O francês David Ralitera tinha um sonho: morar e trabalhar em outro país. Publicitário bem sucedido, realizou esta ambição ao se mudar em 2006 para São Paulo, onde trabalhou como diretor de mídia na JWT, uma das maiores agências de publicidade e propaganda do mundo. Mas, ao completar 40 anos, o sonho já não fazia mais sentido. Ele não enxergava mais a conexão entre quem era e o que fazia. Seu novo projeto de vida brotaria de um misto de hobby e vontade de fazer algo próprio. Há quase dois anos, David, que está com 45, largou a vida de executivo para cultivar orgânicos.
A fazenda que arrendou, Santa Adelaide Orgânicos, produz mais de 80 tipos de legumes, frutas e verduras. “Quis ter um cardápio grande para eu mesmo distribuir os produtos. Queria mostrar para uma dona de casa, um restaurante, que existe em São Paulo a oportunidade de ser abastecido por um pequeno produtor”, diz David. Os vegetais saem da Santa Adelaide em Morungaba (SP) e – voilà – chegam à mesa do consumidor sem intermediários. Assim, David modifica a cadeia tradicional de alimentos, eliminando distribuidores e supermercados para aumentar sua margem de lucro.
QUANDO O HOBBY VIRA PROJETO DE VIDA
No Brasil, o francês passava os finais de semana na fazenda da família de sua então esposa, em Morungaba. Gostava de levar as três filhas para brincar e colher legumes na horta. No verão de 2010, engatou uma conversa longa com Reginaldo, o responsável pela roça. O funcionário já tinha trabalhado com orgânicos e, percebendo o apreço de David por hortaliças, sugeriu que fizessem “uma horta mais profissional”.
O publicitário relutou. Aquela horta estava de bom tamanho, acreditava. Mas Reginaldo insistiu. Sabia que o patrão gostava de verduras bonitas e variadas. Chovia demais e a horta não tinha proteção. Seria recomendável uma estufa, à venda por 1 500 reais. David cedeu. A estufa ainda precisaria de alguém para montá-la, de revestimento e de um sistema de irrigação. Dez mil reais depois, começava a dar frutos. “Mas cada vez que servia um alface, via que ele me custava uns 300 reais”, conta.
Para recuperar o investimento, David passou a vender cestas de verduras nos condomínios da região. “As pessoas compravam porque achavam divertido, mas vi que elas não acreditavam que era orgânico sem um selo”, diz. Ele acredita que nessa etapa começou a entender a mentalidade do consumidor que viria a atender.
“Tanto faz se a cenoura foi cultivada em monocultura ou se o abacaxi rodou quatro mil quilômetros para chegar até ele. Percebi que para o consumidor paulistano o que importa é se tem o selo de orgânico”
David arrendou parte da fazenda e abriu um CNPJ, o que o permitiu requisitar o selo de orgânico. “Desde o começo, quero ser reconhecido pelo meu comprometimento. Uso o selo como último recurso, quando realmente preciso comprovar que minha produção é orgânica”, diz. Com a certificação em 2011, vieram também compradores profissionais. “Eu era meio sem noção, não conhecia a fundo o negócio e passei a ser xavecado por grandes distribuidores”, conta.
A Santa Adelaide entrava, assim, na cadeia produtiva de orgânicos, em que distribuidores repassam o produto aos supermercados, para só então chegar ao consumidor final. Além de problemas constantes para receber, David percebeu que tinha pouca margem de lucro — e nenhuma notoriedade. “Eu estava perdendo valor, posicionamento. Colocar meu produto na mão de um distribuidor deixava minha proposta muito fraca. Eu não tinha oportunidade de falar para o consumidor final sobre como aquilo era produzido.”
Para eliminar os intermediários, contratou um profissional para ajudá-lo na logística. “Comecei essa fase entregando vinte cestas por semana, na casa de amigos, e atendendo um restaurante. Eles gostaram da proposta e me indicaram para conhecidos”, diz. David ainda era diretor na JWT, mas a esta altura enxergou uma oportunidade. Sua ideia de negócio começava a germinar. “Passei a me projetar nessa história, a falar ‘me sinto bem fazendo isso, o final de semana na fazenda me oxigena, por que não ficar aqui direto?’”
Um esfriamento do mercado publicitário em 2012 foi o empurrão que David precisava. “Era um período de incertezas. Me vi com duas alternativas. Ou assumia mais responsabilidade, mais trampo, mais loucura, ou negociava minha saída para poder tocar meu negócio e ter capital para segurar as pontas por pelo menos uns quatro meses”, diz. Ele escolheu a segunda opção.
“Levantei uma manhã e não tinha mais secretária, Blackberry, reunião em Londres. Minha vida mudou de um dia para o outro”
Desde então, ele fica de domingo a quarta na fazenda. Passa o resto da semana em São Paulo, visitando clientes e cuidando das filhas. David investiu seu tempo e o dinheiro obtido com o seu desligamento da agência na estruturação de seu negócio – máquinas, estufas, irrigação, formação em agricultura orgânica e consultoria com um agrônomo. “Entrei nessa história com tudo. Tive altos e baixos. Desde o início do ano, por exemplo, estou sofrendo com a falta de chuva”, diz ele, sobre as novas modalidades de preocupação.
IR ALÉM DO BÁSICO NO CULTIVO ORGÂNICO
Além de não usar agrotóxicos, a Santa Adelaide prima pela produção orgânica em seu sentido mais amplo, que envolve elementos como transparência, consumo consciente da água e rodízio de culturas. A fazenda é reconhecida pelo comprometimento e pela diversidade, que inclui o cultivo de “plantas esquecidas” – como são chamadas as variedades que deixaram de ser cultivadas e, com o passar do tempo, tornaram-se desconhecidas. É o caso do tomate negro e da cenoura roxa.
David entrega cestas de hortaliças sob encomenda em São Paulo – atualmente mais de 100 por semana. Há dois tamanhos, médio e grande, que saem por 58 e 77 reais. Ele tenta instaurar um esquema de CSA (Community Supported Agriculture), conceito desenvolvido na Europa em que os consumidores ajudam o produtor a enfrentar os riscos inerentes à produção orgânica (tempo, pestes etc.). “Lá, você se inscreve e paga um ano de cestas adiantado”, diz David. Aqui, o máximo de compromisso que ele conseguiu foram dois meses. Quem faz a assinatura quinzenal ou mensal ganha desconto.
Uma semana antes da entrega, David divulga o conteúdo da cesta e permite até duas trocas dentre os vegetais disponíveis. Ele atende também cerca de 140 restaurantes, duas cozinhas industriais e vende na feira de orgânicos do Ibirapuera. “Eu fazia duas entregas por semana em São Paulo. Hoje, faço quatro. Tinha uma perua, hoje tenho três caminhões.”
A principal forma de propaganda da Santa Adelaide é o bouche à oreille, o famoso boca a boca. “Hoje, as pessoas conhecem meu trabalho e compram. Não tem mais aquela coisa de ‘ajudar o David’”, diz. Para reforçar a divulgação, ele usa o Instagram e o Facebook, mas optou por não montar um site.
“Não sou e-commerce, não sou comerciante. Sou produtor. Ofereço o melhor da roça da época. Se não tiver na lista que estou te mandando, não adianta. Você quer berinjela no inverno, eu não vou ter”
A Santa Adelaide está aberta a quem quiser conhecer. Com uma proposta de aproximar o público do campo, a fazenda entrou no roteiro das Expedições ao Léo. Concebida pelo chef e amigo Léo Botto e organizada pela Foodpass, a experiência gastronômica envolve um tour pela horta e um almoço preparado por Léo, com os vegetais recém colhidos. David oferece ainda outro formato de visita para quem o procura. No menu, introdução ao manejo orgânico e almoço preparado pelo próprio produtor.
O negócio vai bem, e David agora sonha com o dia em que as pessoas irão até ele comprar suas hortaliças — livrando-o do trânsito, dos caminhões de entrega e das emissões de carbono. Sua referência é o produtor Joel Thiebault, que tem uma banca de feira em Paris. “Ele tem tudo que eu sonho em plantar e atende os melhores restaurantes de Paris. O cara não entrega nada. O chef vai lá e abastece os carrinhos”, diz.
Outra ambição de David é ter recursos financeiros e humanos para desenvolver uma linha de geleias e conservas feita com os produtos que cultiva. “Mas a produção de legumes ainda toma muito tempo, não está no piloto automático.” Hoje a operação da Santa Adelaide se paga, mas não dá a qualidade de vida e o conforto que David tinha quando trabalhava com propaganda.
“Não tenho mais 13º, o plano de saúde que eu tinha, secretária bilíngue ou um diretor de TI que vem arrumar minha impressora. Eu faço tudo. É uma vida de jovem empreendedor, um momento de aprendizagem”
Apesar do padrão inferior e das multitarefas, David não se arrepende. “Estou muito feliz porque as pessoas não me procuram mais por eu tocar a campanha da Coca-Cola ou porque cuido da estratégia de marketing de empresas megapoderosas que não têm nada a ver comigo. Hoje sou procurado pela minha proposta, pelo meu trabalho e pelo que eu acredito”.
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