Era 10 de julho de 2014. Três dias após o fatídico Alemanha 7 x 1, talvez a data mais marcante do ano, quando aquele clima de ressaca ainda dominava o país, a cidade e o escritório. Este foi o dia da minha (aparente) tragédia. Pela primeira vez, em 15 anos de carreira, eu era demitido. De certo modo, recordando o que passou, posso dizer que foi uma demissão cavada como um pênalti sofrido por Fred, o que não atenuou um sentimento de fracasso e rejeição, embora o alívio tenha sido a sensação mais marcante daquele momento.
Depois de nove meses atuando como gerente sênior do portal de conteúdo da Microsoft, o MSN, eu vinha sendo frequentemente confrontado pelo meu chefe sobre meus planos para o futuro dentro da companhia. Ele queria saber se me sentia imbuído da missão da empresa o suficiente para um dia vir a ocupar sua posição de diretor. Não é muito comum cogitar-se tal ascensão em menos de um ano de emprego, mas durante o exigente processo seletivo ficou claro que meu superior planejava sua saída e que procurava alguém para substitui-lo.
Na prática, minha motivação ali durou, se muito, 90 dias. Isso porque a firma funcionava de modo tão matricial que era praticamente impossível aplicar soluções locais para desafios locais. Mesmo como líder da equipe, me via como um mero interlocutor da matriz, filtrando informações e tentando, geralmente em vão, motivar o restante das pessoas. É sabido que muitas empresas globais têm buscado aperfeiçoar e acelerar cada vez mais a aplicação de estratégias, naquilo que se chama de “efeito cascata”.
De Bangladesh ao Chile, tudo deve ser ‘standarizado’ para que se tenha o maior alcance dentro do menor custo e do menor tempo possíveis. Este mantra, em teoria, é a chave para o êxito de muitas companhias na insana corrida global pela preferência dos consumidores. Ocorre, porém, que na área de mídia as coisas não são tão simples. Hábitos e necessidades de consumo de conteúdo jornalístico variam largamente de país para país. Tanto que as empresas de mídia mais bem sucedidas quase sempre são as caseiras, aquelas que têm foco na compreensão de sua audiência, cuja necessidade de cultura e conhecimento é extremamente particular.
A PASMACEIRA CRIATIVA E SEUS EFEITOS INSONDÁVEIS
Outro fator que acentuava minha sensação de pasmaceira criativa era o notório desequilíbrio entre os interesses da publicidade e do jornalismo naquele negócio. Havia uma forte pressão para que os números de audiência fossem alcançados e, desde meus primeiros dias, essa obsessão já se mostrava impregnada em boa parte da equipe.
A sensação era de estar num ambiente em que muitos haviam sido cooptados por aquele sistema de tal modo que não tinham condições de questioná-lo. Quando eu fazia isso, me sentia tolo. Em regra, novas ideias eram rechaçadas pela ameaça que elas poderiam representar às já manjadas técnicas que garantiam um patamar de cliques e de exposição de banners suficientes para a saúde financeira do business.
Entendo que hoje a maior parte dos veículos online de massa pauta-se pelas redes sociais mais do que o razoável, terceirizando ao leitor a responsabilidade de determinar critérios e avaliar a importância das manchetes que são destacas em suas populares páginas (cerca de 40 milhões de pessoas visitam yahoo.com.br e msn.com.br, somados, todos os meses segundo a ComScore). Há uma supervalorização da personalização do conteúdo, o que do ponto de vista tecnológico simplifica muito os processos de publicação e hierarquização das notícias, diminuindo custos e aumentando margens de lucro, mas que por outro lado empobrece o leitor, que fica cada vez mais imerso somente em suas ilhas de interesse.
No meu entender, o jornalismo de massa, especialmente num ambiente livre como a internet, deveria buscar mais equilíbrio, tentando falar mais do que as pessoas precisam saber e menos do que elas querem saber. O jornalismo não tem como função primária educar, mas poderia cumprir um papel melhor neste esforço tão caro à nossa sociedade.
Cada vez mais, no entanto, a maioria dos grandes portais sucumbe ao conforto de oferecer histórias curiosas, de relevância duvidosa, pois garantem grandes audiências e a sustentação do modelo de venda de publicidade digital. Eu conhecia as regras deste jogo, mas sentindo que elas eram mais severas no meu novo emprego, comecei a me questionar duramente sobre o que estava fazendo.
Entendi que minhas opções naquela posição eram: assumir o papel de fiel da balança, buscando aliados internos para tentar equilibrar o quadro; resignar-me, fazer apenas o que me pediam e receber meu salário de boca fechada; ou ser amassado pelo rolo compressor e ejetado pelo sistema. Procurei impor-me a alternativa mais desafiante dentre as existentes, que era tentar mudar o cenário. Se ela falhasse, teria que sair do jogo ou continuar aceitando-o.
As reuniões de pauta que eu liderava, por exemplo, mostravam-se pouco úteis. Notícias e amenidades, que nunca poderiam ser apuradas por nós, tinham que ser pinçadas entre o que nos era oferecido por agências e outros sites, que lutavam entre si por espaço dentro do portal. Muitos deles, segmentados, bem produzidos, se viam preteridos por conteúdos não tão bem acabados, mas que continham exatamente o que o grosso da audiência estava buscando nas redes sociais: bizarrices, factoides esdrúxulos sobre celebridades, curiosidades amorfas dos esportes, dicas sobre como ser um indivíduo melhor para si mesmo, especialmente com dinheiro, e, claro, guias instantâneos de como ser mais bonito para chegar mais próximo da imagem das tais celebridades.
A crescente constatação de que eu tinha responsabilidade neste ciclo vicioso, em que veículos de massa limitam-se a entregar o que sua audiência deseja, foi intensificando minha sensação:
Eu tinha um ótimo emprego, mas não um trabalho do qual me orgulhava.
Quando me perguntavam o que eu fazia, respondia com uma ponta de vergonha. Era cada vez mais claro que minhas mãos estavam sujas. Três dias antes da minha demissão, quando o país olhava atônito para o baile alemão em Belo Horizonte, fui confrontado. Meu chefe notava que eu não andava feliz, sabia que eu estava operando no piloto-automático da desilusão. Já tínhamos tido outros papos sobre o sentido de tudo aquilo, entre uma reunião de trabalho e outra, e eu sempre me mostrava relutante em condescender. Desta vez, entrei em sua sala e na hora senti o clima de ultimato.
FUI DEMITIDO? QUE BOM!
Ele me perguntou de forma direta se eu me sentia motivado a ocupar seu lugar dali alguns meses, se eu acreditava naquele projeto que me diziam que eu estava ajudando a liderar, envolvendo os esforços de dezenas de pessoas que compunham o time responsável por ‘cascatear’ as soluções gringas pensadas para usuários do hemisfério norte. Era um momento de grandes mudanças na estratégia da empresa. Projetos que estavam sendo retardados há anos finalmente pareciam à beira da execução. Era necessária a liderança de alguém comprometido.
Naquela hora, pensei nas coisas práticas da vida, no meu salário, nas contas para pagar, nos meus sonhos que precisam de dinheiro para se concretizarem. Talvez fosse o momento de abrir a guarda, dizer que ia rever minha postura, que colocaria a faca nos dentes para segurar meu excelente emprego, minhas ações, meu carro corporativo e outros fantásticos benefícios que fizeram meus olhos brilharem quando decidi aplicar para aquela vaga. Mas simplesmente não consegui. Não pensei no que iria acontecer depois daquilo, mas cedi ao meu desejo de liberdade, de agir como eu penso.
Não conseguiria ser um profissional tão diferente de quem eu realmente sou. A resposta, afinal, foi algo como “Não, chefe. Agradeço muito a oportunidade, mas não acredito nisso e não tenho motivação para seguir, mesmo que como recompensa suba na hierarquia (tendo um salário ainda mais ótimo, um carro corporativo com ainda mais airbags e um pacote de ações ainda mais generoso)“. Dizer isso e sair daquela sala foi um dos maiores alívios que senti na vida. Três dias depois fui agraciado com uma carta de demissão.
Antes deste emprego, trabalhei por nove anos no Yahoo, também uma multinacional, também um gigante da tecnologia. Quando comecei minha trilha por lá, porém, a filial tupiniquim havia sido aberta há poucos anos, era praticamente uma startup. Ali pude ser criativo, aprender errando, ganhar respeito e confiança mais pelas minhas ideias do que apenas por ser um bom executor de estratégias globais megalomaníacas, até porque elas demoravam muito para serem aplicadas nos países periféricos.
COMO CHEGUEI A ESTE PONTO
No Yahoo, tive amplo respaldo para criar soluções locais, aproveitando ao máximo uma certa negligência da matriz em relação ao que acontecia debaixo da linha do equador. Depois, fui transferido para trabalhar dois anos fora do Brasil. Entre Argentina, EUA e México, viajei muito, evoluí como pessoa, aprendi mais sobre o business, ampliando bastante minha área de atuação e influência. Fui chamado a voltar para São Paulo e, com 26 anos me tornei gerente geral de conteúdo do portal, quando montei uma área praticamente do zero, criando processos, gerenciando orçamentos, estruturando equipes. Subi o quanto pude, até que a padronização da maneira de trabalhar intensificou-se de tal modo que eu já não conseguia transitar com agilidade na zona criativa da ‘negligência positiva’. O negócio de conteúdo também vinha mostrando sinais de fragilidade e a empresa passou a investir em outros focos. Era hora de mudar de ares.
Quando resolvi trocar de emprego, imaginei que era por que o Yahoo estava me transformando em um burocrata. Mas, depois da minha experiência frustrada na Microsoft, vi que o que não estava me satisfazendo na verdade era aquele papel de manter as aparências, de se conformar com as coisas como elas são só porque teria mais uma bela cota de ações para sacar no próximo trimestre. Era a síndrome da gaiola dourada sufocando meu desejo de que o trabalho me sacie como pessoa no dia a dia, não apenas na hora de abocanhar meus bônus.
Depois de perceber o motivo de minha decepção, ao observar que só havia mudado de endereço e estava ganhando um pouco a mais, pensei que talvez meu erro pudesse ser o descompasso nas buscas por trabalhos relacionados a minha formação original como jornalista em empresas estrangeiras em que esta não é uma área de foco. Estava querendo trabalhar com conteúdo em multinacionais que nunca iriam liderar este segmento de modo sustentável, se não no mundo, certamente não no Brasil.
Por isso, meses antes da consumação da minha demissão, andei participando de alguns processos seletivos em outras .com, mas buscando posições no marketing e em vendas, que geralmente são áreas mais adaptáveis às realidades locais, em que eu poderia enxergar horizontes mais animadores. Já em agosto, uma das possibilidades foi se concretizando, também numa companhia global, mas muito mais dinâmica e promissora do que as anteriores. Eu estava realmente sendo cativado por esta empresa e fiquei semanas na expectativa de fazer um ‘shift’, como dizem por aí, na minha carreira. Mas alguns dias em casa me deram clareza para decidir que era o momento de parar com tudo. Foi quando me excluí do processo seletivo, para organizar minhas ideias e minhas ambições. Ao recapitular minha trajetória, sabendo que havia galgado postos altos ainda jovem, decidi que era a hora de me dar uma espécie de inter-aposentadoria.
Eu precisava parar. Não para descansar, mas para interromper um caminho que estava me transformando num típico carreirista profissional.
Precisava, então, fazer uma avaliação real sobre o retorno de investimento por ter de me enquadrar no modus operandi do mercado, sempre mirando a próxima promoção, que além de mais dinheiro e status, iria me trazer ainda mais horas no escritório, mais reuniões insossas e mais concessões ideológicas. A vida estava começando a ficar muito complicada em nome de benefícios que precisavam ser questionados. O sentido do trabalho formal ficou em suspenso e era hora de buscar alternativas.
UMA VOLTA AO MUNDO PARA AREJAR
Por ter começado a ganhar bem ainda novo, mas principalmente por ter me esforçado nos últimos tempos para viver em um patamar de consumo abaixo das minhas receitas, eu já tinha conseguido juntar o suficiente para garantir uma morada e cultivar um pé de meia visando um projeto pessoal. Imaginava que meu caixa seria usado para investir em algum negócio, já que há um bom tempo tenho procurado me aprofundar em outras áreas de interesse perseguindo a tão sonhada combinação entre paixão e trabalho.
Além da comunicação e da tecnologia, áreas que me formaram e me fascinam, nos últimos anos tenho procurado aprofundar meus conhecimentos e experiências em outras praias como agricultura, marcenaria, gastronomia e turismo, sempre imaginando brechas que possam me levar a uma sacada que gere um empreendimento. Embora ainda não tenha encontrado uma resposta cristalina sobre o que fazer, decidi investir meu dinheiro num exercício que me traga ainda mais clareza para dar este próximo passo. Nesta reflexão, tomei em conta meu prazer por viajar e resolvi realizar um sonho que tinha desde criança: dar a volta ao mundo.
Devo aos empregos que tive o privilégio de ter tomado gosto por viajar, o que acabou reforçando este desejo. Pois então, sem muito pestanejar, e com a fiel e imprescindível parceria de minha mulher, Maria, que compartilha de muitas destas reflexões e também investiu suas economias, decidimos transformar tal sonho em um projeto. Hoje ele está em franca execução, já que escrevo estas confissões aqui na aprazível Auckland, Nova Zelândia. (Resolvemos começar nossa viagem por aqui, onde vamos morar até meados de março, estudando e trabalhando. Depois seguimos para Austrália, sudeste asiático, Índia, Sri Lanka, Europa, e Américas. Mais informações no blog A Que Ponto Chegamos)
A viagem de volta ao mundo é uma iniciativa que exige muito planejamento e algum recurso (investiremos, ao largo de 12 meses, cerca de 100 mil reais) e que, mesmo antes de começar já se provou um exercício extremamente concreto de questionamento do sentido da vida e da relação entre tempo, trabalho, dinheiro e consumo. Empreender neste plano é levar a cabo, de maneira extrema, a ideia de que é preciso estar em constante mudança para ser uma pessoa mais versátil, adaptável e corajosa. Entre as buscas mais objetivas desta jornada, uma delas é procurar viver uma rotina mais simples, para que na volta para casa o dinheiro não pese tanto na hora de escolher um emprego.
Acredito que isso pode ser alcançado ao observar a hierarquia de valores de outras sociedades, conhecer in loco alternativas ao american way-of-life, tão remedado na sociedade brasileira, especialmente na vida em uma cidade como São Paulo. A necessidade é outro fator que deve colaborar para este aprendizado, já que em nosso novo dia a dia, com dinheiro contado, todo e qualquer gasto tem que ser pensado e repensado. Quando não se tem dinheiro entrando, muitas coisas além de comer, dormir e se transportar soam supérfluas. Outra ideia que me motiva é observar, nos cerca de 30 países que pretendemos visitar, maneiras de se fazer negócios, dentro ou fora das minhas áreas de interesse, que possam ser viabilizados à brasileira.
Neste tempo fora de casa quero ir muito além do turismo. Não pretendo frequentar restaurantes estrelados nem subir em ônibus sightseeing. Vou procurar viver a vida dos lugares de uma maneira real, me misturar e absorver o que for possível de suas culturas, das relações entre as pessoas com suas crenças, seus modos de produzir e consumir. Acredito que nada melhor do que ir a campo para estar aberto a sensações e sentimentos que me ajudem a entender ainda melhor de onde vim e o que de fato quero ser.
Viajo buscando exercitar o respeito à diferença, o desapego das coisas, a capacidade de contemplar para entender melhor como posso ser ainda mais útil para o mundo que me cerca.
Nos próximos 365 dias, pretendo também desburocratizar meu ofício. Trabalhando como repórter freelancer, quero voltar às origens da minha escolha pelo jornalismo, voltar a sentir prazer por apenas contar histórias interessantes, já que mesmo em meio aos meus questionamentos íntimos, não quero deixar de levar o que vejo a outras pessoas.
Neste momento é difícil precisar o quero fazer quando voltar, mas tenho certeza que tudo há de ser mais simples.
Na adolescência, Alon Sochaczewski ganhou uma prancha de surfe e um computador. Surgiam ali duas paixões que impactariam para sempre a sua vida e o inspirariam a fundar a Pipeline Capital, empresa de M&A com foco em negócios de tecnologia.
Criado no interior gaúcho, Alsones Balestrin fez do seu doutorado na França um trampolim para voos mais altos. Foi secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia do RS e hoje capacita empreendedores por meio da edtech Startup Academy.
A falência do pai marcou a infância e mudou a vida de Edu Paraske. Ele conta os perrengues que superou até decolar na carreira – e por que largou a estabilidade corporativa para empreender uma consultoria e uma startup de educação.