Com uma agência de modelos e um programa de TV, ela põe pessoas com deficiência sob os holofotes. Conheça Kica de Castro

Dani Rosolen - 6 jun 2023
Kica de Castro, fotógrafa, agente de modelos com deficiência e apresentadora do programa "Viver Eficiente".
Dani Rosolen - 6 jun 2023
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Foi na infância, em São Caetano do Sul (SP), que Kica de Castro, 46, teve seu primeiro contato com uma pessoa com deficiência. No caso, um vizinho, também criança, que tinha alguma deficiência auditiva.

“Naquela época, brincávamos uns nos quintais dos outros, e havia esse garoto, que depois acabou se mudando… A gente nunca o excluiu nem sentia dificuldades de brincar com ele”

Kica nem imaginava que um dia colocaria seu talento a serviço da inclusão. Antes, porém, passou quatro anos em agências de publicidade, de 1996 a 2000, até dizer chega. “Aquela coisa de não ter hora para sair da agência estava me deixando completamente esgotada…”

Ela já tinha realizado alguns cursos de fotografia; decidiu investir na área, clicando eventos sociais e corporativos. E assim, em 2002, surgiu uma oportunidade diferente: chefiar o departamento de fotografia de um centro de reabilitação para pessoas com deficiência física da capital paulista.

A função de Kica era fotografar as patologias para prontuários médicos e artigos científicos. Porém, ela percebeu que a sessão de fotos era motivo de constrangimento para os pacientes:

“Quando eu ia tirar foto, pedia para eles usarem uma plaquinha com a identificação do prontuário. Não tinha como as pessoas chegarem ali, arrancarem suas roupas, ficarem de peça íntima e não se sentirem constrangidas…”

Ser clicado com roupas de baixo pode ser realmente constrangedor para qualquer pessoa; com a tal “plaquinha de identificação”, então, era quase como se os pacientes estivessem sendo fichados numa delegacia de polícia… 

Kica resolveu mudar o modo como as coisas eram feitas por lá. E essa decisão, de alguma forma, seria o pontapé inicial para, mais tarde, ela inaugurar a sua agência Kica de Castro Fotografias, focada em casting de modelos com deficiência física.

COMO TRANSFORMAR UMA SALA DE FOTOGRAFIA NUM ESTÚDIO PARA PROMOVER A AUTOESTIMA DOS PACIENTES

Kica conta que, ao ingressar no centro de reabilitação, não recebeu qualquer orientação sobre como deveria proceder com os pacientes ou como funcionavam os registros.

Os médicos, segundo ela, não tinham tempo para explicar nada. Os fisioterapeutas, por sua vez, usavam “termos muito técnicos”.

“Eu só precisava saber se era uma foto em pé ou sentada, o que era uma foto na posição ortostática, por exemplo. Comecei a entender as patologias porque fui estudar na biblioteca da instituição”

Quando se adaptou ao trabalho, no entanto, passou a notar como os pacientes chegavam desanimados para os registros. “Eu dava bom dia e ninguém respondia. Eu perguntava se estava tudo bem e era óbvio que não estava…”

Conversando com uma colega e também psicóloga na instituição, ela teve uma ideia. Num sábado, foi até a Rua 25 de Março, com 150 reais, e comprou alguns adereços e maquiagens.

“Na segunda-feira, transformei a sala num estúdio de fotografia. Aí colocava o som no último volume, deixava a pessoa se maquiar, se olhar no espelho; mas as fotos continuavam sendo no padrão da instituição, para não fugir do meu trabalho”

Os pacientes, ela conta, ficaram tão motivados que começaram a procurá-la para fazer books pessoais.

“Como nessa época eu [ainda] não tinha estúdio acessível, combinei de fazer as fotos depois do meu expediente usando o espaço da instituição. Mas não poderia deixar os custos do filme, que era analógico, e da revelação com o centro de reabilitação. Então, propus repassar esse valor para eles, que toparam.”

No dia seguinte, Kica lembra que não tinha nem tempo de checar o material fotográfico que chegava com o motoboy da revelação, porque as pessoas já estavam na porta esperando pelos envelopes.

“Elas ficavam surpreendidas porque as fotos não tinham passado por processo de manipulação: era como elas eram e estavam se sentindo muito bem vendo aquelas imagens. Então, esse foi o primeiro passo de resgate da autoestima.”

OS PACIENTES QUERIAM SER MODELOS PROFISSIONAIS. KICA VIU AÍ UMA CHANCE DE ABRIR AS PORTAS (E A CABEÇA) DO MERCADO

Com tantas pessoas procurando o “estúdio” e curtindo o resultado das fotos, Kica diz que os pacientes começaram a questionar se não haveria espaço no mercado de trabalho para eles como modelos.

“Eu contei que tinha sido publicitária antes e que poderia consultar antigos clientes. Mandei o material, gostaram, mas quando viam fotos com aparelhos ortopédicos, já tinha aquele bloqueio. ‘Ah, deixa para uma próxima, quem sabe mais para frente…’. Todo aquele blá-blá-blá que a gente já conhece”

Mas ela não desistiu. Começou a pesquisar e diz que achou muitas ações, só que na Europa, principalmente em Berlim, de concurso de beleza a reality show e publicidade com PcDs.

Marcio Monclair, modelo com deficiência visual desfilando no Senai Brasil Fashion (foto: Kica de Castro).

Só que a Europa, como os próprios pacientes reclamavam, é do outro lado do mundo… E Kica entendeu que seria ela a dar esse primeiro passo por aqui. Começou uma pós em Fotografia e, depois de concluí-la, em 2006, se sentiu preparada para montar a agência de modelos com foco em pessoas com deficiência.

Em 2007, ela abriu mão do emprego no centro de reabilitação para se dedicar ao negócio enquanto mantinha trabalhos freelancers cobrindo eventos. A agência teve início com apenas cinco agenciados, pacientes que toparam embarcar nesta jornada por acreditarem que a proposta daria certo.

“Convencer as outras pessoas com deficiência foi difícil porque elas mesmas não botavam fé, achavam que logo isso ia acabar. As empresas também não acreditavam que pessoas com deficiência conseguiriam fazer os trabalhos ou que elas eram bonitas. Tivemos que provar o contrário”

Hoje 89 pessoas — maiores de idade e de todo o Brasil – fazem parte do casting da agência e chegaram até a fotógrafa através de indicação entre os próprios modelos, pois Kica não mantém um site ou página de divulgação.

Clientes como Ronaldo Fraga, Fiat e Senai já contrataram os modelos da agência para trabalhos que vão desde comerciais e recepção de eventos até desfiles de moda de passarela. Desde a pandemia, a fotógrafa não tem mais um estúdio e aluga espaços para as fotos, conforme a demanda.

ELA É EXIGENTE COM SEUS AGENCIADOS PORQUE SABE QUE O MERCADO AINDA É CAPACITISTA E MESMO NA “DIVERSIDADE” EXISTEM PADRÕES

Kica afirma que deseja que os clientes contratem seus modelos pela qualificação e não por “coitadismo” ou por “buscarem ser politicamente corretas”.

“Por isso, os aparelhos ortopédicos — cadeira de rodas, muletas, próteses etc. — viram um acessório de moda, estão presentes na foto, mas de forma diferente”

Ela diz que para isso precisa tirar os agenciados da zona de conforto e colocá-los em posições convencionais de modelo. “Por exemplo, coloco a pessoa de ponta-cabeça com as pernas sobre a cadeira de rodas, então ela tem que estar preparada para este desafio.”

Mas por sua experiência na área, Kica conta que há todo um cuidado e estudo anterior sobre a patologia dos fotografados, inclusive ela diz que conversa com os modelos antes e com amigos da área da saúde para não lesionar ninguém durante as manipulações para as poses.

“Eu tinha o maior receio de trabalhar com pessoas com ossos de vidro, a osteogênese imperfeita. E hoje, tenho como agenciada a Val, que tem essa patologia num grau um pouco mais leve, mas tomo todo o cuidado com ela para que não sofra fratura numa sessão”

Adriana Buzelin, modelo com tetraplegia (foto: Kica de Castro).

Kica é cuidadosa, mas também, exigente. Todos os agenciados precisam ter as qualificações necessárias para esse mercado, de curso de expressão corporal a teatro.

“Modelo, como toda e qualquer profissão, precisa fazer cursos. Se não tiver, nem marco teste”, afirma.

Ela também conta que é rigorosa em relação a horários e dedicação, mas sempre alerta que essa carreira deve ser a segunda opção.

“Querendo ou não, ainda vivemos num mundo capacitista e os padrões de beleza são os mesmos. As pessoas que estão na Globo e são referência no mercado estão sentadas numa cadeira de rodas, mas o biótipo não muda, são altas, loiras, magras… Fala-se de diversidade, mas ela não é ampla”

Outros desafios para esses profissionais citados por ela são os cachês, que ainda são menores que os pagos para os modelos sem deficiência e a questão da acessibilidade dos locais de trabalho. “As empresas querem contratar pessoas com deficiência mas não sabem o que é acessibilidade.”

O TRABALHO DELA COM A AGÊNCIA LEVOU À APRESENTAÇÃO DE UM PROGRAMA DE TV COM FOCO EM PcDS

Kica não viveu exatamente da agência. Ela conta que seu ganha-pão sempre foi a cobertura fotográfica de eventos, principalmente corporativos e sociais, em especial, casamentos. Mas em 2015, seu trabalho com os modelos com deficiência já era mais conhecido e ela foi chamada para uma entrevista no programa “Viver Eficiente”, da emissora D+TV e transmitido pelo YouTube, que busca dar voz a PcDs.

“Depois da entrevista, o apresentador, que também era o dono da TV, me chamou para conversar. Disse que tinha gostado muito do que eu fazia, me achou comunicativa e perguntou se eu queria apresentar um programa”

A princípio, ela pensou melhor e achou que deveria repassar aquele convite a uma pessoa com deficiência. Indicou a modelo Caroline Marques, que ficou um ano como apresentadora do programa até sair para empreender. Depois, ainda se lançaria na política, candidatando-se a vereadora em São Bernardo do Campo (SP).

“O diretor do programa falou para eu substituir a Carol neste período de campanha e desde 2016 estou à frente da apresentação”, conta Kica.

A seleção das pautas, que sempre colocam PcDs como protagonistas, leva em conta sugestões enviadas pelo próprio público nas redes sociais, além de ideias da equipe, que tem entre os integrantes uma pessoa com nanismo e outra com autismo.

A fotógrafa-apresentadora diz que, pouco a pouco, o programa também abriu espaço para ONGs que trabalham com direitos humanos e invisibilidade social de forma geral, atuando com menores abandonados e população em situação de rua.

“Acabamos abraçando a invisibilidade social como um todo. Mas nosso foco maior são as pessoas com deficiência, tanto é que só tiramos o “D” da palavra deficiente no nome do programa, porque procuramos valorizar a capacidade e potencial de cada um”

Apesar de admitir que o programa pode melhorar em relação à acessibilidade – faltam libras e a audiodescrição, por inviabilidade financeira para disponibilizar profissionais nessas funções –, ela se diz orgulhosa de sua trajetória e da jornada do “Viver Eficiente”, que completou oito anos em maio:

“Foi no mundo da inclusão que me descobri como pessoa e me transformei em um ser humano melhor. E foi esse segmento que fez a Kica de Castro profissional existir. Sou fotógrafa da pluralidade: sem as pessoas com deficiência, eu seria apenas mais uma fotógrafa neste mundão.”

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