“O mercado de trabalho precisa incluir em seu conceito de diversidade os pacientes de depressão”

Carolina Massaro - 15 abr 2016
Carolina Massaro: "O problema não era a escola, os colegas, nada externo. Era eu mesma — ou melhor, era a doença e eu não sabia! Eu sofria. Achava que não merecia a amizade ou o amor de ninguém"
Carolina Massaro - 15 abr 2016
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Por Carolina Massaro

 

Quando surgiu a oportunidade de escrever sobre minha luta contra a depressão, travei. Não porque tenha medo ou vergonha de falar sobre o assunto. Ao contrário. Defendo que é preciso conversar muito sobre isso para que a doença seja desmitificada.

Há um mito de que depressão é frescura, é coisa de quem “não tem um tanque de roupa suja para lavar”, é algo que simplesmente a gente escolhe ter ou não ter. Ou então que é coisa de maluco, como todas as enfermidades da mente.

Travei por algumas semanas. Até que me lembrei de uma coisa que há alguns anos uma grande amiga me disse. Eu, uma menina com família sólida e presente, com uma situação financeira estável, com tantas coisas que ela não teve… eu tinha depressão. Ela nunca havia dito, mas eu sabia que ela não compreendia meu sofrimento. Depois de uns vinte anos de convivência ela foi acometida pela mesma doença. Já em tratamento ela confessou: “Nunca havia entendido porque você, que sempre teve tudo, se sentia sempre triste”.

Mais do que enfrentar o desbalanceamento dos neurotransmissores ou qualquer “fantasma” da alma, sempre precisei enfrentar também o preconceito e o desconhecimento

Só quem já viveu a doença sabe como é querer não sentir esse pesar em relação a tudo e mesmo assim senti-lo. Todo dia. Às vezes, até mesmo quem já teve depressão e conseguiu superar não é capaz de entender o que eu vivo desde que me entendo por gente.

Nenhum médico diagnosticou que tenho depressão desde a infância. Também acho que nunca perguntei exatamente se isso pode ser afirmado. Olhando para trás, identifico que possivelmente minha primeira crise aconteceu por volta dos 12 anos. Eu era tímida – apesar de desde sempre defender meus pontos de vista quando achava preciso – e ainda sofria do que hoje chamam de bullying, por ser muito magrela e nada feminina (um moleque, quase).

Foram dias e dias chorando escondida no quarto – sim, escondida, pois até hoje tenho dificuldade de falar sobre o assunto com a minha família. (E olha que nunca faltou espaço para o diálogo.) Pensar nos meus pais – na minha avó! Nos meus filhos! – lendo esse texto quase me trava de novo. Por outros fatores, mudei de colégio e achei que seria a solução para minha vida. Claro que não foi.

O problema não era a escola, os colegas, nada externo. Era eu mesma — ou melhor, era a doença e eu não sabia! Eu sofria. Achava que não merecia a amizade ou o amor de ninguém

Aos 14 anos inventei que precisava sair do interior, onde morava, para crescer. Ao menos esse foi meu argumento para convencer meus pais de que precisava mudar para São Paulo para fazer o Ensino Médio. Inconscientemente, era mais uma tentativa de fuga.

Se mudar de escola foi difícil, ir para outra cidade foi horrível. Aos problemas de relacionamento somou-se a dificuldade nos estudos. Adeus autoestima. Tenho certeza que já era a depressão atrapalhando minha concentração e tirando meu ânimo de estudar. Um acontecimento trágico, o suicídio de uma pessoa muito querida, me abalou ainda mais. Até que surgiu uma luz: comecei a namorar um menino mais velho que era do tipo “amigo de todo mundo”. Nos poucos meses desse namoro, me sentia esperançosa e confiante. Até que de um dia para o outro ele terminou tudo. Foi um baque muito grande.

Todo fim de relacionamento é, para qualquer pessoa. Para mim, foi um gatilho para a doença tomar conta. Foi quando, pela primeira vez, realmente levei adiante a perspectiva de solucionar meus problemas com a morte. Algo completamente sem nexo, já que eu acredito em reencarnação. Só que a razão simplesmente some da cabeça da gente nessa hora.

No último ano do Ensino Médio, tentei continuar em São Paulo, mas acabei voltando para casa dos meus pais, sem nunca ter falado a eles sobre como me sentia de verdade. Quando eles fizeram uma viagem mais longa, decidi procurar um psiquiatra. Tinha 16 anos. Ele fez o diagnóstico e prescreveu duas medicações, um antidepressivo e um ansiolítico. Sim, a ansiedade sempre andou junto com a minha depressão.

Foi horrível. Tinha ainda mais sono do que sempre tive pela manhã e dormia nas primeiras aulas (queria tanto que meus professores da época soubesse que não era desinteresse!). Depois ficava agitada, até com taquicardia. Quando meus pais voltaram, contei a eles, que optaram por interromper o tratamento medicamentoso e me indicaram a terapia.

Nesta época, senti bem como é o preconceito em relação à doença. Contei a poucas pessoas sobre o que vinha passando, mas em cidade pequena (ao menos era assim onde eu vivia) não existe acolhimento para isso. Logo percebi que alguns se afastaram, tempos depois soube de rótulos como “estranha”, “esquisita” e “louca” que havia ganho em algumas rodinhas de “amigos”. Ninguém – exceto a verdadeira amiga que cito no início – veio conversar comigo para tentar entender o que se passava.

Quando saí da escola ainda estava muito perdida e decidi não prestar vestibular. Até que a terapia e um namoro estável me ajudaram a encontrar um ponto de equilíbrio. O período da faculdade foi ótimo. Minha timidez tinha diminuído bastante, eu estava mais segura e gostando do que fazia. De cara, fiz vários amigos e minha turma como um todo era bem bacana. No segundo ano já consegui um estágio na faculdade mesmo e no início do terceiro surgiu uma oportunidade de estágio em redação.

Ainda estudante, mais uma porta me foi aberta e eu fui trabalhar em um veículo da grande mídia. Eram os primórdios da internet e eu entrei para o seleto grupo de jornalistas que já aprendiam a lidar com o que viria a ser o futuro da profissão. Uma equipe sensacional e um trabalho desafiador. Conheci o homem com o qual, meses depois, me casaria.

Parecia que eu tinha deixado o fantasma da depressão para trás. Eu estava realmente feliz. Como nunca me lembrava de ter sido. Até que ela voltou

Os gatilhos que me levavam ao estado deprimido na época escolar começaram a surgir na vida adulta de forma muito relacionada ao trabalho. Não apenas o ritmo – longos turnos, plantões, madrugadas adentro – mas também mudanças no jornal que me desagradavam profissionalmente. Retomei o tratamento medicamentoso.

Quando me senti melhor, gradativamente parei com a medicação para poder realizar um sonho: ser mãe. Então um baque: com o estouro da bolha da internet no início dos anos 2000, toda a equipe com a qual eu trabalhava, incluindo meu chefe, foi demitida. Menos eu, a grávida (disseram que não foi esse o motivo, mas quem acreditaria?). Havia um sentimento ruim de estar lá sem todos os amigos e colegas e minha nova função não me agradava. Quando voltei da licença-maternidade, esse sentimento de não-pertencimento piorou. E o trabalho foi ficando cada vez mais distante daquele que eu idealizava.

Parei de amamentar quando meu filho tinha 9 meses para poder retomar o tratamento com remédio. Além do antidepressivo, veio o ansiolítico. No primeiro dia de tratamento já liguei para a médica. Meio comprimido e eu fiquei completamente letárgica, grogue mesmo. Eu queria me sentir bem, não ficar babando ou ausente do mundo real.

Essa crise talvez não tenha sido a mais grave, mas provavelmente foi a mais longa. E intrinsicamente ligada à minha vida profissional. Há tempos estava insatisfeita, mas não conseguia tomar a coragem de sair, especialmente depois que a família cresceu. Cheguei a pensar em “fugir de casa”. Mas eu não podia de forma alguma pensar em morrer sendo mãe. A vontade, no entanto, era de sumir do mundo. Foi difícil. Tinha finalmente um bebê nos braços, mas não estava sendo a mãe que eu sempre sonhara em ser.

Quando meu marido mudou de emprego e foi alocado em uma unidade do interior de São Paulo, veio a hora da mudança. Mudei de cidade, de emprego e de tipo de trabalho. Fechei um plantão na redação em um domingo e na segunda-feira comecei do outro lado do balcão, como assessora de imprensa.

Entrar em um campo que era totalmente novo e já dentro do cliente – o que costuma ser mais desafiador – foi muito bom. Fiz novos amigos, aprendi muito e ainda tinha a tranquilidade de deixar meu filho pequeno apenas um período na escola e depois com os avós.

Porém, em certo momento comecei a ficar novamente desmotivada e insatisfeita.

Mais uma vez pareciam me faltar forças para lidar com as dificuldades, ou mesmo com as pequenas coisas do dia a dia. Cheguei a pedir demissão, pensei em largar tudo. Acabei ficando onde estava. Eu estava prestes a sucumbir novamente

Por sorte (ou Providência Divina, para quem acredita), uma nova oportunidade: mudar para o exterior. Meu marido foi convidado a passar uma temporada nos Estados Unidos. Em poucos meses, dias antes do réveillon, estávamos de casa nova. Era pra ser um ano. Acabamos ficando três anos e meio.

Eu estava muito empolgada, ainda que um pouco preocupada por não poder trabalhar. Nessa época já estava claro para mim que eu me sentia bem quando estava produzindo algo em que realmente acreditasse – ou quando estava aprendendo algo que pudesse me tornar uma pessoa melhor. Esses eram os melhores antídotos para mim. Foquei no segundo item e tratei de estudar inglês, de aprender a ser uma mãe melhor, de fazer trabalhos voluntários, de entender a cultura e os costumes do local que naquele momento era meu lar. Decidi manter meu tratamento mesmo estando lá.

No final do primeiro ano da transferência, achei que voltaríamos de vez para o Brasil. Fiz a retirada da medicação e parei de tomar pílula. Mais rápido do que imaginava, engravidei do meu segundo filho. Já tínhamos assinado o contrato do segundo ano quando soube da gravidez. Fomos embora mesmo assim.

Muitas mulheres têm medo de parir longe da família. Isso não passou pela minha cabeça. Eu me sentia muito bem fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Poucos meses depois que o pequeno nasceu, veio uma grande perda. Nosso cachorro – meu primeiro filhinho – foi rapidamente tomado por um câncer e morreu. Fiquei muito triste, mas não podia me abater. Tinha um bebê com menos de três meses para cuidar e amamentar. Nesse momento aprendi a diferença fundamental entre tristeza e depressão.

Mesmo assim, quando a amamentação diminuiu e os hormônios começaram a mudar, senti que aquela nuvem negra estava querendo voltar. Retomei o tratamento tanto com medicação como com a psicóloga. (Foi uma grande experiência fazer terapia em inglês!)

Como desta vez identifiquei os sintomas antes da crise, consegui alcançar o bem-estar com menos remédio. E decidi que só iria voltar a interromper o tratamento quando o médico me desse alta e não quando eu achasse que estava bem.

De volta ao Brasil, retomamos a vida no interior. Em menos de dois meses, voltei ao mercado de trabalho. Em São Paulo. Foram quase quatro anos passando a semana longe do marido e dos filhos. Não foi nada fácil. Meu filho mais novo tinha cerca de dois anos quando comecei no novo trabalho. Havia um belo desafio. Quando saí do Brasil, não existiam mídias sociais. Quando voltei, elas estavam no centro das atenções do mercado de comunicação.

Novamente vi minha doença ficar de lado enquanto eu aprendia, produzia e era reconhecida. Foi o período em que fiquei mais tempo sem uma crise. E isso foi fantástico!

Passei por algumas mudanças ao longo de cerca de quatro anos na empresa, mas continuava a me sentir motivada e fisicamente bem. Até que em algum momento – ainda não consegui identificar qual – ela reapareceu. Veio em forma de problemas físicos. Por exemplo, eu já não tinha um dia sequer sem dores na coluna, algo que já tinha vivido antes, mas tinha sido controlado. Voltei a ter cálculo renal, comecei a ter náuseas e até tonturas (isso era novo) e por aí vai…

A distância da família começou a pesar muito e veio então a possibilidade de todos se mudarem para São Paulo, o que me animou por alguns meses até se mostrar uma opção inviável. Nesse momento a doença voltou a se agravar. Fazia pouco tempo que tinha recebido uma grande oportunidade, um novo desafio, algo que seria muito motivador. Porém já estava novamente sendo engolida pela depressão.

Junto com os outros problemas físicos veio também uma dificuldade imensa de me concentrar. Eu, que sempre fui muito organizada e responsável, comecei a esquecer coisas importantes e a me confundir ou mesmo errar com coisas que jamais erraria.

O impacto foi grande e eu decidi sair. Muitos me questionaram por que pedir demissão em um momento tão promissor da carreira. A verdade é que eu estava muito infeliz e não me sentia mais capaz de realizar o meu trabalho. Ao menos não com o nível de qualidade que me imponho.

Pela primeira vez percebi o quão difícil é assumir a depressão no ambiente profissional. Simplesmente não vi espaço para dizer “estou doente”

Eu já tinha sentido na pele essa dificuldade na vida social e ver que não há espaço para a minha doença na vida corporativa foi um grande baque.

A solução que dei a isso foi me dar um tempo e voltar para casa. Depois de um curto descanso retomei o trabalho, ainda que remotamente e em ritmo menos intenso, achando que já estava pronta. Até que numa mesma semana surgiram alguns problemas graves com pessoas próximas e eu perdi a formatura do meu filho para poder atuar no gerenciamento de crise de um cliente. Vi que precisava parar e repensar a vida.

Fiz uma viagem de quase um mês, descansei bastante. Iniciei um trabalho voluntário, retomei a terapia e a fisioterapia e, pela primeira vez desde que voltei ao Brasil, pude realmente me dedicar aos meus filhos. Para não enlouquecer com a vida de dona-de-casa, passei a trabalhar como freelancer, buscando projetos que me motivem e que ao mesmo tempo me permitam manter a rotina de cuidados comigo e com meus filhos.

Ao longo da minha vida mudei de casa mais de 20 vezes, vivendo em cinco diferentes cidades e dois países. Mudei de escola, de emprego, de área de atuação. Mudei de médico, de remédio, de terapeuta. Mudei de religião e de forma de me relacionar com a fé. Mudei de objetivos e de prioridades. Até hoje nenhuma dessas mudanças trouxe para mim a solução definitiva para a depressão.

Não desisti da minha vida profissional, mas preciso encontrar meu ponto de equilíbrio antes de voltar para a loucura do trabalho diário. Tenho esperança de que um dia o ambiente corporativo esteja preparado para lidar com os profissionais que têm depressão, que são muitos, ainda que todo mundo esconda de todo mundo o sofrimento que é de todos.

Infelizmente, o deprimido não é tão produtivo quanto o mercado de trabalho de hoje exige que sejamos. Mas somos humanos. Com condições humanas. Não somos softwares que possamos controlar alterando uma linha de programação. (E mesmo softwares carregam “bugs” e não deixam de funcionar bem por conta disso.)

A quem estiver pensando agora: “por que ela está se expondo desse jeito?”. Bem, para mostrar que diversidade passa também pela inclusão dos ansiosos e dos deprimidos no ambiente de trabalho.

Se eu conseguir, com esse texto, sensibilizar uma empresa, ou ajudar uma pessoa a se entender melhor, e a compreender que a depressão é uma doença, e a buscar tratamento, já terei cumprido minha missão com essas linhas. E ficarei feliz

Gostaria de terminar esse texto com uma mensagem de otimismo e incentivo. No entanto, ainda continuo a lutar contra a depressão. Talvez ela seja uma companheira para a vida inteira. Algo com o que eu terei que me acostumar, lidando com ela da melhor forma possível. Com acesso a bons recursos médicos e uma família que me apoia na minha busca pela cura da depressão, só sei de uma coisa: vou seguir tentando!

 

Carolina Massaro, 38, é jornalista. Já atuou em redação e em agências de comunicação. Adora aprender coisas novas e nunca foge de um debate.

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