“É lá, no fundo do poço, que a gente aprende a reconstruir a vida usando somente o necessário”

Renan Quevedo - 5 jan 2018Renan Quevedo pediu demissão e partiu para uma viagem pelas estradas do Brasil em busca de artistas populares. Na foto, ao lado de uma obra de Vieira, da Ilha do Ferro (AL).
Renan Quevedo pediu demissão e partiu para uma viagem pelas estradas do Brasil em busca de artistas populares. Na foto, ao lado de uma obra de Vieira, da Ilha do Ferro (AL). (foto: Fernanda Vasconcellos).
Renan Quevedo - 5 jan 2018
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por Renan Quevedo

Nasci no interior de São Paulo, em Jaú. Vim para a capital, anos atrás, para “fazer faculdade e participar de um mercado de trabalho aquecido”. Cumpri bem essas duas missões: trabalhava no departamento criativo de uma agência de publicidade e vivi durante um tempo naquele esquema: alugo um apê, estou rodeado de amigos, aproveito a cena cultural da cidade e, no tempo livre, faço uma coisa que me desperte alguma paixão.

Há pouco mais de um ano, porém, minha vida virou do avesso. Mesmo. Foi um verdadeiro colapso interno. Para tentar descrever: eu passei a me sentir um fracassado, estava com dificuldades na família, tinha perdido pessoas importantes, estava desencantado com o emprego e, consequentemente, não me sentia um bom funcionário. Nenhuma esfera da vida estava fluindo bem para eu ter algo a que me apegar. Caí do cavalo, o gato subiu no telhado, a porca torceu o rabo, a casa caiu, dei com os burros n’água, me dei mal, fodeu – pode escolher a sua expressão preferida. Cheguei na famosa situação de não querer levantar da cama, e não era por preguiça.

Voltei a correr, tentei fazer meditação, comecei a terapia. Nada foi muito bom. Procurei por todos os lados alguma saída, até que finalmente encontrei a resposta nas prateleiras e armários lá de casa: estava nas peças dos artistas populares brasileiros que eu vinha pesquisando no meu tempo livre (aquele tempo para “alguma coisa que me desperte alguma paixão”), enquanto trabalhava como diretor de arte na agência de propaganda.

Deixe eu contar mais sobre o que era essa pesquisa. Ao mesmo tempo em que eu tinha meu emprego fixo, fazia viagens pelo Brasil para estudar e conhecer a arte popular brasileira — essa vertente carregada de traços e símbolos que o povo cria e preserva, retratando nossa identidade e ajudando a formar nossa cultura. Cruzei muitas vezes o país, comi poeira nos sertões nordestinos e sentei por horas em frente ao volante para chegar aos artistas.

Fazer isso nas brechas do serviço, nos finais de semana e feriados, sempre foi muito cansativo, mas ainda assim muito construtivo. Explico: imagine que dirigir 28 horas em um único final de semana para chegar ao Vale do Jequitinhonha (MG) consumia uma energia que eu não necessariamente tinha, mas a bateria recarregava quando eu encontrava os artistas de lá e conversávamos, por 15 minutos que fosse.

Inúmeras vezes esses artistas se desculpavam por não terem o que oferecer para comer, me pediam para não reparar a simplicidade de suas casas. Um detalhe: estou falando de artistas que já foram estudados, tiveram seus trabalhos publicados, exposições dentro e fora do Brasil, e que carregam o título de “consagrados”.

Quantas vezes me embrenhei em estradinhas de terra esburacadas, vi o GPS perder o sinal, e encontrei pessoas em situações dificílimas?

Eu vivia todo esse contraste em um único final de semana, e então voltava à rotina na capital carregado de histórias e sentimentos. Só que os problemas que eu tinha de resolver nos dias úteis eram bem menos empolgantes. Nunca separei uma vida da outra. Todo mundo sabia dessa minha paixão e me enchia de perguntas: Como você descobriu esse artista? Como se chega lá? Você não tem medo?

Foi um processo demorado, mas entendi que essa busca constante era necessária para o meu próprio ser existir. E, aí, tudo fez sentido. Numa maravilhosa noite de janeiro de 2017, há exatamente um ano, segundos antes de dormir, veio o estalo. Vou pegar um carro e ir atrás de novos artistas populares, não só dos consagrados!

Eu estava naquele estado depressivo e a nova ideia caiu como uma luva, parecia finalmente preencher o meu vazio. Perdi o sono. Comecei a planejar tudo ali, na hora, e percebi que era tão simples quanto complicado.

Sair do emprego? Desistir da carreira publicitária? Me desfazer do apartamento? Viver longe da família e dos amigos? Ter a estrada como casa?

Como é que eu ia comunicar isso a eles? Onde é que vou dormir? Como sobreviver? A resposta foi fácil: amanhã eu penso nisso.

E, assim, as coisas foram acontecendo até que o projeto Novos Para Nós, de fato, surgiu. Entendi que historicamente tivemos muitos pesquisadores em campo descobrindo novos artistas, mas essa atividade foi praticamente descontinuada nas últimas décadas e que teríamos muitos artistas “escondidos”, esperando somente para serem descobertos. Tudo estava redondo na minha cabeça e isso é difícil de acontecer. Mas, quando acontece, as coisas acontecem.

Prova disso foi quando criei o nome para o projeto e finalmente gostei, fiz o logo do projeto em cinco minutos (e gosto dele até agora). Pesquisei locadoras de carro e assinei o contrato dias depois. Mandei bordar uma boa quantidade de camisetas para usar de uniforme e fiz as malas.

De janeiro passado para cá, consegui pensar e reavaliar muita coisa do projeto — e da minha própria vida. O fato de eu criar o logo em 5 minutos significa que durante todos esses meses eu o estava moldando na minha cabeça. Quando fui executar, pareceu fácil, mas porque eu me preparei. E cada pessoa se prepara de um jeito. Até ao tomar café com os amigos, eu estava me preparando para o que viria depois. Só não tinha isso tão claro na minha cabeça.

Nenhum sonho vem com garantias. Ele só precisa ser maior do que qualquer medo ou insegurança

Dia 11 de outubro foi meu primeiro dia na estrada. Agora, com quase três meses de projeto mapeando sobretudo pessoas, entendo que tudo o que estou fazendo é uma celebração da nossa cultura e de quem realmente somos. Além de falar dos artistas populares e artesãos, escrevo e mostro as belezas naturais do nosso Brasil no site e redes sociais do projeto.

Nesse período, já encontrei, além dos artistas, pessoas cheias de histórias: pagadores de promessas, lapidadores de pedra, lavadeiras, benzedeiros, curandeiros, parteira, uma vila com 300 casas e uma única moradora, artistas de um circo decadente, uma comunidade quilombola com o próprio dialeto, entre tantas histórias. Separei as três que mais me chamaram a atenção.

Rosa e as peças de barro que produz, no Vale do Jequitinhonha.

Rosa e as peças de barro que produz, no Vale do Jequitinhonha.

No Vale do Jequitinhonha, após horas nas estradas de terra que levam a lugares nunca sinalizados e sempre inesperados, avistei de longe uma casa isolada em meio às montanhas e galhos secos. No céu, nenhuma nuvem manchava o azul. O sol ardia, as telhas torravam. Crianças corriam do lado de fora dando força à poeira que insistia em subir. Contei umas dez. De cara, entendi que ali morava uma família insistente – afinal de contas é o único jeito de sobreviver naquelas condições. Uma das crianças estava sozinha, isolada das demais, encostada no batente da porta olhando para o horizonte. Me aproximei e perguntei seu nome. “Não tenho, não”. A idade? “Não tenho, não”. Encontrar essas crianças não é novidade, o que nunca acontece é repararmos nelas.

O outro momento aconteceu também no Jequitinhonha. Na zona rural de Caraí (um dos polos mais criativos e importantes de cerâmica da região e do Brasil) vive uma artesã chamada Maria Rosa Negreiros. Mãe de duas filhas, ela é o sustento da família que sobrevive aos trancos e barrancos com a venda do artesanato.

Em barro, ela produz noivas, grávidas, igrejas, presépios e bichos, e suas filhas já dão indícios de continuar a tradição (o que é um alívio, culturalmente falando). Mas há um fator que afeta diretamente a produção: a ação dos atravessadores, que revendem as esculturas com lucros altíssimos, repassando uma fração ínfima para os escultores. Rose me contou isso chorando para, em seguida, abrir a despensa da cozinha e mostrar: tudo vazio. Vale a reflexão sobre como consumimos a cultura produzida pelo povo brasileiro e o valor que a ela damos.

A helictite, formação rochosa que depois de "descer" contraria a gravidade e "sobe", que encantou Renan.

Em uma caverna da Chapada Diamantina, a helictite (formação calcária que depois de “descer” contraria a gravidade e “sobe”), que encantou Renan.

A terceira e última história aconteceu na Chapada Diamantina, na Bahia, de onde escrevo esse texto. A região tem muitas serras e grutas, além de tantas piscinas naturais, artesanato e gente feliz. Há tempos queria fazer uma exploração dentro de uma gruta e escolhi a Torrinha, pois era chamada de “a mais completa”, devido às formações ali encontradas. Digo isso porque, exatamente lá, está o único exemplar — do mundo! — de uma helictite (formação que cresce de cima para baixo, porém, em determinado momento, começa a subir, desafiando a gravidade) com flor de aragonita (se forma devido à pressão).

Foram duas longas horas caminhando, só com a luz da lanterninha, dentro da caverna, simplesmente para encontrar essa formação, que mede no máximo 10 centímetros — e demorou milhares e milhares de anos para se formar. Pare um pouco para pensar. Na vida, é muito comum coisas que impressionam pelo tamanho exagerado: as montanhas, o céu, o mar, amor de mãe, até mesmo a quantidade de árvores desmatadas, dados de violência, casos de preconceito.

Eu, ao contrário, ando pelo país coletando pequenos detalhes. Coisas aparentemente  insignificantes, com tamanhos quase desprezíveis, mas que têm me dado o Norte para seguir acreditando. Os olhos da criança sem nome, a persistência da artesã que sobrevive do barro e a bendita única helictite com flor de aragonita do mundo.

Penso em como eu estava há um ano. É lá, no fundo do poço, que a gente aprende a reconstruir a vida usando somente o necessário – e essas coisas podem ser bem pequenas, difíceis de enxergar.

 

 

Renan Quevedo, 26, é publicitário e pesquisador de arte popular brasileira. Desde outubro, está na estrada com o projeto Novos Para Nós (que depende de financiamento coletivo para continuar). 

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