A energia elétrica é considerada um serviço essencial – ou seja, os seres humanos precisam dela para sobreviver. Entretanto, segundo as Nações Unidas, atualmente 760 milhões de pessoas no mundo não tem nenhum acesso à eletricidade, fenômeno conhecido como pobreza energética. No momento em que o mundo discute a transição para fontes limpas de energia, a pergunta que se faz é se esta nova economia de baixo carbono será acessível para todos – no Brasil, ainda há parte significativa da sociedade que precisa escolher entre alimentação e pagar a conta de energia.
Um dos problemas, no ponto de vista do coordenador de energia do Instituto Pólis, Clauber Leite, é que quando se fala de energia renovável há um custo envolvido, incluindo subsídio para novas matrizes, mas que é bancado por toda a população, e não apenas pelos que mais consomem. “Atualmente, quem está pagando é quem vai sofrer com o aumento da tarifa”, destaca ele, citando o consumidor.
Além desse efeito na conta, há também as consequências da própria implantação. No caso de usinas eólicas no Nordeste, o pesquisador afirma que há um deslocamento de populações para a instalação das turbinas. “Posso chamar isso de justo? Precisa-se questionar o que seria essa transição justa. Precisa ser inclusiva, com participação de pessoas envolvidas”, declara.
A questão não é impedir a transição, mas fazer com que isso seja feito de forma justa, e não com o custo recaindo sobre todos os consumidores, inclusive de baixa renda. Na legislação, segundo Leite, não há especificação sobre quais tipos de projetos para a população vulnerável seriam feitos dentro do modelo de novas matrizes energéticas.
FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA PAGAM MAIS
A coordenadora da iniciativa de energia do Instituto Clima e Sociedade (ICS), Amanda Ohara, revela que, na prática, o peso no bolso do consumidor de baixa renda é bem maior. Pesquisa do ICS com o Ipec aponta que 22% dos brasileiros já estão tendo que trocar alimentos básicos para poder pagar a conta de luz.
“E aí quando vai olhar o perfil de renda, o peso que a energia tem assumido nos gastos está para além do razoável”, explica Ohara.
De acordo com o levantamento, se a energia elétrica comprometer acima de 10% do orçamento doméstico, isso já se configura em um quadro de pobreza energética. Considerando que 55% da população brasileira ganha até dois salários mínimos, “se uma conta de luz é de R$ 200, já atinge esse patamar”.
Além do próprio consumo, há uma série de tarifas que pesam na conta. “Até subsídio à irrigação do agronegócio está incluso. Em que momento nós, como consumidores, decidimos isso?”, indaga a pesquisadora, clamando por um processo mais participativo.
Ela contextualiza: no ICS, um parceiro importante é a Rede Favela Sustentável, que trabalha em comunidades no Rio de Janeiro. “O que se percebe é que a maior parte das pessoas na clandestinidade gostaria de estar conectada ao sistema e pagando sua conta. Elas querem ter a conta de luz no nome delas, é quase um símbolo de cidadania. Mas essa conta tem que se encaixar no orçamento.”
O QUE PODE SER FEITO?
Quem consome mais também utiliza mais a infraestrutura do sistema energético, segundo a pesquisa do ICS/Ipec. Assim, a proposta é que os consumidores de baixa renda paguem uma taxa de uso de sistema menor. “Acabamos aliviando um pouco a conta dessa parcela da população sem comprometer a arrecadação do sistema elétrico como um todo”, declara Ohara.
Clauber Leite justifica que uma adição de 5% na conta de quem tem consumo de 1.000 kWh/mês já poderia reduzir em 50% a conta de famílias de baixa renda. Mas ele coloca que deveria haver uma garantia de acesso mínimo. Ou seja, algo que inclua mais do que apenas o regime tarifário diferenciado para os beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família.
“Não estamos propondo energia de graça para o pessoal abrir fábrica e consumir desenfreadamente, mas apenas de garantir o mínimo para as pessoas”, diz, referindo-se a um fornecimento mensal de energia suficiente para funcionamento de eletrodomésticos essenciais, como uma geladeira, por exemplo.
Já há um diálogo para apresentar essas propostas junto a distribuidoras de energia. “Na discussão da tarifa, não adianta só o Instituto Pólis fazer a proposta. Ela tem que ser construída trazendo benefício, com menos impacto possível para a empresas e o setor. E a gente está buscando conversar com companhias e associações.”
Mas Leite reitera que é preciso “cuidado com falsas soluções” e mesmo o “greenwash” – ou seja, a implantação da medida para “parecer” sustentável, sem causar reais mudanças significativas. “Se quer de fato contribuir e fazer a diferença, que faça com ações verdadeiras, que vão promover mudança e que inclua não só tecnologia, mas também as pessoas.”
OPORTUNIDADE
Na visão de Amanda Ohara, a proposta deve também andar em conjunto com a modernização do marco regulatório energético, que traz entre outros fatores uma segregação do custo da infraestrutura (o fio) e o da entrega da energia. Em discussão desde 2015, o Projeto de Lei nº 414/2021 está atualmente aguardando votação no Senado. “A proposta de tarifação progressiva é mais ligada à regulação. Mas, embora possa ser implantada como está agora, é importante que a correção no marco legal, separando o custo do fio e a energia, seja feita de maneira adequada”, destaca.
Outra via seria o aproveitamento da geração distribuída (GD), que atualmente está restrita a poucos consumidores por conta dos elevados custos de implantação. Para Ohara, uma política pública que permita incluir essa possibilidade em comunidades poderia inclusive promover o barateamento e digitalização do sistema.
“A transição é uma oportunidade, mas tem de ser encarada como um projeto de país. Não vai acontecer naturalmente, vai necessitar de olhar de programa social para que seja direcionado para quem mais precisa”.
***este conteúdo faz parte do Especial “Transição Energética”, promovido durante o mês de outubro de 2022 por NetZero, com o patrocínio da Melhoramentos.
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