“— O mundo é isso — revelou — Um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais”. (Fragmento do conto “Um Mar de fogueirinhas”, Livro dos abraços, de Eduardo Galeano)
Este relato tradicional da comunidade de Neguá, na Colômbia, me encantou desde a primeira vez que o li, pela simplicidade com que descreve a diversidade da nossa sociedade, ao mesmo tempo que questionei se todos os seres humanos conseguiriam atingir a luz que suas fogueiras tem capacidade de ser.
Eu sou uma “fogueirinha” colombiana, que foi criada em um dos bairros com mais alto índice de vulnerabilidade social de Medellín.
Em 1991, quando eu tinha 5 anos, minha cidade chegou a quase 400 homicídios por cada 100 mil habitantes e em Robledo, meu bairro, essa violência era cotidiana.
Eu estava destinada, talvez, a ser uma luz pequena, mas uma série de reviravoltas mudaram a minha história. Hoje, sou cofundadora de uma startup de impacto social que já intermediou milhares de oportunidades de emprego e capacitação.
Sou filha de um operário de fábrica têxtil que trabalhava até 12 horas de domingo a domingo e de uma mãe que precisou parar de trabalhar para fazer “bicos” quando meu irmão mais velho com Síndrome de Down nasceu
Apesar das dificuldades dentro de um pequeno cômodo de 15 m² no alto da montanha, eles sabiam que a educação seria o ponto-chave para transformar a minha vida.
A maior parte das crianças do meu bairro não tinham uma estrutura familiar mínima. Porém, meus pais sempre fizeram de tudo o que podiam por nós e por elas. Obras de teatro na rua, concursos culturais, novenas de natal, eles sempre estavam criando alguma atividade no quarteirão.
Tudo isso foi colocado em xeque aos 10 anos quando eu devia ir para o nível secundário do sistema de ensino.
Após visitar a escola do bairro, senti um desconforto profundo.
Muitos meninos daquela escola tinham ido para os grupos armados e as meninas eram mães adolescentes. Mesmo os que tinham conseguido fugir desses destinos não alcançaram uma faculdade – e muito menos sair daquela realidade.
Meus pais ficaram desesperados e passaram a procurar alternativas. Até que um dia tocou o telefone de casa e recebi a notícia de que eu tinha sido aceita numa das melhores escolas públicas da cidade, após um “vestibulinho” desafiador – e a partir desse dia, a minha vida mudou
Essa escola ficava numa área nobre e recebia diariamente 5 mil crianças de todas as classes sociais, etnias e religiões. Com o tempo, compreendi que essa escola era uma das melhores, não apenas pelo currículo, mas porque nos tirava das nossas duras realidades para acreditar que poderíamos construir um futuro melhor.
Seis anos depois, entrei na segunda universidade pública mais importante da Colômbia e no segundo curso mais concorrido: o de Comunicação Social/Jornalismo.
Sempre fui muito consciente dos meus privilégios e das oportunidades que tive, por isso, decidi focar na área de Comunicação para o Desenvolvimento Social para gerar impacto.
Desde a faculdade realizava projetos para preparar jovens de baixa renda para o vestibular e participava ativamente de iniciativas nacionais que procuravam a transformação do país, como Planeta Paz.
Aos 19 anos tive a oportunidade de estagiar na prefeitura de Medellín na época de sua transformação social.
Fui comunicadora da Casa de Governo de São Cristóbal, um distrito rural da cidade, e acompanhei a implementação do Orçamento Participativo, tecnologia social brasileira que até hoje é fundamental em Medellín
Logo depois, fui trabalhar numa organização social que teve um protagonismo na região noroeste de Medellín.
Ainda nesse mesmo ano, tivemos que sair do meu bairro às pressas. Tanto minha mãe quanto eu passamos por situações de risco e ameaças.
Este país já tinha me conquistado pela cultura, a música, as tecnologias sociais, como Orçamento Participativo, e a influência de Paulo Freire (1921-1997) na comunicação para o desenvolvimento.
Em 2007, participei de um evento da Rede Iberoamericana de Comunicadores realizado em Medellín. Fiz parte de um debate no qual conheci quem até hoje é meu companheiro: o Luís Cláudio S. Pereira, escritor, comunicador social cultural e especialista em economia criativa – um brasileiro que assim como eu, sonha com uma América Latina unida e desenvolvida.
Vim começar um novo ciclo neste país que me acolheu imediatamente, mas esse processo também foi desafiador. Enquanto na Colômbia meu CV se destacava pela minha experiência e educação, aqui no Brasil nada disso importava e meu único diferencial era falar espanhol
Esse sentimento é constante para um imigrante, principalmente quando não viemos da Europa ou dos Estados Unidos. Trabalhei como professora de espanhol e atendente de call center bilíngue, mas eu queria fazer muito mais neste país.
Em 2010 fui para São Paulo e, graças ao boom das mídias digitais, as portas das agências de comunicação abriram-se.
Trabalhei com gestão de redes sociais de grandes empresas em espanhol e foi então que comecei a perceber que a minha história poderia ser uma aliada para me diferenciar.
Fui editora do Portal Natura Ekos Latam em 2012 e 2013, promovendo iniciativas de rastreabilidade e realizando ciclos inéditos de lives com especialistas de sustentabilidade que se conectavam simultaneamente desde diversos países.
Desenvolvi jornadas digitais de Design Thinking para Cocriando Natura Brasil e projetos de Inovação aberta para o Natura Campus.
Em 2014, graças a uma fusão da minha então agência, conheci o Renato Dias e juntos trabalhamos em planejamento e desenvolvimento de plataformas colaborativas, como o Portal Captamos e Recode.
Um ano depois, o Renato compartilhou uma ideia que teve com a Denise Asnis, ex-colega da Natura: construir um projeto que capacitaria jovens para o mercado de trabalho e os conectaria com oportunidades de emprego
Quando realizamos as primeiras pesquisas com jovens, percebi que a Taqe seria uma forma de ajudar as pessoas a terem as oportunidades que eu tive.
Sete anos depois, posso dizer com muito orgulho que já intermediamos mais de 165 mil oportunidades de trabalho e educação.
O que me move são as histórias que presencio diariamente, de pessoas que conseguiram transformar suas vidas assim como eu.
O primeiro registro em carteira de trabalho no Brasil acontece, em média, aos 28 anos, o que mostra que a maior parte da população fica no subemprego e nem consegue sonhar com uma carreira e benefícios básicos como saúde e educação.
Na Taqe, já tive a oportunidade de ver um auxiliar de pedreiro se transformar em líder de tecnologia, jovens de baixa renda entrarem em empresas de renome e acessarem ao ensino superior, pessoas com deficiência virando desenvolvedores de uma grande instituição.
Fogueirinhas brilhando com luz própria com toda sua história e potencial, ou o que nós na Taqe nomeamos simplesmente de “Interessância”.
Aprendi que minha interessância era meu jeito colombiano de ser. Abracei meu sotaque, a alegria do meu país e a resiliência da minha cidade
Criei laços graças à inovação e faço parte ativa de comunidades como Ribeirão Valley, em Ribeirão Preto.
Meus pais continuam morando em Medellín e vivem em um bairro seguro com uma qualidade de vida que nunca imaginei que poderia proporcionar.
Eles já vieram ao Brasil, mas eu prefiro ir duas vezes ao ano porque estar no meio das montanhas de Medellín recarrega minhas energias e me faz lembrar de quem fui, quem sou e quem desejo ser
Eu amo cada vez mais o Brasil e sou grata pela mulher empreendedora que me tornei aqui. Aceitei essa dualidade, ser um pouco colombiana e ao mesmo tempo brasileira.
Agradeço a cada pessoa que contribuiu na minha jornada e hoje, agradeço a você por ter lido a minha história.
Mas esta história foi apenas um chamariz para você perceber que todos somos fogueirinhas com um enorme potencial para brilhar, mas precisamos garantir as oportunidades certas para acendê-las.
Ana Correa é cofundadora da Taqe.
Thaís Borges cresceu num ambiente de vulnerabilidade social, mas não deixou que sua origem definisse o seu destino. Ela conta como fez para crescer na carreira e se tornar mentora e investidora de negócios periféricos comandados por mulheres.
Filha de missionários, a colombiana Lina Maria Useche Kempf veio viver em Curitiba aos 12 anos. Ela conta como cofundou a Aliança Empreendedora para impulsionar a prosperidade por meio do estímulo a microempreendedores de baixa renda.
Neuza Nascimento cresceu em um ambiente de muita vulnerabilidade social. Enfrentou a violência e a precariedade, conseguiu retomar os estudos e hoje é colunista do portal Lupa do Bem, que repercute iniciativas de sucesso no terceiro setor.