Coisas que eu gostaria de ter aprendido com meu pai

Adriano Silva - 27 nov 2020
(Cena de "Pelle, O Conquistador", de Bille August.)
Adriano Silva - 27 nov 2020
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Tem um bocado de jeitos bacanas de fazer as coisas, de enxergar o mundo, com os quais vamos cruzando pela vida. Lições que reconhecemos, mas, por qualquer razão, acabamos não adotando. 

Eu queria, por exemplo, ter aprendido sobre agricultura com meu avô. Ele conhecia as épocas de plantar e colher, as fases da lua, o manejo da terra, das podas e das mudas. 

Ou talvez o meu real interesse fosse admirá-lo de longe e não aprender de fato. Venerar aquela habilidade como uma característica dele, não como algo que eu quisesse reproduzir.

Em meu pai, admiro um bocado de coisas que gostaria de ter em meu próprio repertório. (Mas que estão bem assentadas também no terreno do reconhecimento e do afeto.)

***

Penso aqui numa certa capacidade de não se levar tão a sério. Nem às coisas em volta. Não aspirar à perfeição. Não se deixar escravizar por essa ilusão. (Um dos segredos da felicidade humana é manter a expectativa e a realidade o mais perto possível uma da outra.)

E viver com leveza. Deixar rolar. Sem planejar nem controlar tanto. E ir se adaptando ao que acontecer. Sem tanto peso. Sem se cobrar tanto. Abrindo espaços na vida para a serendipity acontecer.

(Não que ele não tenha seus momentos de angústia; mas, perto do meu habitual rigor, parece às vezes que o filho é ele.)

Isso tem a ver um bocado com autoconfiança.

Meu pai sempre acreditou no próprio taco. O que resulta em menos ansiedade. Quanto mais segurança em relação a sua própria potência, menos sofrimento com o porvir. (Queria ter mais disso em mim.)

Uma certa facilidade para entrar e sair de casas, empregos e cidades. Li isso, durante bom tempo, como um gosto pelo provisório. Hoje penso que se trata de um jeito de lidar com a impermanência das coisas. (E também de aproveitar as oportunidades que vão surgindo estrada afora, sem muitos grilos.)

Meu pai cruzou pela vida, e pelas situações que se apresentaram a ele, seguindo sempre a si mesmo. De um lado, ele soube exercer o desapego. De outro, ele sempre foi seu melhor amigo. Esteve ao lado de si mesmo. Ocupou o centro do seu próprio mundo.

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Meu pai tem também uma certa elegância natural. Esbelto, qualquer roupa lhe cai bem. É bem proporcionado. Torna qualquer peça comum uma peça única. (É preciso personalidade para emprestar personalidade ao que se veste.)

Mais do que isso: ele tem presença. Chega nos lugares e ocupa o espaço ao natural. Sem fazer força. Sem arrogância.

Meu pai chama a atenção sem gerar desconforto nas pessoas, sem intimidar o outro. Conquista com seu sorriso aberto, simples, e com seu jeito de olhar, que parecem oferecer cumplicidade ao interlocutor. As pessoas ficam à vontade

fácil gostar dele. Esse é um talento que eu não tenho, e gostaria de ter.)

Eu também queria saber contar histórias como ele. Apresentar os personagens, estabelecer a cadência da fala, preparar a cena, o suspense, o plot twist – de modo espontâneo, no improviso de um causo contado à mesa de jantar.  

Da mesma forma, eu queria saber contar piadas como ele – achar o coração do humor em uma passagem e articular bem isso, com o timing certo, ressaltando os ridículos, as ironias, os absurdos, até fazer brotar o riso na cara do ouvinte. 

Sobretudo, queria dar mais risada. De mim mesmo e das coisas ao redor. Dos ridículos e absurdos que protagonizo. Das ironias que me sucedem. Com uma dose maior de irresponsabilidade, quem sabe, na gestão do meu dia a dia, das metas e compromissos que eu mesmo me imponho.

Queria ainda ter um instrumento como companheiro e confidente. (Durante algum tempo, arranhei muito mal uma bateria.)

O namoro de uma vida inteira do meu pai com o violão é bonito. Assim com a parceria mais recente que ele estabeleceu com o acordeão. A música é um prazer que ele cultiva. É bonito vê-lo cantar suas modas

Assim como é bonito vê-lo montar a cavalo. A elegância lhe aflora na postura ereta, de centauro pampeano. Ou no modo como conduz o pingo, galopando pela coxilha com o chapéu quebrado na testa e o vento sulino lhe batendo na cara – que é um jeito de ter 12 anos para sempre. (Quanto a mim, mal consigo trotar sem oferecer risco de vida a mim mesmo e ao cavalo.)

Meu pai tem uma certa sensibilidade, que às vezes aflora do seio bruto da terra, para proteger alguém em apuros, ou para cuidar de um animal em dificuldade, que é tocante.

Por fim, meu pai é comedido à mesa. Come e bebe de tudo, mas pouco. Tem por regra terminar a refeição sempre com um pouquinho de vontade. (Um preceito que eu admiro, mas que está além da minha capacidade de execução.)

E ele dorme bem. Gosta de sestear. Recolhe-se cedo, à noite, e adormece ouvindo a programação AM em seu radinho de pilha. Na manhã seguinte, acorda cedo e sai bem barbeado e bem vestido para passar seu próprio café e encarar os afazeres do dia. Eu gosto de observá-lo nessas pequenas rotinas pessoais.

***

Como sempre, é possível que esse olhar ao meu velho diga muito mais sobre mim mesmo do que sobre ele. Não importa. Me faz bem enxergar nele essas coisas que eu gostaria de ter herdado – tanto quanto aquelas que eu de fato trouxe comigo.

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV A República dos Editores.

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