Como a médica Raquel Machado transformou indignação em atitude e hoje reduz os impactos do tráfico de animais silvestres

Raquel Machado - 15 jan 2021
Raquel Machado, médica e fundadora do Instituto Raquel Machado de proteção animal.
Raquel Machado - 15 jan 2021
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Minha paixão pelos animais começou desde muito cedo, quando eu ainda era uma criança. Passei grande parte da minha vida em Belo Horizonte, cidade onde nasci e que me ofereceu muitas oportunidades de ter contato com a natureza e os animais.

Na adolescência, eu praticava mountain bike em parques e reservas naturais da região, e esses eram os momentos em que eu me sentia livre e completamente feliz. 

Eu amava estar em contato com bichos, nadar em cachoeiras e aprender tudo o que podia sobre aqueles lugares que me deixavam encantada.

EM SÃO PAULO, SENTI FALTA DA NATUREZA E DECIDI BUSCAR UM REFÚGIO

Logo que me casei, há 17 anos, me mudei para São Paulo. Eu já exercia a medicina e montei a minha clínica de dermatologia, construindo carreira por aqui. 

Nessa época, comecei a sentir falta do contato que eu sempre tive com a natureza e percebi que precisava procurar um refúgio, um lugar para descansar e me conectar novamente.

Decidimos então comprar um sítio. Depois de um tempo procurando, encontrei uma propriedade à venda no município de Porto Feliz, no interior de São Paulo e, de cara, tive a certeza de que aquele era o lugar onde eu deveria estar.

UM PAPAGAIO ABANDONADO ME FEZ INGRESSAR NO MUNDO DA PROTEÇÃO ANIMAL

Logo que cheguei ao local e comecei a me familiarizar com o espaço, me deparei com um papagaio em uma gaiola que havia sido deixada pelo antigo proprietário. Era um desses bichos que são vítimas do tráfico.

Pela paixão que sempre tive por animais e pela natureza, aquela ave enjaulada e abandonada me comoveu. Eu não suportava ver um animal vivendo nestas condições

Minha intenção era soltá-lo ou encontrar uma maneira de integrá-lo novamente à natureza, e comecei a fazer algumas pesquisas.

Encontrei o Centro de Recuperação de Animais Silvestres (CRAS) de São Paulo e fui atrás de alguma alternativa para tentar uma reintrodução do pobre papagaio ao seu habitat. 

Meu primeiro contato com órgão foi um choque! Eu imaginava que uma de suas funções era soltar estes animais novamente à natureza. Porém, me deparei com a triste realidade de vida desses bichos.

Eu não tinha noção que, depois de capturados, normalmente quando filhotes, os animais silvestres perdem a condição de retornar ao seu habitat e passam a viver, de alguma forma, sobre a tutela do ser humano.   

SEM CONSEGUIR UMA SOLUÇÃO SATISFATÓRIA COM ÓRGÃOS OFICIAIS, RESOLVI AGIR

No CRAS, esses animais vivem em lugares muito pequenos, porque esse órgão é um centro de acolhimento momentâneo; de lá, esses bichos são direcionados para as mantenedoras que buscam oferecer uma condição de vida melhor para eles.  

Fiquei muito triste nesta época. Não me conformava e decidi que precisava fazer a minha parte. Como sempre foi um sonho estar envolvida em causas socioambientais, naquele momento percebi o despertar de uma nova pessoa em mim. Tinha chegado a hora de agir e fazer algo pela natureza

Procurei o Ibama e, depois de cumprir alguns passos, me tornei, em 2011, uma mantenedora autorizada do órgão, adaptando todo o meu sítio para receber animais de inúmeras espécies. Hoje, crio lá mais de 200 bichos de todos os tipos.

OS GASTOS SÃO GRANDES. INVISTO DO MEU BOLSO E CONTO COM O APOIO DE PACIENTES

Compro, mensalmente, mais de 700 quilos de ração. Faço a manutenção dos espaços e custeio todas as despesas operacionais, assim como o plantio de frutas produzidas lá.

Tudo isso exige dedicação, tempo e dinheiro. 

A forma que encontrei para fazer a mantenedora funcionar foi destinar 20% do faturamento da minha clínica dermatológica para as ações. E a iniciativa tem despertado a curiosidade de minhas pacientes. Muitas se interessam e querem saber mais

É muito bom saber que existem tantas pessoas no mundo que compartilham da minha visão e entendem a dor que eu sinto ao ver maus-tratos aos animais. 

ADQUIRI ÁREAS DE RESERVA PARA REINTRODUZIR ANIMAIS NA NATUREZA

Apesar de ter conseguido alcançar um dos meus maiores objetivos, que é oferecer uma condição de vida melhor para esses bichos vítimas do tráfico, eu ainda sentia que estava enxugando gelo. Então, decidi não parar por aí.

Fui atrás da Fundação Neotrópica do Brasil e comprei a minha primeira área de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), no Parque Nacional da Serra da Bodoquena, em Bonito (MS). Lá, comecei um projeto para reabilitação e reintrodução de animais que ainda podem retornar à natureza. 

Hoje, tenho três áreas de RPPN, onde incentivo viagens para turismo científico, faço reflorestamento e cuido dos locais para evitar a exploração ilegal de madeira

É claro que essa não é a realidade de todos os bichos que eu havia resgatado. Mas, se eu conseguisse soltar apenas um, já seria uma grande vitória na minha luta.

Não é possível simplesmente pegar um animal e reintroduzi-lo em qualquer área de mata fechada. Por exemplo, se você reintroduz uma arara em uma região não estudada, ela pode ameaçar os outros animais da mesma espécie que já habitam o local, consumindo os seus alimentos e dificultando a possibilidade de procriação.

Então, até a reintrodução deve ser feita em áreas especificas para esse tipo de ação. E adquirir uma RPPN foi um grande passo meu na época. 

PARA DESENVOLVER MAIS AÇÕES, CRIEI MEU PRÓPRIO INSTITUTO

Recentemente, durante a pandemia, decidi criar um instituto que leva o meu nome e, assim, ganhar mais força nas ações de preservação.  

Para dar conta de tudo — filhos, carreira e os assuntos do Instituto –, conto com o apoio incondicional de minha família, além de parentes, amigos e pacientes que doam tempo para ajudar a causa, atuando como mão de obra voluntária. Deixo ainda todas as minhas sextas-feiras livres só para cuidar dos trâmites do Instituto.

Também estou desenvolvendo outras ações após a criação do Instituto, adaptando a minha mantenedora para receber mais espécies de animais, como as onças-pardas. 

Esse tipo de felino está em risco de extinção e, normalmente, é vítima da caça esportiva e do tráfico. Um animal desses exige um custo muito alto para ser criado em uma mantenedora. Por isso, muitas pessoas desistem de ajudar.

O descaso do governo é muito grande para criar ações de combate ao tráfico de animais silvestres. É claro que a tutela desses bichos é de responsabilidade dos órgãos competentes. Porém, eles não têm condições de oferecer uma vida digna para os animais, muitas vezes por falta de verba, investimentos e por outras questões governamentais

Essa quarentena foi um momento-chave na minha luta socioambiental, que completou dez anos em 2020. Refleti muito sobre as minhas ações. 

O Instituto surgiu como forma de facilitar o acesso das pessoas que têm interesse em ajudar na conservação e preservação do meio ambiente. Quero conscientizar mais pessoas de forma que não comprem animais silvestres e não incentivem o tráfico.

AJUDEI A SALVAR OUSADO, MAIS UMA VÍTIMA DAS QUEIMADAS NO PANTANAL

Também em setembro de 2020, entrei para o maior projeto de preservação ambiental privado do Brasil, adquirindo uma cota da Fazenda Santa Sofia, em Bonito, para fechar um corredor de biodiversidade onde coexistirão, de modo sustentável, pecuária e ecoturismo com recursos de créditos de carbono e créditos de biodiversidade.

A onça Ousado, que ganhou grande repercussão na imprensa por ter suas patas queimadas, foi mais uma das que ajudei durante esse triste período das queimadas no Pantanal

Tenho um veterinário parceiro na região, o Jorge Salomão, que atua como responsável técnico para a Ampara Silvestre – ONG à qual estou associada como pessoa física há muitos anos. 

Raquel em sua mantenedora de Porto Feliz (SP)

Nessa época, estávamos juntos – eu, o Jorge, a Ampara Silvestre, a VIA Fauna e a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação,  em Bonito, criando um projeto para reduzir o número de atropelamentos nas estradas da região, quando as queimadas pegaram uma abrangência enorme.

O Jorge já estava recebendo os animais queimados naquele momento. E os institutos parceiros que também estavam nessa missão começaram a enfrentar dificuldades para transportar esses bichos. 

Foi aí que surgiu o caso do Ousado. O Jorge estava cuidando dele na faculdade de veterinária da Universidade Federal de Mato Grosso e o Instituto Next se ofereceu para recebê-lo e dar continuidade ao tratamento. A grande questão foi o transporte. Fui a responsável por guiá-la de Cuiabá para Goiás em uma van.

Foi uma ação que recebeu a ajuda de muitas ONGs e sociedades civis, porque o auxílio do governo não existiu. Só quando as queimadas atingiram 90% do parque nacional é que o governo foi tomar as primeiras iniciativas.

Essas foram as cenas mais tristes que já vi na minha vida. As imagens dos animais queimados ainda estão na minha cabeça. O Pantanal é um dos maiores biomas do mundo — e é nossa responsabilidade preservar esta área para as gerações futuras

Queria poder fazer mais, e estou sempre buscando formas de conscientizar as pessoas a não adquirir animais capturados pelo tráfico. Mas já me sinto realizada por sentir que minha ação está fazendo a diferença para alguns desses bichos.

Na minha caminhada, conheci pessoas incríveis que compartilham da mesma visão e isso me estimula a continuar a investir tempo na causa ambiental. Por mim, pelos meus filhos, pelas futuras gerações. Estou fazendo uma parte pequena — mas necessária e importante. 

 

Raquel Machado é médica dermatologista, defensora do direito dos animais e criadora do Instituto Raquel Machado, que ajuda a acolher e reintroduzir na natureza animais silvestres vítimas do tráfico.

 

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