“Dá pra fazer”: Dioclau, Camila e Hanier explicam na prática o que é ser um fazedor

Bruno Leuzinger - 8 fev 2017
Dioclau Serrano: artista, sonoplasta, paraense de nascimento, carioca por adoção e fazedor por natureza (crédito: Cena BXD)
Bruno Leuzinger - 8 fev 2017
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O que define um fazedor, ou fazedora? A capacidade de realizar ações incríveis com recursos mínimos, transformando o meio de forma criativa, com pragmatismo mas sem perder de vista que o “impossível” está ao alcance das mãos? O equilíbrio entre o respeito às raízes, à própria identidade, e o jeito camaleônico de quem leva a vida com múltiplas facetas, atacando várias frentes simultâneas? O talento para o improviso, o riso, o trabalho em rede? A persistência, o compromisso? A coragem?

A resposta é “sim” para todas as opções. Mais do que se ater a definições, porém, vale perscrutar as histórias, escolhas e trajetórias de Dioclau, Camila e Hanier, três participantes do Projeto Fazedores, de idades e origens distintas, que vivenciam na prática essas questões e trazem na ponta da língua um só lema diante de qualquer desafio osso-duro-de-roer: “dá pra fazer”.

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Eu queria fazer um som maneiro… Pra botar no Youtube, ganhar um dinheiro e viajar com os parceirôôô…” Transbordando irreverência e autoironia, os versos do hit “Pissaicou” satirizam o sonho de todo aspirante a rock star. Na ativa desde 2011, a banda Biltre sabe rir de si mesma, a começar por seu nome (“canalha, infame”, conforme o Houaiss). Ninguém vive só de música: o ator Vicente Coelho, o biólogo Diogo Furieri e os técnicos de som Arthur Ferreira e Dioclau Serrano dividem seu tempo entre suas carreiras e os shows, revezando-se nos vocais, baixo, guitarra, trompete e sintetizadores – a turma se vira sem bateria, só com bases eletrônicas.

Na falta de grana, a banda bolou um jeito lifeaholic de levar seu tecnopop tropical até o público: a Bananobike, um triciclo de entrega de supermercado adaptado com caixas de som e convertido num trio elétrico ágil e despojado, que dispensa pompa e burocracias para circular. Dioclau descreve a parafernália ambulante: “Criamos um telhado tipo casinha onde adaptamos pontos para fixar as caixas de som, divisórias para comportar as baterias e inversores responsáveis pela energia do veículo, além da iluminação de LED que ornamenta e dá brilho à bike.”

Dioclau (Claudio, segundo o RG), de 38 anos, é o “forasteiro” da turma. Paraense de Marabá, mudou-se para Belém aos 14, em busca de uma escola melhor. No Rio desde 2001, já morou em Copacabana, Urca, Botafogo, Santa Teresa; hoje, vive em Laranjeiras. Formado em licenciatura em música e como técnico de áudio, ele desdobra-se entre a Biltre (que além dos shows produz trilhas para peças de teatro, como Tran_se e O Impecável) e o ganha-pão de sonoplasta de espetáculos como os musicais Cássia Eller e S’imbora, a História de Wilson Simonal.

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Dioclau Serrano (crédito: Cena BXD)

E claro, há o Minha Luz É de LED. No Carnaval de 2013, a Bananobike “mitou” em aparições nos blocos Bunytos de Corpo e Viemos do Egyto. Aí, em 2014, os “biltres” resolveram canalizar esse brilho num bloco próprio, que deve seu nome a um verso de “Pissaicou”. A marca registrada são os acessórios luminosos que dão um visual futurista aos foliões, como os óculos cintilantes usados por Dioclau na foto de perfil do Facebook (e que dão a ele uma pinta de Ciclope, dos X-Men). O Minha Luz É de LED sai sempre na quinta pré-Carnaval (anote: 23/2/2017), às 23h, fora esquentas para arrecadar fundos. Neste ano, são esperadas pelos menos 10 mil pessoas.

Convocado pelo Projeto Fazedores, Dioclau monta agora uma oficina para ensinar como criar esses acessórios de LED Wear, dentro do conceito “tecnotosko”, nas palavras dele próprio. No escopo do projeto será lançada ainda a nova Bananobike, atualizada em parceria com o Centro de Estudos em Telecomunicações da PUC. O upgrade inclui um aplicativo que permitirá ao usuário curtir o som de headphone, como numa rave silenciosa. “Esse novo projeto de mobilidade sonora agora conta com transmissão de áudio digital wi-fi”, diz Dioclau. “Através do app gratuito Bananotech, o conteúdo musical será oferecido num raio de até 100 metros.”

O segundo disco do Biltre deve sair logo do forno (o primeiro, Bananobikenologia, corporificou-se em 2015, após alguns anos com as músicas distribuídas em formato digital). Uma das faixas, “Nosso Amor Foi Um GIF”, é uma parceria com Gregório Duvivier, que conheceu a banda por meio de um amigo em comum. “Como sempre fazemos as músicas em conjunto e com parceiros extra banda, mostramos, inbox, um refrão: ‘O nosso amor foi um GIF, um click um flash, foi ligeirim foi pá pum, pá pum, pá pum’. Daí ele propôs uma estrofe que dá início à música: ‘Sonhei com você. O nosso amor era um longa metragem tipo Titanic pra nunca acabar’.”

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O interesse de Camila Vaz pela moda despontou na infância, mas a menina negra criada na Taquara, subúrbio da Zona Oeste do Rio, intuía que ser estilista era um sonho fora de alcance. Isso mudou na adolescência. “Comecei a enxergar a moda como uma ferramenta de construção imagética”, diz, hoje, aos 23 anos. “Entendi que poderia falar através da moda, que era uma plataforma que me permitiria mostrar a minha identidade e criar novas identidades. E foi assim que comecei a pensar em moda como business: quando entendi o poder que a moda tem.”

Camila decidiu seguir carreira na área. Ela fez cursos de produção de moda, corte & costura e consultoria de imagem, e, em paralelo, estudava para o vestibular de design de moda. Trabalhou em algumas edições do Fashion Rio como assistente de produção, criou um brechó com duas amigas, dividia-se entre freelas e estudos. Em suma: corria atrás. Aprovada na PUC, Camila conquistou uma bolsa que lhe permitiu cursar a faculdade; para ficar mais perto, mudou-se para a comunidade Parque da Cidade, na Gávea, a poucos minutos da PUC.

Após outro processo seletivo, a jovem ingressou no curso gratuito da Casa Geração Vidigal, escola de moda no morro que se debruça com vista frente-mar. No contexto do projeto, ela criou uma coleção inspirada pelo look retrô dos uniformes de atletas do golfe e do rúgbi, modalidades que ressurgiram nos Jogos Rio 2016. No início de março daquele ano, as criações foram exibidas num evento da Semana de Moda de Paris, uma façanha para a jovem da Zona Oeste carioca. Camila não chegou a pôr os pés na Cidade-Luz; em vez disso, ficou ralando, preparando a coleção para o desfile na Casa de Criadores, evento paulistano conhecido por lançar novos estilistas.

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Camila Vaz (crédito: Thásya Barbosa)

As peças hoje são vendidas na Frey Kalioubi, loja-e-galeria multimarcas descolada no Centro do Rio. “Vejo cada trabalho como possibilidades infinitas de explorar meu repertório, de fazer ressignificações e descobertas a partir da minha vivência”, diz. Camila gosta de explorar materiais, formas e cores, mas não tem um estilo definido. “Sempre achei que tinha uma veia esportiva no meu trabalho, mas na coleção que estou trabalhando atualmente acabei indo para uma direção bem oposta a tudo que já produzi antes.” Em paralelo, ela toca o Baby Dot, um projeto de música com o namorado, Saulo de Oliveira, e trabalha como modelo pela agência Squad Brazil.

Se alguém de fora acusa o mundo da moda de frivolidade, ela rebate com o olhar de quem enxerga no meio uma plataforma em potencial para promover mudanças sociais. “O que faço é questionar o campo com a criação de novas narrativas, assim eu desloco o local do sujeito na moda rompendo com o modelo padrão de voz que nos é mostrado nesta indústria”, diz Camila. “Silenciar e invisibilizar vivências de minorias faz com que as pessoas acreditem que sua vivência não é ‘importante’ o suficiente para ocupar um local digno de possuir status de moda, arte ou cultura. Para mim, é muito importante tentar mudar este quadro no qual eu mesma me encontrei no início, quando achava que produzir moda era ‘sonhar alto demais’.”

Camila agora prepara uma coleção-cápsula de chinelos para Rider, dentro do Projeto Fazedores. A ideia é criar um produto com a cara do público da Zona Oeste, que, como ela, também está sempre no corre e se locomove de transporte público (BRT, trem, van, ônibus…). “Fiquei muito feliz de poder convidar a Julliana Araújo para participar comigo, pois além de designer ela também é uma grande amiga”, diz Camila. “Olhamos para as nossas vivências, sendo duas negras crias da Zona Oeste no contexto dos anos 2000, a fim de desenvolver dois modelos de calçados que refletissem e resgatassem as nossas memórias visuais e afetivas.”

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Natural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Hanier Ferrer, de 26 anos, é um cara que sempre correu atrás. Quando mais novo, fazia malabares no sinal para juntar grana e incrementar o skate (que largou após um acidente). Aprovado em Direito na UFRJ, trancou o curso e embrenhou-se como missionário no Nordeste. “O foco do meu trabalho era agricultura familiar e Direito Ambiental, palestras e mutirões de potencialização do solo.” A fé estava em harmonia com a música: em Nova Iguaçu, apresentava-se com uma banda de folk-rock em igrejas de correntes protestantes. “Tocava baixo, guitarra, violão, bateria, escaleta, cajón, triângulo…”

Em 2012, o jeito inquieto levou Hanier à então recém-criada Agência de Redes para Juventude, que visa equipar jovens de comunidades pacificadas do Rio para assumir o papel de agentes transformadores de seus territórios. Nos anos seguintes, como tutor e coordenador da agência, ele engajou-se no apoio a uma série de projetos sociais, como o Reciclart, no morro do Cantagalo, que converte material descartado em bolsas para o público LGBT, e o Silvertape, festival de grafite, skate, rap e fotografia desenvolvido em Santa Cruz, no extremo oeste da cidade.

Os trabalhos da agência são norteados pela Metodologia de Redes, que Hanier ajudou a construir. “É uma junção de métodos e procedimentos para construir parcerias, alianças, apoios e patrocínios, gerando uma relação onde cada indivíduo ou coletivo participante tem acesso aos outros e constrói novos processos a partir daquele inicial, facilitando avanços e novas relações entre os realizadores.” Em 2015, no escopo do projeto Visão Rio 500, ele foi um dos 50 agitadores culturais convidados a contribuir na Virada Hacker para Construção de Narrativas, destinada a pensar o futuro da cidade e o diálogo entre a sociedade civil e o poder público.

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Hanier Ferrer (crédito: Cena BXD)

O engajamento encontra ressonância na música. Em 2014, Hanier produzira (na extinta Beat 98 FM) o 0800 Cultura Urbana Livre, com foco no som e nas vivências da periferia. Em paralelo, criou a plataforma Barraco Marginal para dar visibilidade a rappers, funkeiros e DJs da favela e do subúrbio, por meio de frentes como a festa TropikAll Vibez. Desde a estreia nas areias do Arpoador sucederam-se dezenas de edições, entre pagas e gratuitas, indo de Santa Teresa à Pavuna, do Méier à Lapa e além. Após um hiato para reformulação, a TropikAll voltou em janeiro de 2017, em Duque de Caxias. “Em fevereiro realizaremos outra edição no Piscinão de Ramos.”

Hanier ainda pilota a aparelhagem de som com o kawo, seu projeto de bass music, e atua em eventos como a Roda Cultural de Mesquita, que reúne batalhas de MCs e brechós de moda acessível. Esse entrelaçamento de música e ativismo está em consonância com a “cultura da gambiarra”, o empoderamento da periferia por meio da arte e do improviso. “Cultura da gambiarra é um conjunto de comportamentos relacionados a indivíduos de origem favelada ou suburbana, que desenvolvem outros meios de aplicar e realizar seus projetos, ações e intervenções na cidade e na vida, criando formas que custam infinitamente menos e funcionam tanto quanto os meios legitimados para realizar, criar ou desenvolver algo”, diz.

Engajado no Projeto Fazedores, Hanier capitaneia outra iniciativa, a Tropitek CRU, um trio de produtores musicais focado em difundir a voz e o som da periferia, além de celebrar a cultura da gambiarra. “Criamos álbuns colaborativos com outros artistas, considerando sua origem, experiências e conhecimentos, criando um remix do encontro dos nossos corpos, sempre com enfoque em apontar tecnologias lofi/hifi, desde a oralidade até gambiarratek, como produção de captação energética solar a baixo custo.” Nessa pegada, ele prepara a gravação de um disco com MCs de quatro regiões (Baixada, Zona Norte, Zona Oeste e Centro-Zona Sul); o projeto contemplará ainda o registro dos bastidores e das histórias de vida dos artistas.

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Fazedores são aquelas pessoas que superam adversidades na raça, na sevirologia. São pessoas que sabem hackear a própria vida, agir em rede, e não esquecem que o Rio (ou qualquer metrópole) transcende sua fachada de cartão-postal.

Multiplicar este conceito é a missão do Projeto Fazedores, iniciativa que terá como ponto alto um festival descentralizado e gratuito que ocorrerá em quatro zonas da cidade. Fique ligado e confira o site do projeto! E acredite: dá pra fazer.

 

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