A história da Mercur poderia se igualar a de muitas outras empresas tradicionais. Mais de 90 anos de atividade no mercado, 600 funcionários, um negócio que começou tímido e que hoje é uma referência em sua área.
Poderia ser “só” isso mas, em 2008, a gigante produtora de borracha (sim, a borracha de apagar que muitos de nós usamos na escola é da Mercur) antecipou-se às mudanças sociais e do mercado e mergulhou em um processo de transformação profunda em seus métodos de gestão e organização interna. Isso, hoje, a torna um case de inovação corporativa.
Fundada em 1924, na cidade de Santa Cruz do Sul (RS), a empresa começou sua trajetória com produtos derivados da borracha (além da borrachas de apagar, bolsas de água quente, entre outros). Ao longo dos anos, o portfólio aumentou e, atualmente, estende-se para produtos voltados aos segmentos de educação, saúde, artigos esportivos e soluções customizadas, conforme as demandas que surgem.
Para entender como se deu essa grande mudança e que impacto isso gera, conversamos com Jorge Hoelzel Neto, 55. Formado em Administração de Empresas pela Unisinos, ele já integrou diversas áreas da empresa, desde 1986 e conta ao Draft como seu cargo foi “rebatizado” de diretor para facilitador.
O objetivo é de romper a ideia de relação entre chefes e subordinados, inspirando-se bastante na filosofia do educador Paulo Freire. Uma das ações da empresa é promover rodas de conversa todo o mês para refletir e discutir questões cotidianas. O novo modelo de trabalho da Mercur valoriza formas de relações mais horizontais, com a formação de colegiados.
Segundo Jorge, o maior compromisso da Mercur é envolver as pessoas em primeiro lugar e, assim, criar na prática um ambiente 100% sustentável e horizontal, que seja percebido em toda cadeia produtiva — da concepção à comercialização dos produtos.
Acompanhe os principais trechos da conversa:
O que uma empresa com mais de 90 anos de história precisa fazer para se manter atual no mercado?
É uma briga complexa, sobretudo nesse mercado que flutua em cima do consumismo. O que posso dizer é que, desde 2008, estamos muito menos focados em estimular o consumo e muito mais focados em estar com as pessoas e desenvolver com elas aquilo que precisam para a sua vida. Assim, temos condições de produzir ou prestar algum serviço que seja realmente útil.
Em 2008 vocês iniciaram a mudança no modelo de gestão. De diretores, passaram a ser facilitadores, por exemplo. Como foi esse processo?
Começamos a pensar nisso em 2007 e em 2008 encontramos uma empresa de consultoria em São Paulo que trabalha com questões de estruturação de estratégias de negócio, com foco em sustentabilidade. Não a sustentabilidade marqueteira, como a gente vê — mas a sustentabilidade aplicada na estratégia da empresa.
Começamos a trabalhar internamente em como desenvolver a empresa, a partir de questões de sustentabilidade — que nós chamamos de “humano sócio ambientais”. E, bom, a gente só consegue unir pessoas para construir soluções sustentáveis quando estamos no mesmo nível de conversa.
Quando se tem uma empresa estruturada pela hierarquia tradicional com diretor, gerente, supervisor e todos os “chefes”, é muito mais difícil você juntar as pessoas para conversar, porque não há conversa e sim ordens, né?
Percebemos que precisávamos mudar o modelo de gestão para que todos pudessem ter mais voz ativa. Esse dia ficou conhecido aqui como a Virada da Chave. Passamos a trabalhar num processo de gestão muito mais horizontal do que vertical, criamos vários colegiados.
Quais outras mudanças fizeram para romper com antigos padrões?
Normalmente as empresas têm sua visão, missão e valores. Nós também tínhamos isso, mas percebemos que usávamos muito mais para o controle da ISO9000, do que como estratégia.
Então resolvemos buscar os valores e princípios dos fundadores, da década de 1920 e entender o que eles queriam para a empresa. E aí fomos trazendo a ideia deles para valores mais atualizados
Criamos novos princípios, que são hoje nossa linha mestra. Nesse contexto, existem vários projetos como, por exemplo: diminuir as emissões de gás do efeito estufa. Em 2009, fizemos a primeira medição e estamos controlando, diminuindo as emissões e fazendo plantações de árvores nativas quando não conseguimos diminuir.
Que referências vocês buscaram ao fazer essa transformação?
Precisávamos entender como criar um processo de educação que fosse sustentável para o nosso modelo de gestão. E aí o Paulo Freire é fundamental nisso, porque ele passa a régua justamente na questão da educomunicação, onde não existe a figura do professor e aluno no processo de aprendizagem, mas existe a figura das pessoas conversando e ensinando umas às outras.
[Enrique] Pichon-Rivière [psiquiatra e psicanalista argentino de origem suíça] também foi importante como base para construir essa ideia dos colegiados, para que as pessoas aprendessem a trabalhar em equipe, sem competitividade.
Como sentem o impacto da “Virada da Chave” sete anos depois?
O impacto é maravilhoso, porque você começa a perceber que todas as pessoas dentro da empresa, tanto funcionários como facilitadores, têm os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de externar as suas ideias. Todos têm muito a colaborar, muito para trazer da vida delas para dentro da empresa. Nos modelos hierarquizados não temos essa possibilidade, porque as pessoas não conseguem se expressar.
E o que não deu tão certo quanto vocês imaginavam? Quais foram as dores?
Sabe, quando você entra num círculo virtuoso é difícil de achar que as coisas não deram certo.
Quando algo não dá certo, a primeira coisa que a gente faz é reunir as pessoas para ver como arrumamos aquilo
Então você acaba não olhando mais para os problemas como uma fonte insolúvel. Hoje temos muitas rodas de conversa, em todos os níveis da empresa. Cargos, salários e funções, tudo isso é sempre muito discutido entre todos.
Qual é o maior desafio hoje, então?
O grande desafio é manter o sistema em pé e ir avançando com ele. Não podemos deixar que uma crise econômica, política ou financeira derrube o que a gente vem fazendo. Temos tido várias reuniões para colocar essas questões, principalmente pelo medo das pessoas com a crise e possíveis demissões.
Queremos sempre deixar claro que o processo na Mercur é diferente e que precisamos estar juntos. Isso requer mais autonomia e responsabilidade de todos.
É possível, na prática, subverter a lógica da indústria no que se refere à hierarquia de funcionários, sustentabilidade e orientação para o lucro?
Sim, é possível! Estamos fazendo acontecer e os resultados econômicos da empresa estão bem. Mas é claro que dá muito trabalho.
Muda a velocidade da empresa, porque sempre que você tem que conversar com mais gente, leva mais tempo para tomar algumas decisões. Por outro lado, quando as decisões são tomadas, elas são muito mais fortes
Posso afirmar que funciona muito bem, mas que é preciso de tempo para que isso se perpetue na cultura da empresa. É um processo muito jovem ainda e é natural que as pessoas tenham dúvida a respeito disso.
A Mercur tem um Laboratório de Inovação Social e o projeto Diversidade na Rua. Ambos parecem um meio de estar mais perto da comunidade, ouvindo e debatendo sobre questões de inclusão social. É isso mesmo?
Sim, além da operação de compra e venda temos alguns projetos importantes. A ideia é estar com as pessoas. O Diversidade na Rua, por exemplo, nasceu de uma inquietação: como poderíamos atuar no mercado de forma diferenciada, pensando em questões sociais? Então surgiu o problema das pessoas com deficiência, que têm pouco acesso a produtos para melhorar sua qualidade de vida. No projeto estamos sempre em contato com esse público e, assim, criamos produtos muito simples e baratos para essas necessidades.
Em uma palestra, vocês afirmam não se considerarem um case de sucesso. O que é sucesso para vocês?
É difícil, né? O que a gente percebe é que todo mundo está louco em identificar alguma novidade que faça um grande barulho, uma grande mudança. A tal da inovação…
Eu acredito que sucesso é cada um poder expressar aquilo que pensa realmente. Sucesso é poder ser quem sou e cada empresa ser o que é na essência, sem querer se espelhar nos outros
Cada lugar tem as suas qualidades e problemas, mas o que parece é que o principal interesse ainda é maximizar o capital investido. Acho que o sucesso passa muito longe disso.
Como a crise de 2015 afetou a Mercur? Com qual cenário vocês estão trabalhando para 2016?
A gente sente um pouco, alguma queda no volume de produção.
Decidimos não fazer demissões. Diminuímos a jornada de trabalho para 36 horas semanais, pelo menos temporariamente
Estamos transformando essas horas que sobram em rodas de conversa, onde vamos estimulando as pessoas com novas reflexões, treinamentos e aperfeiçoamento. E assim seguimos.
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