Em meio à pandemia de Covid-19, o administrador paulistano Felipe Salvatore começou a fazer vídeos com análises de dados, que rapidamente viralizaram. Até que um dia recebeu o próprio vídeo no WhatsApp.
“Mas era da Dragões da Real [torcida organizada do São Paulo Futebol Clube]”, conta Felipe, hoje com 28 anos. “Eles usaram meu vídeo, tiraram meus créditos e meu logo do canal. Fiquei ‘p da vida’ e, depois de estudar direitos autorais, denunciei o vídeo deles.”
Ao conversar com o presidente da torcida, percebeu que ele tinha cometido um erro – e identificou uma falha de mercado: a dificuldade de licenciar vídeos virais e conteúdos gerados por usuários (UGC, na sigla em inglês).
Felipe contou a história ao irmão gêmeo, Alexandre Salvatore, administrador como ele. E o irmão também enxergou ali uma oportunidade. Segundo Alexandre:
“Só achamos empresas gringas, americanas e europeias, que faziam o licenciamento. Vimos uma oportunidade, porque o Brasil é um terreno muito fértil para conteúdo gerado por usuários, e não tem ninguém olhando para isso”
Surgia assim a Myhood. Fundada no fim de 2020, a startup de licenciamento de vídeos virais e UGC projeta fechar 2025 superando 15 milhões de reais em receita.
A Myhood tem hoje cerca de 17 mil vídeos no seu catálogo. O modelo funciona assim: os clientes pagam uma mensalidade para acessar a base e fazer download ilimitado do conteúdo.
A assinatura varia de acordo com a audiência por plataforma. Para Instagrams com menos de 100 mil seguidores, gira em torno de 399 reais mensais; para os com mais de 25 milhões, a mensalidade decola para 7 200 reais mensais.
A mensalidade é dividida igualmente com os criadores, por meio de rateio da mensalidade com os que tiveram o conteúdo baixado. Por exemplo: se um cliente que paga 399 reais baixou apenas um vídeo, o criador do vídeo receberá metade desse valor como royalties.
Hoje, a Myhood tem como clientes veículos de imprensa como G1, Metrópoles e Jovem Pan, o que faz os sócios preferirem se definir como “Reuters 2.0”. Alexandre resume:
“Não é uma empresa de entretenimento, não é agência de viral. É uma agência de notícias com conteúdo soft, cotidiano. Estamos criando uma comunidade de criadores”
Não por acaso, hoje metade da equipe de 50 funcionários são jornalistas.
Chegar a esse modelo não foi simples. No começo, a Myhood seguia um caminho trilhado por empresas nos Estados Unidos, como ViralHog e Jukin Media.
“Começamos a comprar vídeos por 300 reais, íamos atrás, derrubávamos [a página que usava o material sem autorização] e cobrávamos indenização”, conta Alexandre.
Essa fórmula foi adotada para evitar problemas com as plataformas – que, durante quatro meses, dificultaram os pedidos de derrubada de conteúdo feitos pela Myhood.
Na época, os irmãos captaram 250 mil reais em uma rodada de amigos e família em troca de 5% da Myhood. O dinheiro foi praticamente todo torrado na compra de vídeos em busca das indenizações.
Logo, os dois fundadores entenderam que a estratégia até gerava receita mas, além de não ser recorrente, criava atritos: os criadores ficavam satisfeitos no início – mas essa satisfação despencava junto com a audiência depois que as páginas que haviam usado os vídeos sem permissão eram derrubadas.
“A pior relação que tivemos que construir foi com os criadores. Vivemos o que as empresas nos Estados Unidos viveram”, conta Alexandre, explicando que por lá “as páginas começaram a fazer lavagem cerebral de que as sacanas eram as empresas [que compravam os direitos autorais]”.
Ele reconhece que um dos problemas era que, depois de conseguirem o direito autoral, as empresas dos EUA cobravam muito caro pelo vídeo, o que até desincentivava o uso correto.
O modelo da Myhood hoje é outro — algo como um Spotify ou Netflix de vídeos virais, mas voltado para que veículos possam usar o conteúdo, não vinculado necessariamente a uma única plataforma, só pagando/dando os créditos.
Foi então que os irmãos começaram a pensar no modelo de assinatura para uso ilimitado. E, pouco a pouco, começaram a entender que os publishers não eram “inimigos”.
“Quando a gente olhou para o mercado, viu que tinha um problema enorme para os criadores e não tinha enxergado o problema pelo lado dos publishers”, diz Alexandre.
Essa virada de chave foi acelerada em 2023, quando os sócios conheceram Murilo Henare, fundador da Banca Digital, que gerencia algumas das maiores páginas de entretenimento e notícias das redes sociais, como Choquei e Nazaré Amarga. “Acho que tem um antes e depois do Murilo”, define Felipe.
Com a dinâmica de conseguir os direitos de vídeos que tinham viralizado e realizar denúncias, a Myhood chamou a atenção de Murilo ao denunciar algumas de suas páginas. Segundo Felipe, Murilo ajudou a dar um “sacode” e a fazer os irmãos entenderem que ainda não tinham criado uma solução eficaz:
“Ele disse: se vocês ficarem olhando o que já viralizou, nunca vão oferecer valor para mim. Vocês vão me dar dor de cabeça, porque vão derrubar tudo – mas a gente tem que pensar juntos como ter maior preditivo e aí sim oferecer uma solução”
Além de entrar na sociedade como utilizador do serviço, Murilo fez um aporte, levando pessoas para a equipe de aquisição de vídeos. “Ele disse: eu não quero dois vídeos por dia, quero cinquenta”, afirma Alexandre. “E não quero [o vídeo] quando já tem 100 mil visualizações, quero quando está com 7 mil, começando a nascer.”
Os sócios desenvolveram então uma “máquina de aquisição” que consistia em achar vídeos, testar na fórmula que criaram para identificar o potencial viral, verificar se era verdadeiro (por exemplo, sem uso de inteligência artificial) e chegar até o dono.
Além de apontar a mudança de direção, Murilo ajudou a Myhood a conseguir o primeiro contrato em um modelo de assinatura com um veículo de imprensa, o Metrópoles, no início de 2024.
Daí em diante, os sócios começaram a ser abordados pelo mercado e viveram “um momento feliz”, como descrevem. Fecharam com outros veículos, como Jovem Pan e as rádios Itatiaia e Metropolitana.
De uma estratégia inicial marcada por disputas de direitos autorais, a Myhood passou a se posicionar como parceira dos veículos e dos criadores. O próximo passo é ampliar a rede de colaboradores espontâneos, estimulando qualquer pessoa com um celular a enviar registros diretamente para a plataforma.
“A gente precisa que todo brasileiro que esteja em algum lugar onde está acontecendo alguma coisa pense: preciso sacar o celular e enviar para a Myhood”, diz Alexandre. “A grande tese é trabalhar awareness para ter olhos em todos os lugares.”
Outra grande tese que começa a “tomar a cabeça”, completa Felipe, é a disputa entre publishers e empresas big tech, como Google e Meta:
“Quando o Instagram começou a ser indexado nos mecanismos de busca, todo mundo bateu palma como se fosse algo positivo, mas não é. Quando Facebook e Instagram aparecem na busca orgânica, eles roubam espaço de outras páginas”
Como resposta a esse cenário, a Myhood vem desenvolvendo um feed vertical próprio para portais de notícias, que permite aos publishers reter audiência dentro de seus sites.
Segundo os irmãos, em um dos portais que vem testando a solução o tempo médio de permanência saltou de 1 minuto e 14 segundos para 6 minutos e 50 segundos. A ideia é oferecer uma alternativa para que os veículos consigam competir pela atenção sem depender das plataformas.
No fundo, o que começou com a frustração de ver um vídeo usado sem crédito está se transformando em uma tentativa de reorganizar o ecossistema digital: Felipe e Alexandre agora querem que a Myhood seja lembrada menos pelo embate com quem copia e mais pela capacidade de conectar quem registra com quem publica – sempre pagando pelos devidos créditos.