Não foi desde o começo que percebi que a profissão que eu gostava tanto não gostava de mulheres…
Ah, mas antes deixa eu me apresentar: sou Laura Florence, diretora executiva de criação da Havas Health & You Brasil e cofundadora da MORE GRLS, startup de impacto social que visa aumentar o número, a visibilidade e o valor de mulheres em áreas onde elas são minoria e minorizadas.
Para contextualizar um pouco mais, um dado importante: é possível contar usando uma só mão quantas mulheres ocupam a mesma posição que eu nas maiores agências de publicidade do país. E só mulheres brancas!
Enquanto para contar os homens, precisaríamos de várias outras mãos, talvez dos dedos dos pés também. É mais que o dobro, o triplo. É mais que dez vezes mais.
Mas por quê? Vou tentar explicar, voltando à minha história. Outro parênteses: sou uma mulher branca, cis, hétero e privilegiada.
Fiz faculdade boa, falo inglês e tenho uma família que pôde pagar meus estudos e enquanto buscava o emprego dos meus sonhos.
Comecei a atuar em agências bem cedo, aos 17 anos, num estágio que foi arranjado por um amigo do meu pai. Aproveitei a oportunidade e fui construindo minha carreira como redatora publicitária.
Quando era estagiária e júnior, participava de todos os “jobs” (nome usado por publicitários para as tarefas). Parecia um sonho.
Fiz estágio em duas das mais desejadas agências do país. Ajudava todas as duplas e era bem entrosada com todo mundo. Pobre menina que não sabia o que vinha pela frente…
Quando comecei a pegar “jobs” sozinha, percebi que existia um filtro diferente: fui direcionada para as contas de menos prestígio, aquelas ditas “femininas”, de beleza, absorventes, fraldas, produtos de limpeza
Carros, esportes, cerveja, isso era só dos “meninos da criação”, nome que até hoje usam para falar de um departamento inteiro.
Naquela época, eu nem reclamava. Porque, na lavagem cerebral que o mercado fazia na gente, eu deveria estar feliz só de trabalhar na criação. “Agradeça, continue achando que é um sonho e não reclame.”
Para trabalhar nas contas legais, era preciso fazer o meu “job” e “colar” na mesa dos meninos. E aí, ver se eles deixavam eu participar.
Eles até que deixavam e algumas vezes se beneficiavam da ajudinha extra. Mas o tal reconhecimento que eu esperava não vinha do jeito que estava no sonho daquela menina que começou bem cedo.
E não me faltaram apenas oportunidades — estando no lugar das oportunidades.
Me faltou o ar em todos os assédios morais e sexuais, altamente normatizados até pouco tempo. Me faltaram o sono e as vivências com meu filho, porque estava sempre na agência
Me fez uma enorme falta as colegas que desistiram da profissão pelo caminho. Porque a gente fazia o dobro, ganhava a metade e tinha um medo constante da demissão — que veio algumas vezes, porque era “mais fácil” cortar uma mulher do que um pai de família.
Até aqui, você pode dar “copia e cola” nesta trajetória e colocar o nome de qualquer mulher criativa que atuou dos anos 1990 até agora. Compartilhamos dessa história.
Mais um parêntese: mulheres brancas, a primeira negra com quem trabalhei na criação foi em 2015 — comecei a atuar em 1993.
Bom, quando finalmente cheguei ao cargo de gestão, com quase 40 anos (a média de idade dos homens é 35), me bateu a maior síndrome de impostora do universo.
Achava que era fraca, porque os modelos que eu conhecia até então eram autoritários, ególatras, os “gurus da faca no dente”.
Não sabia fazer todo mundo trabalhar até tarde. Ou as duplas criarem 4.744.637.463.746.347.647 ideias, pensar para prêmio forçado.
Não sei nem gritar com ninguém. Mas depois de muita terapia, fui encontrando meu jeito de liderar.
E foi acolhendo as mulheres do meu time que descobri que a generosidade é um estilo de liderança. E talvez o que produz a maior lealdade
E daí bateu o que na jornada do herói se chama “o chamado”. Comecei a questionar a organização que estava no momento. E tentar mudar estatísticas e a cultura criativa.
Consegui alguns olhares de lamento nas reuniões de board, mas nenhuma ação de fato para transformar alguma coisa.
O máximo que aconteceu foi a criação de um comitê de diversidade. Mas foi nessa época que uma outra pessoa desse board olhou para mim e vi que “o chamado” tinha batido nela também.
Camila Moletta me abordou na escada do prédio e dessa conversa, entre duas desconhecida naquela época, começou a germinar uma sociedade.
Poucos meses depois, em abril de 2018, nasceu a MORE GRLS, inicialmente uma plataforma de mapeamentos de talentos criativos femininos.
Porque pensamos: se é para resolver um problema, precisamos fazer o que fazemos com o problema dos nossos clientes: entendê-lo profundamente.
Queríamos saber quantas eram as criativas, onde elas estavam trabalhando e em que cargo. Em 24 horas, já tínhamos mil cadastros. Nossa expectativa era de 100. E em três meses, eram 4 mil. Hoje. temos mais de 5 mil mulheres cadastradas
Mas a plataforma foi apenas a primeira iniciativa. Depois, vieram os eventos, as palestras, as mentorias, os recrutamentos, as consultorias de cultura, os workshops, os artigos e o podcast “Job pra Ontem”.
Aprendemos que para mudar alguma coisa é preciso paciência, cuidado com a saúde mental e filtro às críticas.
Alguém sempre vai achar que a gente deveria estar fazendo isso ou aquilo enquanto a gente está ralando entre nossos cargos oficiais e nossa vida de ativista. Ou achar que a gente deveria fazer mais e que está fazendo errado.
Outro ponto de se ter uma iniciativa feminista é que, por mais gentil e respeitosa que seja a sua abordagem, lutar por uma mudança, principalmente quando envolve privilégios, vai sempre gerar em você a imagem de truculenta e difícil de lidar.
Tem também a turma que pensa que qualquer ação em prol de uma causa tem que ser de graça. E fica muito chateada quando você recusa uma palestra ou uma consultoria porque não tem “verba” para pagar o nosso preço
Por fim, a falta de recursos financeiros de um instituto sem fins lucrativos e a necessidade de “passar a sacolinha” o tempo todo é exaustivo demais. Estamos nesse ponto agora. Tivemos, inclusive, que tirar nossa plataforma do ar por conta de verba e estamos com uma campanha na Benfeitoria para viabilizar o nosso retorno com ainda mais potência.
Dá vontade, às vezes, de jogar a toalha. Mas se a pergunta é “vale a pena”? Vale.
Ver alguém se recolocando por causa da plataforma, mudando de opinião por conta de uma palestra, implementando uma mudança por ouvir nosso podcast, dá uma sensação de missão cumprida
Nosso propósito é alimentado com um turbilhão de amor e fica maior do que qualquer outra coisa. Poucas pessoas conseguem exercer seu chamado; nós estamos conseguindo.
Sem falar o quanto a MORE GRLS nos transformou. Trouxe muito mais conhecimento, tolerância, diplomacia, conexões e consciência.
Hoje somos palestrantes, podcasters, mentoras, mediadoras, conectoras. Aparecemos na mídia pela nossa causa, ganhamos acesso a mais mesas de diretoria e aprendemos muito sobre nosso privilégio
Entendemos, cada vez mais, que nossa grande fortaleza é trazer as mensagens de diversidade e inclusão para o topo das organizações.
Sempre que podemos usar espaços privilegiados para essas discussões, não perdemos a oportunidade.
Parece simples, mas não é. São conversas que não chegam sem que alguém sentado em uma das cadeiras do poder as traga para a mesa.
A última dica que damos a quem tem uma iniciativa para melhorar o mundo é: faça isso de mãos dadas com alguém.
Porque sozinha é duro demais. Eu e Camila sempre pensamos nisso. Antes de tudo, somos rede de apoio uma da outra.
Laura Florence é diretora executiva de criação da Havas Health & You Brasil, com mais de 29 anos de experiência trabalhando em agências globais mundiais, como Wunderman, Publicis, Ogilvy, R/GA, Mcgarrybowen e Lov / Isobar. Já foi membro do júri dos maiores festivais de criatividade do mundo, como Cannes Lions, One Show, El Ojo e festivais de NY. É uma feminista ativista, membro do Conselho D&I da Advertising Week, do Woman Creative Council da Havas, e orgulhosa cofundadora da MORE GRLS.
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