“Quando empresas idôneas desistem de vender para o governo, abrem espaço para quem só quer enriquecer com a verba pública”

João Soares - 10 jan 2020João Soares, CEO da Meritocracy. fundou a govtech durante um hackathon.
João Soares, CEO da Meritocracity, fundou a govtech durante um hackathon.
João Soares - 10 jan 2020
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por João Soares

Empreender em startups é uma experiência de alto risco e, consequentemente, de muito aprendizado. Agora, imagine quando três sócios (um estudante de engenharia, o hustler; um cientista de dados, o hacker; e um servidor público, o hipster) decidem inovar para avaliar o desempenho dos servidores públicos no país mais burocrático do mundo.

Como CEO da Meritocracity, minha vida de estudante mudou muito. Passei a acordar às 6 horas da manhã e não ter mais horário para dormir. Mas, quando preciso tirar um cochilo (afinal, não sou o Tony Stark), sei que sempre tenho um time “multiskillado” com quem contar. Além disso, não estivemos sozinhos. Ao longo dessa trajetória, tivemos muitos parceiros e apoiadores que nos encorajaram e nos capacitaram para seguir em frente, aos quais somos muito gratos. 

A Meritocracity foi fundada em 2018 durante um hackathon, cujo desafio era criar soluções de Data Science voltadas para saúde, segurança e cidadania.

Quando começamos, a ideia era muito simples: dar ao cidadão o poder de avaliar o serviço público da mesma forma que avalia o motorista do Uber ou o restaurante do iFood

Ficamos em terceiro lugar no Samsung Ocean Challenge e não paramos mais. Depois disso, passamos por uma avalanche de eventos, cursos, contatos, imersões, pitches e rodadas de negócios. Aprendemos que não bastava uma boa ideia, era preciso ter clareza do problema e do propósito para desenvolvermos um modelo de negócios consistente sem perder o brilho nos olhos. Decidimos, então, fazer um crowdfunding para abrir nosso CNPJ e conseguimos bater a meta de 2 mil reais para iniciarmos o negócio.

Ainda não tínhamos conhecimento das teorias da Administração de Empresas, mas usamos o raciocínio empírico do renomado consultor administrativo Peter Drucker: “Tudo o que pode ser avaliado pode ser melhorado”.

A questão central era: para que avaliar algo que já sabíamos a resposta? Se perguntarmos para a maioria dos cidadãos o que pensam da saúde, da segurança ou da educação pública, dificilmente alguém dirá que temos um serviço de excelência digno de cinco estrelas. Por outro lado, se perguntarmos o que as pessoas acham a respeito de um determinado profissional do serviço público, é provável que existam médicos e professores bem avaliados pela sua competência e dedicação

Percebemos, então, que precisávamos criar um sistema para avaliar as pessoas por trás do serviço público. Naquele momento surgia outro grande problema: como ranquear os 11,5 milhões (fonte: Atlas do Estado IPEA) de servidores públicos espalhados em diferentes regiões, com diferentes cargos e níveis de escolaridade?

Na verdade, uma parte dos servidores já é avaliada pelos próprios órgãos públicos em que trabalham. Alguns deles, inclusive, desenvolveram seus próprios softwares de avaliação de desempenho. Mas como alerta Carlos Ari Sundfeld, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, grande parte dessas avaliações periódicas de desempenho não passa de um faz de conta “para inglês ver”.

Segundo pesquisa realizada pelo Sundfeld, em São Paulo, em 2018, nove em cada dez servidores tiraram nota máxima nas avaliações. Justamente por isso, a nossa ideia foi buscar melhorar a gestão pública através da iniciativa privada, com o apoio da participação popular. Mudar uma cultura engessada e fisiológica como é o caso do setor público brasileiro é um grande desafio.

A boa notícia é que, segundo pesquisa realizada pela Arapyau, 90% dos gestores públicos municipais consideram realizar projetos de inovação em seus municípios, sendo mais da metade em inovações administrativas.

O papel de uma govtech entra aí. É solucionar as dores da gestão pública para que ela possa efetivamente solucionar as dores dos cidadãos

Os sócios da Meritocracity (da esq. à dir.): Lucas Prado, Alessandre Martins e João Soares.

A própria palavra “servidor” vem de servir a dor de alguém. É preciso entender quais as dores do cidadão para criar novos designs do setor público, centrados nos usuários de serviços públicos. Neste sentido, nosso trabalho tem como objetivo contribuir para a avaliação da experiência do usuário de serviços públicos, gerando dados e indicadores que possam orientar os gestores e tornar a administração pública mais eficiente. 

Inicialmente, nosso modelo de negócios era criar uma rede social de servidores públicos, estilo LinkedIn, que fosse aberta à população para que todos pudessem avaliar a qualidade do serviço prestado, criando uma conexão entre quem está do lado de dentro e quem está do lado fora.

Fizemos uma pesquisa de mercado e descobrimos que existiam 946 mil servidores públicos com perfis ativos no LinkedIn, sendo que para 53% deles a rede social não atendia suas necessidades como profissionais desse setor. Nesse momento, os olhos brilharam: EUREKA!

Então, depois de muita pesquisa e muitas horas de mentorias, veio a frustração: descobrimos que o próprio LinkedIn já havia tentado vender essa proposta para o governo e acabou desistindo

Enquanto trabalhávamos no MVP e validávamos o problema com alguns potenciais clientes, utilizando Design Thinking, percebemos o quanto o serviço público está atrasado em matéria de gestão de pessoas. Conceitos como nudge, KPIs ou OKRs são coisas alienígenas na esfera pública.

Os servidores, em sua maioria, são vistos apenas como recursos humanos, resumidos a números de matrícula e folhas de pagamento. Poucos órgãos adotam políticas de valorização efetivas e buscam meios de desenvolver as competências e capacidades de seus profissionais

Via de regra, se um gestor quiser saber o histórico de um servidor público ou quem é o melhor servidor de um determinado setor, precisará solicitar um relatório do pessoal do RH, que irá fornecer uma planilha em Excel. Agora, e se ele quisesse um ranking de todos os servidores do órgão que administra? Só o Governo Federal têm mais de 750 mil servidores…

Vimos aí uma grande oportunidade de contribuir para a melhoria da qualidade e da eficiência do serviço público: focar nas pessoas como o maior ativo de qualquer organização. No caso do governo, os servidores são os agentes capazes de gerar valor público para toda a sociedade. Isso tem ficado muito claro para nós em cada passo de nossa jornada.

Temos conhecido pessoas incríveis dentro do setor público que estão realmente empenhadas em fazer a diferença e que são praticamente invisíveis para a sociedade

Fizemos uma pesquisa com mais de 450 pessoas (27 gestores públicos, 147 servidores públicos e 248 usuários do serviço público), o que nos permitiu estabelecer uma relação mais próxima de empatia com essas personas. Para se ter noção de como temos uma visão equivocada dos profissionais do serviço público, quando perguntamos a eles qual prêmio gostariam de receber como recompensa pelo seu desempenho, a maioria respondeu “cursos de capacitação”. 

Pensando nisso, desenvolvemos a arquitetura de avaliação que batizamos de 3D. Nela, o servidor público sai do anonimato e passa a interagir avaliando a si mesmo, o órgão em que trabalha, seu superior, seus pares e seus subordinados, se houver, de acordo com alguns critérios padrão da plataforma.

O que dá o efeito da terceira dimensão é a avaliação externa dos cidadãos, criando assim uma vitrine para dar visibilidade aos servidores que estão fazendo a diferença e merecem ser valorizados pelo seu trabalho. Toda essa estrutura é baseada em um critério de corresponsabilidade, que faz com que as notas dos subordinados impactem as notas dos seus superiores. 

Como costumamos dizer, o mercado de govtechs é uma caçada de mamutes, os clientes são gigantes (os gastos do setor público representam mais de 40% do PIB), mas é preciso um pouco de paciência e muita criatividade para conseguir pegá-los

Muitas startups nunca pensaram em vender para o governo e as que já tentaram acabaram desistindo devido aos obstáculos pelo caminho. De fato, vender para o governo não é fácil, mas quem disse que empreender é buscar o caminho mais simples?

Quando empresas idôneas e com produtos de qualidade desistem de fornecer suas soluções para o governo, deixam as portas abertas para aquelas que buscam apenas se locupletar do dinheiro público.

O Estado está em toda parte, em tudo que fazemos, desde a emissão da certidão de nascimento até o registro do CNPJ, a contratação de seus empregados, os impostos do seu produto, o alvará do seu imóvel e, por fim, na sua certidão de óbito. Logo, é um cliente que tem o poder de impactar a vida de milhares de pessoas com uma única compra. Quando a gestão pública investe em tecnologia, pode obter economias significativas.

Segundo pesquisas do Instituto Public, o mercado de govtechs irá movimentar até 2025 em todo mundo aproximadamente 400 bilhões de dólares (mais do que fintechs e proptechs). Em contrapartida, esse investimento representará uma economia global de 1 trilhão de dólares para os cofres públicos a cada ano, segundo números da Accenture e McKinsey. Para startups que buscam escalabilidade, esta pode ser uma oportunidade de ouro — e que muitas desperdiçam. 

Nós acreditamos que, ao conhecer melhor as pessoas por trás do serviço público, podemos torná-lo muito melhor na visão da sociedade. Afinal, não existe qualidade do serviço público sem servidores públicos de qualidade

Temos uma tecnologia inovadora capaz de gerar os dados e indicadores necessários para isso. Agora precisamos contar com o apoio de gestores e dos cidadãos para, juntos, criarmos uma cultura de meritocracia real no setor público.

 

João Soares, 22 anos, é estudante de Engenharia Elétrica na Universidade Federal do Amazonas e CEO da Meritocracity.

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