categoria. Foi aí que a ficha caiu: somos uma startup!”
Depois disso, participaram de outras iniciativas: aceleração da FGV Ventures, do Sebrae, pré-aceleração da Itaipu Parquetec e pré-incubação no Porto Digital. Em 2025, iniciam duas novas incubações: uma no Supera, em Ribeirão Preto, e outra novamente no Porto Digital.
A Cãomigo também foi reconhecida em 2023 com o 2º lugar no Prêmio Nacional do Turismo, na categoria “Iniciativas Destaque”.
Geralmente, diz Maria Paula, os multiplicadores chegam com propostas de roteiros já desenhadas. Cabe às sócias avaliar a viabilidade da atividade.
“O principal critério para nós é a qualidade do atendimento no local. Queremos entender se aquela família multiespécie vai ser bem recebida, se o lugar acolhe o pet de verdade ou está sendo oportunista de dizer que é pet friendly para abocanhar uma fatia do mercado”
Elas também avaliam se os cães podem ficar junto aos tutores nas refeições, dormir nos quartos, e as condições do passeio em si, como conta Sharlene:
“Outra coisa que a gente avalia é a dificuldade da trilha, porque às vezes um passeio pode ser fácil para os tutores, mas complicado para um pet. Se o local tem uma escadinha de madeira também se torna inviável”
Para elas, o importante é que cães e humanos se divirtam juntos. “Nossas atividades são pensadas para a família multiespécie. O que é muito diferente de apenas incluir pets”, diz Maria Paula.
Todo fim de semana tem pelo menos uma “auventura” da Cãomigo rolando e dá para conferir a programação aqui. Só em 2024, foram mais de 800 cães em 41 eventos, por 17 cidades e quatro estados.
Os preços variam, mas para se ter ideia, o próximo passeio, que acontecerá em 26 de julho, com ida e volta no mesmo dia, será ao Parque de Aventura Natural da cidade de São Paulo. O valor para humanos adultos é de 250 reais. Crianças pagam 182 reais e cachorros, 35.
Sharlene conta que muitos estabelecimentos ainda acreditam que ser pet friendly é apenas colocar uma plaquinha de que aceita cães.
“Tem muito lugar que diz que recebe cachorro, mas limita o porte. Ou o animal é aceito ali, mas não pode latir…” No interior, ela observa mais barreiras.
“Claro que a gente não pode generalizar, mas há uma visão diferente e até um certo choque cultural quando o dono de um estabelecimento que trata o cão do sítio dele de um jeito vê aquele cachorro que vai na creche, dorme com tutores e tem até festa de aniversário”
Mas também cabe aos humanos terem responsabilidade. “Os tutores precisam ter noção de que não podem deixar o cachorro tocar o terror, destruir coisas, fazer xixi onde não deve…”
Apesar dos desafios, o retorno costuma ser emocionante, diz Maria Paula: “Para mim, sempre marca ouvir que no passeio foi a primeira vez que o cachorro entrou num lago, foi à praia, fez uma trilha. São muitas primeiras vezes que emocionam os tutores”.
O bem-estar canino é um mercado em efervescência. Lançada nos EUA e no Brasil por um empreendedor daqui, a Furest Pet vende suplementos e um hidratante para as patas, com ingredientes como óleo de murumuru e copaíba.
Martina Sgarbi era gerente financeira de uma grife de enxovais quando decidiu mudar de vida. Fundou a Qjo Martina, ganhou prêmios e agora está prestes a levar sua produção para um sítio à beira da Represa de Guarapiranga, na capital paulista.
O luto ainda é um grande tabu. Para ajudar tutores a superar a morte de seus pets (ou mesmo mães e pais que lidam com a perda de um filho), a artesã Malu Límoli cria delicadas “joias afetivas” que encapsulam e eternizam amostras de DNA.