“Diziam que as minhas dores eram ‘frescura’. Aprendi que a fibromialgia é uma peneira: só quem te ama vai permanecer ao seu lado”

Dalila Menezes - 13 jan 2023
Dalila Menezes, fisioterapeuta e criadora do canal Mulheres de Fibra e das redes sociais Blog de uma Jovem Fibromiálgica.
Dalila Menezes - 13 jan 2023
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Desde a infância eu já sentia dores difíceis de explicar. Me lembro de quantas madrugadas minha mãe corria comigo para o médico.

Mas naquele tempo era muito difícil ter um diagnóstico preciso, ainda mais para uma criança.

Os médicos diziam que os exames estavam sempre normais e as dores agudas eram as famosas “dores do crescimento”.

No entanto, continuei assim, com esse incômodo por todo o corpo, mesmo após o crescimento ter estacionado na fase da adolescência. 

Apesar de tudo, vivi de forma “normal” entre a infância e adolescência, mesmo sempre sentindo dor, principalmente na coluna e nas pernas.

DESENVOLVI TOC, PÂNICO E DEPRESSÃO. FORA ISSO, AINDA TINHA QUE LIDAR COM A DOR FÍSICA…

Nunca fui de me entregar, estava sempre correndo, pedalando muito e me envolvendo com pessoas da minha idade, até passar por um período em que sofri um abuso sexual aos 13 anos.

Foi um dos momentos mais marcantes e assustadores da minha vida. Escondi o ocorrido até os 30 anos

Sinto que a partir daquele momento minha essência foi modificada. E por conta disso, comecei a ter sintomas de transtorno de ansiedade e depressão, mas isso nos anos 2000 era pouquíssimo falado, ainda mais quando se tratava de uma criança.

Me casei muito cedo, aos 17 anos, em 2005. E me mudei de Campo Grande, onde morava, para Brasília, onde meu esposo vivia. Lá, o quadro de depressão se intensificou.

Mesmo já tendo visitado a cidade inúmeros vezes, a adaptação não foi fácil. O fato de estar longe dos meus pais pesou muito. Então, vieram o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e a Síndrome do Pânico.

Vivia o verdadeiro inferno na Terra. E, para piorar, sem o diagnóstico de nenhuma das doenças (ele veio só depois). Desenvolvi a agorafobia e não conseguia nem pegar um ônibus, pois o pânico tomava conta

Sabia que havia algo de errado. E isso afetou minha vida de tal modo que comecei a emagrecer muito e me agarrei ao computador como válvula de escape.

Ficava a maior parte do tempo só em casa, já que meu marido trabalhava muito. Com todas as doenças mentais já mencionadas e mais a solidão, as redes sociais viraram meu modo de não ficar só. Mas era, na verdade, um vício. Eu tinha que estar conectada. 

Meu marido não entendia o caos que eu vivia, não tinha apoio, ouvia que eu era “fresca” e que meus sentimentos não passavam de “mimimi”. Então, após quase sete anos de casamento, decidi pôr um fim na relação

Mesmo estando infeliz, por conta do luto da separação, a depressão veio com ainda mais força e um ano após o divórcio, tentei suicídio, no final de 2012.

AS DORES ERAM INSUPORTÁVEIS A PONTO DE EU NÃO CONSEGUIR FICAR EM PÉ PARA TRABALHAR

Posso dizer que nasci de novo após essa fase… E como tem sido doloroso desde então — doloroso no sentido literal.

Após essa tentativa de suicídio, fui encaminhada para psiquiatra e psicóloga. Foi após essa tentativa que as dores que eu sentia se intensificaram e fui, de fato, diagnosticada com depressão.

Estava no último estágio: depressão severa. Além disso, havia o TOC e o Transtorno de Ansiedade Generalizado (TAG).

Fiquei dois anos sendo medicada e tratada por psiquiatras e psicólogos, mas até então achava que as dores físicas que sentia eram um dos muitos efeitos colaterais causados pelas medicações que utilizava, que não eram poucas

Percebi que não estava bem no final de 2013. Trabalhando em uma grande loja de departamento de shopping, mal conseguia ficar em pé.

As dores me massacravam; ao tentar explicar, ninguém entendia, principalmente meus pais, por eu ser tão nova.

Tive tantas crises que optei por sair do emprego, pois não aguentava ficar cerca de dez horas por dia em pé, fora o tempo esperando pelo ônibus para voltar para casa.

SÓ DESCOBRI O QUE ERA FIBROMIALGIA NO SEGUNDO ANO DO CURSO DE FISIOTERAPIA E ENTENDI QUE TINHA UM NOME PARA O QUE EU VIVIA

Em 2014, entrei na faculdade e decidi cursar Fisioterapia. Não teria outra opção! Sempre digo que a Fisioterapia me escolheu, pois me sentia acolhida ali. Quanto mais estudava, mais queria aprender.

Até que em 2015, tive uma aula sobre fibromialgia. Lembro como se fosse hoje que naquele dia eu estava literalmente chorando de dor.

Cheguei à faculdade com dificuldades de andar. A dor me travava de uma forma que nem conseguiria explicar.

Então, durante essa aula, tão cheia de informações, me vi não como futura fisioterapeuta, mas como paciente.

Foi ali que caiu a ficha. Virei para o lado e disse para a minha amiga: Eu tenho fibromialgia. Ela disse: “Como assim? Você sente tudo isso?”

E após essa aula, conversei com o professor em prantos, pois não aguentava mais explicar o que ninguém conseguia entender. Então, como tinha um bom plano de saúde, ele me indicou alguns profissionais para me ajudar com o diagnóstico.

E lá fui eu passar pela peregrinação: reumatologista, endocrinologista, ginecologista, gastroenterologista, dermatologista, alergista, psiquiatra, psicólogo e por aí vai…

Foram vários exames, muitas dúvidas e nada de um diagnóstico preciso.

DEPOIS DE CONSULTAR UMA SÉRIE DE ESPECIALISTAS, VEIO A CONFIRMAÇÃO

Até que, ainda em 2015, ao retornar para a reumatologista e levar todos os exames, fui analisada da cabeça aos pés, literalmente.

Foi realizado o exame dos tender points, no qual são avaliados sensibilidade e nível de dor. O exame é realizado bilateralmente, ou seja, do lado esquerdo e direito.

Se houver mais de 11 pontos de dor, é um grande indício de que o paciente tem fibromialgia. Além do diagnóstico por descarte, sono irregular, enxaqueca frequente, rigidez matinal e dores generalizadas por mais de três meses.

Então, conversando mais profundamente com a especialista em dor, tive o diagnóstico de fibromialgia confirmado.

Ela me passou medicamentos, que inicialmente me recusei a tomar, pois sabia que iria ficar dopada e eu precisava trabalhar e estudar. Como conciliar tudo isso e ainda processar que estava com uma doença sem cura?

COM O DIAGNÓSTICO, PERDI O EMPREGO, O NAMORADO E ALGUNS AMIGOS. MENOS A DOR, ESSA NUNCA FOI EMBORA…

É difícil de acreditar que alguém sinta todos os sintomas que vemos nos livros e artigos, mas aconteceu comigo e acontece com outras milhares de pessoas.

Eu estava há quase um ano trabalhando em uma empresa e sentia dor o tempo todo. Conciliar estudos e emprego não foi fácil.

Me sentia extremamente fadigada. Algumas colegas de trabalho questionavam e até riam da situação. Nunca foi fácil explicar a dor, ainda mais quando as pessoas não têm empatia.

Infelizmente, ainda não existe um exame que mostre que o paciente tem fibromialgia. O diagnóstico realmente se dá por descarte de outras doenças 

Atualmente, existe um Questionário de Impacto da Fibromialgia (FIQ), que avalia a funcionalidade, distúrbios psicológicos, sintomas que o paciente sente, entre outros.

Após o diagnóstico, perdi meu emprego, pois meu chefe não entendia o impacto que a fibromialgia tinha na minha vida e na minha produtividade

Então, durante o segundo semestre do ano de 2015, me dediquei integralmente à vida acadêmica. O namorado da época também não quis mais ficar comigo. Primeiro, por estar desempregada. Segundo, por eu ter fibromialgia.

Muitos “amigos” também se afastaram por não acreditarem no que eu sentia. Achavam frescura, uma doença psicológica, falta de fé, de Deus e até preguiça ou desculpa para não trabalhar

Ouvi tantos absurdos desde antes do diagnóstico… As únicas pessoas que não me abandonaram e me deram todo o apoio possível foram meus pais e minhas amigas de verdade.

Mas tenho que lidar até hoje com olhares, piadinhas e julgamentos constantemente.

PASSEI A PESQUISAR A FUNDO MINHA DOENÇA E CONHECI OUTRAS PESSOAS NA MESMA SITUAÇÃO

Entrei de cabeça no mundo da fibromialgia, pesquisando e correndo atrás de estudos que pudessem clarear minha mente.

Quando temos um diagnóstico de uma doença sem cura e com tratamentos sem resultados satisfatórios, começamos a questionar o porquê de passar por isso

Questionamos se fizemos algo errado no nosso passado para ter sido diagnosticada com a doença, se poderíamos ter evitado etc.

Sentimos como se a culpa e a nostalgia fizessem parte do nosso cotidiano. E ficamos revivendo esse antes e depois da para ver o que poderia ter sido diferente.

Em 2016, me mudei para São Paulo e comecei um novo relacionamento. No final do mesmo ano, me casei.

Em 2017, devido à mudança de cidade, ao tentar transferência para outra faculdade, a instituição perdeu todo meu histórico acadêmico, faltando apenas um ano para me formar. Perde assim também o FIES.

Tentei entrar com uma ação judicial, mas não tinha recursos suficientes para arcar com os custos dos advogados. Caí em depressão mais uma vez e tive que tomar todos os medicamentos que me recusei anteriormente. Como consequência, acabei engordando muito e me vi no fundo do poço.

Foi nesse momento que procurei no Facebook por grupos de fibromialgia e vi a necessidade de expor o que eu sentia

Comecei a escrever, falar sobre a importância da fisioterapia para nós e a fazer lives frequentes nos grupos do Facebook mesmo.

Conheci muitas mulheres incríveis, com histórias sofridas e, além de colocar para fora o que eu tinha necessidade, pude ouvir e entender melhor esse universo das doenças invisíveis.

Escrever é uma válvula de escape deliciosa e uma terapia de certa forma.

PERCEBI QUE EU PODIA USAR MINHA EXPERIÊNCIA PARA FACILITAR A VIDA DE OUTRAS PESSOAS COM FIBROMIALGIA

Após ter contato com inúmeros pacientes com fibromialgia, mantive a amizade e muitos me cobravam e incentivavam a criar um canal e uma página no Facebook.

Então, em 2017, criei no YouTube o Mulheres de Fibra e a página Blog de uma jovem fibromialgica, no Facebook. Em 2019, criei também um perfil no Instagram com o mesmo nome.

Um dos primeiros vídeos alcançou quase 90 mil visualizações com o tema “Sintomas Incomuns da Fibromialgia”. E através desse vídeo e de outros, muitas pessoas chegaram a entender melhor como são as crises e até mesmo foram diagnosticadas após correrem atrás de ajuda

Ocorreu também de algumas mulheres conseguirem o diagnóstico correto do que tinham e souberam que não era fibromialgia, já que existem outras doenças com sintomas semelhantes, como lúpus, artrite reumatóide, endometriose, polimialgia, síndrome dolorosa miofascial, esclerose múltipla, entre outras.

Já recebi também pedidos de ajuda. Muitas pessoas queriam tirar suas vidas, pois é comum que os pacientes, quando recebem o diagnóstico, não tenham instrução nenhuma a respeito da fibromialgia. 

E como ainda não existem exames que comprove a doença, fica difícil de explicar o que sentimos para familiares, amigos e, até mesmo, patrões.

ESPERO QUE A “CREDENCIAL” DE FISIOTERAPEUTA COM FIBROMIALGIA SIRVA DE APOIO AOS MEUS FUTUROS PACIENTES

Em 2018, iniciei do zero a graduação em Fisioterapia aqui em São Paulo e me formei em dezembro passado. 

Ser fisioterapeuta com fibromialgia é algo que nunca imaginei, mas aprendi a ter ainda mais empatia, já que a doença é invisível, mas nós, não

Em 2021, consegui, junto de outras duas pacientes com fibromialgia, Viviane Guerra e Karina Astorri, formular uma proposta de texto, que foi encaminhada à uma amiga com a mesma doença da cidade de Cacoal (RO), e ajudou a formular um projeto de lei.

Mais adiante, o PL virou a lei municipal 4987/PMC/2022 e instituiu o Dia Municipal da Conscientização e Enfrentamento à Fibromialgia, criando a carteira de identificação da pessoa com fibromialgia, estabelecendo vagas e filas preferenciais de estacionamentos para estes pacientes, entre outras providências.

Quanto a mim, sigo me cuidando, mas desde 2018 não utilizo medicações para fibromialgia, por alguns motivos: a maioria dos medicamentos me deixava dopada, me fazia reter muito liquido, o que me deixava sem ânimo para nada, principalmente estudar.

Então, por escolha própria, optei por não me medicar. Durante as crises, utilizo remédios comuns para dor. O melhor tratamento até hoje, para mim, é a união de uma alimentação adequada associada à fisioterapia e à hidroterapia. 

SEI QUE NÃO PRECISO SER FORTE O TEMPO INTEIRO E APRENDI A VIVER  UM DIA DE CADA VEZ

Hoje, consigo lidar melhor com esse diagnóstico. Vivo um dia de cada vez e não me permito desistir. Afinal, ninguém poderá realizar os meus sonhos por mim.

Não tem como e nem por que ser forte em tempo integral. Haverá dias em que você não vai conseguir sair da cama e está tudo bem, outros em que terá menos dor. Nesses, você deve ser ainda mais grata! Agradecer pelas pequenas vitórias.

Eu deveria patentear uma frase que virou meu bordão: a fibromialgia é uma peneira e só vai permanecer ao seu lado quem realmente te ama

Aprendi nesses quase dez anos que muitos vão te abandonar, não vão aceitar a sua condição, vão te criticar e te fazer se sentir inferior.

Mas há também aqueles que vão se espelhar em você e te ajudar a seguir em frente. São esses que te ajudarão a se manter forte.

Outro aprendizado é: não queira abraçar o mundo e colocar sua dor no bolso para cuidar de alguém. Cuide de si mesmo(a) para depois cuidar do outro. É isso!

 

Dalila Menezes, mais conhecida como Lila, tem 34 anos. É sul-mato-grossense, fisioterapeuta, pós-graduanda em Gerontologia, Oncologia e Saúde da Mulher. Fibromiálgica, youtuber e criadora de conteúdo nas horas vagas, é apaixonada pela vida e pelas oportunidades que ela proporciona.

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