“As pressões, a falta de perspectiva e de uma pausa no cotidiano acabam moldando CEOs encoleirados, com resultados desastrosos”

Patricia Cotton - 28 mar 2023
Patricia Cotton, fundadora do Upside Down Thinking.
Patricia Cotton - 28 mar 2023
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Dizia o poeta Vinicius de Moraes que o uísque é o melhor amigo do homem — um cão engarrafado.

Ao pensar no contrário disso, ou seja, no que seria o pior inimigo homem,  imagino imediatamente o próprio ser humano, engarrafado e encoleirado, que como o seu cão, deixa-se guiar em renúncia consentida.

É assim que tenho visto o que chamo de “CEOs encoleirados”. 

Curiosamente, os verbos “guiar” e também “chefiar” e “liderar” têm a mesma origem etimológica (do latim, conducere).

E essa missão vem se tornando massacrante nos últimos anos, à luz das pressões trazidas pela revolução digital, emergência climática, imposição (mais do que justa) da pauta ESG, novos modelos de trabalho e agravamento da crise global de saúde mental. 

Neste contexto de mais incertezas que respostas, as organizações têm enfrentado crises de forma recorrente, e o poder do líder talvez tenha se tornado artificialmente superestimado.

A pergunta que não quer calar então é: por que alguém toparia ser conduzido em tempos de mudança, quando um novo paradigma de liderança se faz necessário?

Normalmente, quanto maior uma empresa se torna, mais avessa ao risco ela tem que ser para se preservar, administrando a pressão que vem de funcionários, investidores e todos os demais stakeholders

O EXCESSO DE DEMANDAS E O PRETENSO IMEDIATISMO DELAS SÃO OS PRINCIPAIS MOTIVOS DE ENCOLEIRAMENTO E MIOPIA NAS LIDERANÇAS

De acordo com o livro The Innovator’s Dilemma, de Clayton M. Christensen, quando grandes empresas falham, muitas vezes não é porque fazem algo errado, mas porque fazem tudo certo.

O ponto crítico é que, junto ao status de CEO, há também a percepção ilusória de que o líder tem a melhor visão para a evolução do negócio, quando por vezes fazer a coisa certa requer justamente deixar de fazer as coisas corretamente, com base em experiências (ultra)passadas.

“CEOs encoleirados”, a meu ver, não estão no topo de uma estrutura piramidal como idealizam, mas sim numa espécie de ampulheta simbólica, acanhados pela falta de tempo.

Estão sobrecarregados pelos acessos trazidos pelo WhatsApp e pelas redes sociais e, sobretudo, pelas pressões de funcionários, clientes, acionistas, investidores e conselhos de administração, o que lhes deixa supostamente sem direito à desconexão e à pausa. 

A falta de perspectiva e de um respiro no cotidiano acaba moldando CEOs não apenas encoleirados, mas também “míopes”, sem visão nítida do que está distante, e com perspicácia insuficiente para perceber e entender o espírito do tempo e suas demandas reais

Isso impacta diretamente na (falta de) qualidade na tomada de decisões, resultando em ações executadas com pouca profundidade e até mesmo desastrosas. 

Por sinal, a palavra “desastre” vem do termo italiano disastro”, formado pela junção do prefixo “dis” (com valor pejorativo) e o substantivo “astro”. Dando a ideia de má estrela, no sentido de infortúnio. Toda vez que a perspectiva cósmica maior é desconsiderada, pode-se rumar ao desastre.  

Em um mundo complexo, ansioso e profundamente interdependente, não é nada simples refrescar sistemas (e olhos) cansados

O preço e o risco da renovação são altos, mas não fazê-la pode ser ainda mais custoso, já que ser ativo no vazio da reflexão dificilmente levará à real efetividade. 

DUVIDAR DO PRÓPRIO SUPERPODER PODE SER TÃO DOLOROSO QUANTO LIBERTADOR

Quanto mais micromanagement, menos management. E quanto maior (a fantasia de) controle, menor será o comprometimento genuíno dos liderados. Soa bastante óbvio — e é. 

O antídoto para a tomada de decisão desastrosa, arrisco dizer, é a elevação da consciência, do (auto)cuidado e da liberdade em relação ao fetiche da velocidade e do imediatismo, já que ir mais rápido na direção errada pode ser realmente trágico 

É preciso coragem para tentar novos caminhos, com priorização do bem-estar do CEO e de seus liderados.

É preciso também coragem para investir em estrutura organizacional que construa um ambiente mais robusto, maduro e resiliente, que permita uma maior descentralização das decisões, apostando na criação de valor no longo prazo ao invés da sua captura prematura. 

Duvidar do modus operandi e do próprio poder pode ser tão doloroso quanto libertário

Numa era que têm forjado super-humanos, talvez valha se inspirar no exemplo do líder da selva. O leão dorme até 20 horas por dia e só age quando realmente é preciso.

Não parece, mas a escolha do encoleiramento é sua.

 

Patricia Cotton é fundadora do Upside Down Thinking, metodologia de reflexão profunda que apoia indivíduos e negócios para transformarem ideias e caminhos novos em uma realidade mais criativa e efetiva por meio de processos inusitados e provocações que levam à inversão do fluxo habitual de pensamento.

 

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