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“Cresça e apareça”, ele ouviu ao idealizar um centro cultural. Hoje, 25 anos depois, o Veras promove arte, ioga e agroecologia em Floripa

Pâmela Carbonari - 10 jun 2024
Josué Mattos, idealizador do Centro Cultural Veras (foto: Soninha Vill).
Pâmela Carbonari - 10 jun 2024
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Existem dois tipos de negócios: os que surgem de oportunidades e o que os nascem de sonhos. O Centro Cultural Veras (CCV), em Florianópolis, é um exemplo desse último.

O Veras, como é chamado pela comunidade, é uma iniciativa que une arte, ioga, educação e sustentabilidade. Apesar de estar em atividade há apenas dois anos, é um projeto que há décadas acompanha seu idealizador, Josué Mattos.

O prédio de tijolos à vista, amplas janelas e cobogós chama a atenção no Córrego Grande, bairro que liga as duas principais universidades do estado —  a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e a Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) –, na região central da Ilha de Santa Catarina. Em essência, é um centro que contempla a arte em suas diferentes perspectivas.

“Dizem os vedas e as ancestralidades que a arte se constrói a partir de algum processo intelectual, algum desenvolvimento espiritual, emocional, algum elemento subjetivo e também social, econômico e coletivo, afirma Josué, antes de prosseguir:

Não há uma única definição de cultura e não entendemos a arte como um adorno que apenas enfeita uma sala… Então, o Veras é formado por essa miscelânea de agentes, artistas, iogues, terapeutas, educadores e agricultores”

Os quatro andares do Veras refletem seu caráter multidisciplinar. O centro promove exposições artísticas, cursos livres (cerâmica, xilogravura, ilustração e choro são alguns exemplos das oficinas mais recentes), prática de ioga e meditação, e venda de produtos de artistas independentes.

O espaço também conta com um restaurante vegano, onde comercializa alimentos agroecológicos de diferentes regiões do Brasil.

JOSUÉ ESTUDOU NA FRANÇA, FOI MONGE HARE KRISHNA E CURADOR DE UM CENTRO DE ARTE NO JAPÃO

É difícil saber onde termina a história de Josué e onde começa a do Veras, porque a vida dele é repleta de histórias sobre ioga, arte e sustentabilidade – pilares do CCV.

O curador e idealizador compara a concepção do centro artístico a uma semente em estado de dormência à espera do momento mais adequado para germinar.

“A ideia surgiu em 1999, com o desejo de construir espaços transculturais que aproximassem realidades, territórios e identidades. Esses locais, em instituições ou às vezes em espaços urbanos, serviriam como pontos de encontro”

Na época, ele pediu à prefeitura de Florianópolis que cedesse um terreno para a materialização desse sonho, mas a resposta foi um sonoro “cresça e apareça”, nas palavras do idealizador. Foi o que ele fez.

Josué estudou história da arte, arqueologia e práticas curatoriais na França. Foi monge Hare Krishna por sete anos, se dedicou ao estudo dos vedas na Índia, esteve à frente do Museu de Arte de Santa Catarina, ajudou a fundar centros culturais em vários lugares do país, foi colaborador do Sesc e, entre outras experiências, foi curador do Centro de Arte Contemporânea em Aomori, no Japão.

Para ele, a existência de um centro cultural é, mais que seu projeto de vida, um projeto de cidadania.

“Apesar de apartidário, construir um centro cultural é um dos gestos mais políticos possíveis. Trata-se de um ponto de encontro para pensar desde segurança pública, educação até saúde mental”

Josué sugere que todos deveriam olhar para cidades desenvolvidas “a partir do modo como elas lidam com seus próprios instrumentos culturais dentro dos quais a cultura não é primordial, mas é um dos principais eixos de cidadania”:

“Espero que as pessoas não precisem ir para Londres, Oslo ou Nova York para ver esse valor.”

PERMUTAS, FINANCIAMENTO COLETIVO E DOAÇÕES DE OBRAS AJUDARAM A PÔR O CENTRO DE PÉ

Inspirado pelos sistemas de associação e autogestão que vivenciou na França e pelos ideais de arte contemporânea que dialogam com a preservação de tradições milenares da Índia e do Japão, Josué encabeçou uma associação de artistas e passou a trabalhar para diversas instituições culturais pelo Brasil.

Fachada do Centro Cultural Veras, em Florianópolis (foto: Soninha Vill).

Essas movimentações permitiram que ele conhecesse profissionais de norte a sul dispostos a colaborar com o projeto. “A Associação de Arte e Cultura Contemporâneas é a mantenedora e responsável pelo Centro Cultural Veras”, diz Josué. “Vários artistas doaram obras para a construção do espaço e continuam em constante relação com o nosso centro cultural, propondo atividades, exposições e projetos.”

De 2014, quando o terreno foi comprado, até sua inauguração, em 2022, os 1 139 metros quadrados do CCV foram construídos com verba levantada a partir de permutas, financiamento coletivo, venda simbólica de tijolos e da doação de 270 obras de artistas de todo o país:

“A comunidade artística sempre foi generosa e engajada. Mas eu nunca testemunhei nada semelhante a essa mobilização para construir algo do zero no Brasil”

Até hoje — e não por falta de pedido —, o Veras não recebeu nenhum tipo de aporte público. Todo esse esforço, ele acredita, já seria notável em um “grande centro”.

O CCV, vale lembrar, está em um bairro residencial afastado do mar e das áreas turísticas da ilha (conhecido pelos moradores mais antigos como “Fazendinha”, a região tinha potreiros com animais pastando até o início da década passada).

Além disso, com 508 mil habitantes, Floripa é uma das menores capitais do Brasil e não raro acaba preterida pelas vizinhas Curitiba e Porto Alegre na hora de acolher eventos culturais.

VIVENDO DE ARTE: UM CLUBE DE BENEFÍCIOS É A APOSTA PARA COBRIR OS CUSTOS DO LOCAL

O modelo de economia solidária e autogestão não se restringiu apenas ao momento de construção do CCV. Hoje, os cursos, o restaurante e a venda de produtos e obras são as principais fontes de renda do Veras, que fica com 35% desses valores.

Como o retorno ainda não cobre a manutenção do espaço e das seis pessoas que trabalham no local, eles estão apostando na consolidação de um clube de benefícios com direito a cursos exclusivos, parcerias com empresas e na submissão a editais públicos de incentivo à cultura.

Segundo Josué, o clube — chamado Amigos do Veras — está “em fase de construção” e vai oferecer cursos de história da arte, aulas de ioga, entre outras atividades em formatos presencial e online, além de descontos na programação:

“Esse modelo de assinatura mensal permitirá que pessoas de Florianópolis e de todo o Brasil participem e desfrutem de uma variedade de atividades, como exposições, debates, seminários, residências artísticas e educacionais, espetáculos, ateliês e cursos livres e cultivo de sistemas agroflorestais”

Para além da visão integrada sobre a arte, a intenção de juntar diferentes propostas também é uma estratégia para atrair a comunidade local.

“Sabemos que o Brasil precisa construir relações com o público a partir da transversalidade. Por aqui, é difícil que alguém acorde decidido a passar uma tarde em um centro cultural devido a uma programação interessante… Essas pessoas existem, mas são raras.”

Roda durante atividade no Centro Cultural Veras (foto: Soninha Vill).

Em busca de “contextos de construção e formação de públicos em cidades mais avançadas nesse quesito”, Josué encontrou inspiração na capital paulista. “O Sesc Pompeia e o Centro Cultural São Paulo são [exemplos de] instituições que dependem de ações transversais para levar público.”

POR UM MUNDO “MAIS CRIATIVO, SAUDÁVEL, CONSCIENTE E PLURAL”

A professora de ioga Andressa Sampaio Alves dá aulas nos tatames do Veras desde setembro de 2023.

Ela fala um pouco sobre os impactos dessa transversalidade em seu trabalho:

“Entro em contato com pessoas que se conectam às práticas motivadas a trazer equilíbrio para esse tripé mente-corpo-espírito. Além do olhar curioso e criativo, que é muito estimulado por cada vivência que acontece aqui”

Andressa diz que o Veras “acolhe artistas e profissionais que oferecem aquilo que manifestam verdadeiramente” e cita como exemplo Nara Guichon, artista e ambientalista em cartaz no CCV com exposição Redes Fantasmas.

“Nara pode não ser a artista mais reconhecida no meio — não se trata de reconhecimento ou preço. Mas ela vive o que oferece”, afirma Andressa, e continua:

“Acredito que a sociedade precisa voltar a ter contato com esses valores para não cairmos no niilismo de achar que não temos mais o que fazer, quando o assunto é clima, política ou mudança. A melhor forma de não nos conformamos é pela arte”

A exemplo da interação que ocorre no CCV, em um sábado chuvoso ao final de uma aula de Andressa, o músico e artista visual Lucas Kinceler convidou os alunos para a abertura da instalação permanente de Cultivos em tótens, um sistema de hortas verticais em cerâmica que remonta à escultura Sistema verde, criada por seu pai, o falecido artista Zé Kinceler.

“O Veras está em uma região que descentraliza e pode espalhar cada vez mais arte e cultura. Está alinhado com questões emergentes e importantes do nosso tempo”, diz Lucas. “Como artista, o Veras me impacta muito positivamente, porque renova as esperanças frente à arte e a um mundo mais criativo, saudável, consciente e plural.”

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