Eu era feliz e não sabia! Mas quem sabe o que é felicidade aos 11 anos?
Mesmo sem ter a total noção do que era tristeza ou alegria naquela época da minha vida, hoje tenho a sensação, olhando para trás, de que eu não tinha do que reclamar.
A não ser, claro, de problemas na família, como separação dos pais, madrasta daqui, padrasto dali, diversas mudanças de casa e uma certa confusão de onde me encaixava nisso tudo. Normal.
Mas olhando o guarda-chuva inteiro, eu tinha uma boa vida. Amor nunca faltou, oportunidade de estudo, também não.
Amigas fiéis para conversar a qualquer hora eu também tinha — como uma boa geminiana sempre tem –, além de ser considerada uma das meninas mais fofas e bonitas da turma da escola. Quem não quer essa popularidade na pré-adolescência, não é mesmo?
Até que a vida nos mostra para que veio. E nos atropela com seus desafios inesperados, sem aviso prévio ou motivos aparentes.
Me lembro como se fosse hoje do dia em que eu estava no banco de trás do carro do meu pai, com minha mãe no banco do carona e ele dirigindo pelas ruas de São Paulo. Apesar de separados, os dois são primos e a relação deles sempre foi de amizade.
Então, lá fomos os três juntos para o consultório médico do ortopedista que estava acompanhando o caso das minhas pernas, que eram meio tortinhas quando eu era mais nova.
Conversa para lá e para cá, pernas finalmente ok, um pedido médico fora do comum — pelo menos para nós. Não entendendo nada, mas sempre sob os olhares atentos dos meus pais, comecei a andar, sem blusa, de um lado para o outro na sala, assim como o ortopedista tinha me pedido.
Depois de algum tempo, ele me orientou a curvar o tronco e deixar os braços caídos para frente, para que pudesse fazer um exame clínico em mim. Foi tudo que ele precisava para ter certeza do que já estava desconfiando: eu tinha escoliose
Ouvi aquilo e não entendi nada. Eu era uma menina de apenas 11 anos. Estava pensando na carta para um menino paquerinha da escola ou, mais provável, no meu próximo encontro com alguma amiga.
O susto dos meus pais não fez sentido algum para mim. De verdade, eu só queria sair dali e voltar para minha rotina normal.
Ignorei a palavra escoliose, até porque não estava muito interessada em saber. Meus pais? Atentamente escutaram do médico a definição do que eu tinha – uma curvatura anormal da coluna vertebral para os dois lados, com rotação das vértebras.
Para quem vê de costas e nos exames, a escoliose com duas curvas pode ter a aparência de um “S”.
Estamos falando, literalmente, de uma deformidade que, se não tratada, pode gerar diversas complicações para a saúde, inclusive comprometimento respiratório, por conta da compressão no pulmão
Dias depois, já com a radiografia em mãos, o diagnóstico foi confirmado. Minha escoliose já estava em um nível moderado e, antes de pensar em cirurgia, que é extremamente delicada, complexa e cara, tentaríamos o tratamento conservador.
Segundo a orientação médica, eu faria alguns meses de natação e, se as curvas não estabilizassem, partiríamos para o colete ortopédico.
Cabeça de vento como sempre fui, vida que segue. Só nadei e não pensei mais no assunto. Minha ficha sobre o que é ter uma coluna torta só começou a cair, quando me vi deitada em uma mesa de metal gelada, com um gesso cobrindo todo o meu tronco – gelado também – e o olhar angustiado dos meus pais para mim, naquela noite fria paulistana.
Era ali, naquela hora, que o molde do meu colete estava sendo feito. Meu mundo caiu! Caiu tudo de vez no dia que fomos, de fato, buscar o colete de Milwaukee pronto. Aquilo era um objeto de tortura medieval, que eu teria que usar por 23 horas diárias. Até para dormir!!!
Só poderia tirar para tomar banho e nadar. Apenas. A menina feliz e fofa da escola perdeu todo o brilho, não só naquele dia, mas nos quatro anos seguintes que foi obrigada a usar aquele horror.
Na verdade, não posso dizer que fui infeliz durante todos os anos, porque tive momentos de alegria com as minhas amigas, mas sim, na maioria do tempo eu estava triste e com vontade de chorar.
Minha adolescência foi interrompida por essa doença, que me fazia morrer de vergonha a toda hora. Eu não me sentia mais à vontade para paquerar ninguém, nem usar roupas mais justas — como todas as outras garotas adolescentes –, dançar, sentar de forma natural, correr e nada mais que antes eu fazia.
Afinal, eu tinha dois ferros que iam do meu quadril até a minha nuca e mais outro ferro na frente com as mesmas proporções, ou seja, da cintura até o queixo. Um verdadeiro pesadelo
Há quem diga que nada é em vão nesta vida. Eu também acho, porque quando chegou o esperado dia de tirar o colete, eu tinha aprendido muito com tudo que passei.
Comecei a olhar o outro com muito mais empatia, a ter noção do que é sofrer, a ser humilde e a entender que nem tudo é como planejamos — apesar da nossa vontade de que seja.
Aprendi também que nada é tão ruim que não possa piorar. Pensando estar livre da escoliose depois dos meus 15 anos e, com a sensação de liberdade de novo, veio mais uma bomba.
O médico percebeu algum tempo depois que tirei o colete que eu tinha um tipo de escoliose rara e severa, que não pararia de crescer, mesmo depois de todo o tratamento feito. Solução: cirurgia.
Simplesmente tudo que tentamos evitar até então com o colete. Com pouca mão de obra especializada e materiais muito caros, fora os riscos reais de uma paraplegia, esta cirurgia era o nosso maior medo. E agora eu teria que encarar mais essa.
Três anos de luta depois e muita preparação, operei. Sem dúvida, eu nunca senti tanta dor na vida, como nos primeiros dias de hospital. Apertei 256 vezes o botão com morfina só nas poucas em que estive na sala de recuperação
Parecia que um caminhão tinha me atropelado dez vezes ida e volta. Com 18 anos na bagagem e muito amor de todos a minha volta, sobrevivi!
Jornalista e amante da escrita, alguns anos depois, resolvi contar a minha história e publiquei o meu primeiro livro A Menina da Coluna Torta, com o objetivo de ajudar a quem também passa pelo que passei na adolescência.
Eu não tinha o que ler sobre o assunto na época e, por isso, me sentia um ET. Talvez, compartilhando minha vida de forma aberta e transparente, eu pudesse impactar e ajudar quem precisa
Sucesso total! Meu livro ficou entre os mais vendidos de algumas livrarias e entendi que ter coragem, mesmo em meio a tanta vulnerabilidade, era preciso. O resultado vinha.
Recebi muitas mensagens de mães e pais de crianças e adolescentes com escoliose me agradecendo imensamente, pois com informação, eles puderem agir e puderam também entender como lidar com seus filhos naquela situação.
Na mesma época, criei um blog, com o mesmo nome do livro, que virou meu principal canal de comunicação com os meus leitores. Também sucesso, para minha surpresa.
Em poucos meses, eu já tinha atingido milhares de pessoas no Brasil e em diversos outros países do mundo.
Com filho pequeno e contas para pagar, infelizmente tive que deixar o meu projeto de lado para me dedicar a minha profissão no mercado de trabalho.
E assim segui por 12 anos: totalmente dedicada ao jornalismo corporativo e a outros projetos profissionais, mas sem poder dar atenção ao trabalho que tanto amava, de conscientização da escoliose.
Aprendi muito, mas não posso dizer que estava feliz naquele caminho. Há praticamente um ano, resolvi dar outra guinada e recomeçar.
Com mais possibilidades de me dedicar ao que eu realmente amo, larguei o mundo corporativo e sentei para escrever o meu segundo livro, A Mulher da Coluna Torta, minha segunda autobiografia, que continua a história da primeira, com novos desafios e superações, já na fase adulta
Com o livro em mãos, encontrei uma editora parceira, recriei o meu blog e comecei uma conta no Instagram do zero. Isso tudo para retomar o meu projeto de conscientização da escoliose, que é o que realmente me dá energia.
Desde então, já participei de congressos e simpósios específicos sobre a deformidade, palestrei sobre o assunto contando minha história para empresas.
Me tornei membro da Sociedade Brasileira de Escoliose, escrevi artigos para ortopedistas cirurgiões de escoliose e entrevistei profissionais da área de saúde para o meu blog
Aquela menina que não sabia se era feliz e foi tolhida de ser aos 11 anos, hoje é uma mulher extremamente realizada na vida pessoal e profissional.
Meu sonho?
Além de ver o meu filho crescer com saúde, que eu consiga atingir milhões de pessoas com o meu trabalho e, assim, ajudar a diagnosticar a escoliose o quanto antes para gerar o menor sofrimento possível para as famílias que passam por tudo isso.
Julia Barroso, 42, é jornalista e autora dos livros A Menina da Coluna Torta e A Mulher da Coluna Torta e do blog A Menina da Coluna Torta .
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