Contra o sexismo no universo das startups: elas rodaram 24 países e ouviram 300 mulheres que precisam brigar para empreender

Fernanda Moura e Taciana Mello - 9 jul 2021
Fernanda (à esq.) e Taciana em frente ao Palácio dos Omíadas, na Cidadela de Amã, na Jordânia.
Fernanda Moura e Taciana Mello - 9 jul 2021
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“E se a gente saísse pelo mundo buscando histórias de empreendedoras?” Foi mais ou menos assim que começou a história do The Girls on the Road (veja aqui o trailer). Mas, para entender melhor, é preciso voltar alguns — na verdade —  vários passos.

Em 2013, a gente tomou a decisão de morar nos Estados Unidos. Até então, as nossas carreiras seguiam a evolução esperada, mas quisemos arriscar.

Deixamos as posições confortáveis em firmas de consultoria e iniciamos um período de “volta à escola” em vários sentidos: país novo, uma nova dinâmica, novos desafios, novas amizades.

Por mais que a gente já tivesse morado fora, quando você compra a passagem só de ida, a história muda. O frio na barriga é mais intenso, os questionamentos mais presentes. Foram tantos “e se…” que a gente perdeu a conta dos diversos cenários considerados

Mas quando você acredita em si mesma, antes mesmo de acreditar em algo, tudo muda. As possibilidades e oportunidades vão se estruturando, o horizonte vai se abrindo, as dificuldades vão tomando sua real dimensão.

FIZEMOS ALGUNS BICOS  ENQUANTO CONHECÍAMOS O VALE DO SILÍCIO

Ter a poupança em real e gastar em dólar, no entanto, é angustiante. Como estudante, status que a gente tinha nos Estados Unidos, era possível trabalhar legalmente apenas 20 horas por semana. E foi essa a solução.

Auxiliar de cozinha aqui, trabalhar como pesquisadora ali. E assim fomos levando, ao mesmo tempo em que a gente construía algumas conexões no Vale do Silício

Afinal, conhecer a principal referência quando se fala em empreendedorismo era um interesse quase natural para quem vinha do mundo corporativo.

A região do Vale reúne uma variedade de oportunidades de relacionamento e conhecimento impressionantes. E, importante ressaltar, muita coisa de graça.

Tudo que a gente precisava para um orçamento restrito. Aos poucos, fomos nos envolvendo nesse ambiente, conhecendo pessoas, entendendo mais a fundo o que faz, daquela parte do mundo, a “meca” do empreendedorismo. Fomos, enfim, aprendendo como são construídos os negócios que têm revolucionado as nossas vidas.

ONDE ESTÃO AS MULHERES NO ECOSSISTEMA EMPREENDEDOR?

E, aos poucos, a gente se deu conta de algo que foi adquirindo um tamanho muito maior.

No meio de tanta inovação, tanta disrupção, modelos de negócio revolucionários, investimentos milionários, startups surgindo como cogumelos, começamos a nos perguntar: onde estão as mulheres fundadoras de empresas?

Nesse momento, a semente do The Girls on the Road foi plantada. Tudo começou com uma curiosidade, que foi se transformando em questionamentos mais profundos — e, finalmente, em uma profunda paixão pelo assunto.

É preciso dizer que nas nossas vidas, até então, a questão do feminismo, o papel da mulher, as inúmeras violências morais (e físicas) e as limitações que as mulheres ainda enfrentam não faziam parte do nosso dia a dia. Dê a isso o nome de privilégio — e sim, é isso mesmo

A gente veio de ambientes onde nos foram dadas escolhas, oportunidades oferecidas, espaço e recursos para nos desenvolver. Sempre fomos profundamente privilegiadas.

Nunca paramos para pensar e entender com a profundidade necessária por que há milhões de mulheres a quem são negados os direitos mais básicos e os recursos existente para mudar essa rotina.

Mulheres cujas vidas são moldadas pelo preconceito, pelo sexismo, pela misoginia. Essa foi a primeira grande realização daquele nosso momento.

DECIDIMOS DAR VISIBILIDADE A NEGÓCIOS PROTAGONIZADOS POR MULHERES

Depois desse “soco no estômago”, a gente foi procurar entender. Estudos, pesquisas, documentários, TEDTalks… Entender o mundo empreendedor feminino tornou-se o nosso foco.

E num dia qualquer, em março de 2016, tivemos uma conversa que levou à pergunta inicial desse artigo: “E se a gente saísse pelo mundo buscando histórias de empreendedoras?”.

Essa pergunta específica tinha uma razão muito clara. Dentre os inúmeros motivos que ainda impedem mulheres de se lançarem no universo empreendedor está a falta de exemplos, de referências

Por ser ainda infinitamente menor, o número de histórias contadas sobre mulheres impacta negativamente a percepção daquelas que têm o desejo de seguir esse caminho.

A resposta foi um enfático “por que não?”, seguido por um nervoso “e agora?”. Trazer essas histórias, a gente pensou, seria a nossa contribuição para alterar essa percepção de que empreendedorismo é um mundo somente para homens.

Da ideia à ação foi rápido. Embora sem nenhuma experiência, decidimos que seria um documentário. Como? A gente ia aprender.

BUSCAMOS MUITA AJUDA E PUDEMOS CONTAR COM UMA REDE DE APOIO LINDA

O primeiro movimento foi compartilhar a ideia. Faz sentido? Haveria interesse? Como dar o primeiro passo?

Essas e outras perguntas foram feitas para pessoas de diferentes perfis. Teve gente que achou que nós tínhamos pirado, no bom sentido, mas em nenhum momento duvidou da nossa capacidade.

No começo, pedimos ajuda (no meio e no fim, também). Muita ajuda. Essa história de “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”, na nossa opinião, só funcionou para o Glauber Rocha

Pedimos ajuda para entender do que íamos precisar, que equipamento caberia no bolso, produzindo material de qualidade; como escrever um roteiro de perguntas que fizesse sentido; como pesquisar os países selecionados; e, principalmente, como identificar empreendedoras.

Tivemos uma produtora que acreditou na gente e foi nosso “anjo da guarda”, durante e após o encerramento do projeto.

Outro grande aprendizado foi a confirmação de que ninguém é uma ilha — e que as pessoas estão muito mais dispostas a ajudar do que a gente pensa.

ALTOS E BAIXOS: DA BUSCA POR PATROCÍNIO ATÉ O MANEJO DOS EQUIPAMENTOS

Porém, nem tudo foi fácil, pelo contrário. Dinheiro foi uma questão desde o primeiro momento. Não conseguimos patrocínio — e olha que batemos em muita porta, inclusive de gente que “braveja” apoio ao empreendedorismo feminino aos quatro ventos.

Ninguém tinha obrigação, óbvio, de investir no projeto. Mas foi, no mínimo, decepcionante ouvir de alguns big players que “mulher não estava na pauta” daquele ano. Como é que mais de 50% da população mundial saem de pauta?

Aprender a usar o equipamento também foi um megadesafio. Imagine ter aulas de filmagem ”à distância”? Nas nossas primeiras entrevistas, ou o som ficava cristalino ou as imagens eram fantásticas… Ter os dois ao mesmo tempo demorou um pouco.

Com a empreendedora Teta Isibo, de Ruanda.

Além da nossa falta de habilidade, houve vários momento de dúvida, de questionamento interno, de “vales” em um caminho que se mostrou surpreendente em vários sentidos.

Uma lição gerada a partir de muita observação e conversa foi que os momentos de dúvida de uma eram equilibrados pelos momentos de energia da outra.

As duas para baixo geravam momentos muito difíceis… Se pensamos em desistir? Sim, inúmeras vezes. Quem empreende sabe que o pensamento de desistir pode durar um segundo, mas ele bate à porta.

RODAMOS 24 PAÍSES EM 15 MESES EM BUSCA DE HISTÓRIAS DE MULHERES EMPREENDEDORAS

Escolher esses países foi outro desafio, mas tomamos como base relatórios sobre o tema. Trazer uma diversidade geográfica, cultural e econômica foi o nosso norte na seleção.

Seria tão importante entrevistar mulheres nos Estados Unidos quanto no Líbano. Entender como Ruanda transformou-se numa referência em participação feminina na sociedade ou como Cuba, aos poucos, vem se abrindo ao empreendedorismo… Tudo isso era fundamental

Ou, ainda, como a China transformou-se em um celeiro de empreendedorismo, enquanto a França busca ser o “Vale do Silício europeu” e a Nova Zelândia, o refúgio de empreendedoras de todo o mundo, eram histórias que a gente precisava mostrar —pela ótica das mulheres, claro.

Seguimos o verão pelos continentes/regiões do roteiro. Em julho de 2016, começamos pela América do Norte (Estados Unidos, México e Canadá), dali para a Ásia (Japão, Coreia do Sul, China, Cingapura e Malásia) e um dos contrastes sociais mais intensos da estrada.

Austrália e Nova Zelândia mostraram uma Oceania receptiva e cheia de descobertas. Depois, América Latina (Brasil, Chile e Cuba), Europa (Alemanha, Noruega, Portugal, França e Rússia), uma passagem impactante pelo Oriente Médio (Líbano, Jordânia e Israel), um retorno à Ásia (Índia) e a finalização grandiosa na África (Quênia e Ruanda).

APRENDEMOS QUE NÃO HÁ JEITO CERTO. MAS É PRECISO COMEÇAR, DAR O PRIMEIRO PASSO!

Carregar mochila de equipamento e uma mala de roupa provou que a gente precisa de muito pouco para sobreviver. A mala de equipamentos terminou intacta. A de roupas foi reduzida a um terço do volume inicial e virou uma mochila.

A cada duas ou três semanas, nossa rotina transformou-se em um mix de modais de transporte, novos idiomas e tradições locais, uma variedade monumental de experiências e a certeza de que não existe apenas uma forma “certa” de fazer as coisas, de se comportar ou entender uma situação.

O exercício diário e contínuo da empatia foi um aprendizado para a vida. Não é porque a gente não faz de um determinado jeito que está errado

Não é porque a gente não está acostumada a fazer xixi de cócoras que as chinesas estão erradas. Aliás, aprendemos que a gravidade é nossa aliada nesse quesito.

Com Amy Blair e as colaboradoras da Batik Boutique, em Kuala Lumpur, na Malásia.

Foram mais de 300 empreendedoras que toparam sentar conosco e compartilhar suas histórias. Mulheres com trajetórias variadas, à frente de negócios com tamanhos distintos, atuando em segmentos que variam de moda à biotecnologia, de segurança da informação ao ramo automotivo, do varejo aos serviços financeiros.

Elas resolveram empreender porque quiseram, ou porque precisaram, ou porque viram uma oportunidade para transformar.

Batemos na porta de todas elas com uma proposta simples: topa dividir a sua história com outras mulheres para que possam se inspirar e agir? Toparam.

Depois de quase 100 mil quilômetros, um livro publicado, o Do Jeito Delas (2018), e um documentário lançado, Do Nosso Jeito (2021), disponível nas plataformas Now e Vivo Play, a grande lição que a gente tirou é a de que não há um “momento certo”

Nunca vamos estar “100% prontas” para dar início a uma jornada. Mas a decisão de começar tem uma força descomunal. Foi isso que levou  essas mulheres — e nós — adiante.

 

Fernanda Moura, 46, é advogada, consultora em Gestão de Projetos, ex-triatleta e apaixonada por culinária. Sempre foi “cidadã do mundo” competindo ou trabalhando. Desde 2016, com o projeto The Girls on the Road, ela tem explorado o ambiente empreendedor focado em mulheres ao redor do mundo.

Taciana Mello, 52, é marqueteira por formação e paixão. Tornou-se uma “caçadora de inspiração” com a criação do projeto The Girls on the Road. Nessas novas estradas, foi explorar as áreas de Antropologia, Relações Interculturais e Design Thinking, além do mundo do empreendedorismo.

 

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