Ele faz 30 cirurgias por semana, administra suas clínicas oftalmológicas e ainda encontra tempo para tocar uma rede de restaurantes

Paulo Vieira - 24 out 2023
Renato Neves, dono da clínica oftalmológica Eye Care e sócio de uma rede de restaurantes (foto: Tadeu Brunelli).
Paulo Vieira - 24 out 2023
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Numa época de enorme concentração no setor de saúde, quem tem sete clínicas é rei (ou, quem sabe, possui um olho só, como no provérbio). 

Bem, esta abertura, é forçoso reconhecer, ficou meio capenga, pois o oftalmologista paulistano Renato Neves não reina, tampouco tem grandes dificuldades de visão; mas sim, Renato consegue a proeza de ainda manter uma rede de clínicas oftalmológicas, que tem como hub a Eye Care Oftalmologia, com centro cirúrgico e tratamento ambulatorial, algo disruptivo numa época em que empresas financeiras e grandes grupos de saúde passam o rodo na banca e colocam sob seu controle clínicas e mais clínicas de várias especialidades. 

A lógica da verticalização, em que conglomerados cada vez maiores tentam oferecer a seus clientes um ecossistema que inclui do convênio médico ao tratamento hospitalar, passando pela rede de laboratórios clínicos, explica, por exemplo, o investimento recente do grupo Fleury: R$ 1 bi em aquisições, engolindo inclusive uma rede de clínicas especializadas em tratamento de retina. 

Dois grupos financeiros também vieram nos últimos anos adquirindo clínicas oftalmológicas a granel: a Vision One, sociedade com fundo de private equity da XP; e a Opty, do grupo Pátria, com diversas marcas de saúde pelo Brasil. 

Renato conta que já recebeu propostas pela Eye Care, mas, aos 58 anos, se considera muito jovem para se aposentar, o que tenderia a acontecer, pois acha difícil medicar – ou administrar – para terceiros. 

Embora passe muito tempo exercendo a atividade para a qual se formou – ele faz cerca de 30 cirurgias por semana –, o médico ainda toca a administração da Eye Care e agora também de uma rede de restaurantes que foi montando gradualmente, desde a pandemia, e conta hoje com quatro endereços (nos Jardins, Itaim Bibi e Higienópolis). 

O médico aparentemente segura as diversas funções sem grande estresse. Divide-as equitativamente e até encontra tempo para estrelar reality shows caseiros, que mostram o dia a dia de sua clínica e às vezes de suas viagens gastronômicas de lazer ou capacitação – os realitys são exibidos nas salas de espera das clínicas, além das redes sociais da Eye Care e do próprio médico. 

(Encontrar tempo para conversar com o Draft por cerca de 1h30 e com apenas uma interrupção na tarde de uma terça-feira normal me impressionou.)

Há uma antiga ideia, quase anedótica, que circula entre os médicos, de que nenhum deles é minimamente hábil nos negócios, às vezes numa relação inversamente proporcional à competência técnica. Renato pode ser a famosa exceção que confirma a regra. 

Lá atrás o médico se beneficiou de ser o pioneiro numa cirurgia que nenhum par em São Paulo conhecia, a de catarata sem ponto. Passou a fazê-la na Escola Paulista de Medicina (Unifesp), onde se graduou. A Unifesp já tinha a máquina, mas ninguém habilitado a operá-la. 

Renato conheceu a técnica na universidade de Harvard (Estados Unidos), onde fez pós-doutorado em 1994. O boca a boca fez o resto, ajudado por alguns pacientes famosos, como Paulo Maluf (então governador paulista) “e toda a comunidade libanesa de São Paulo” e, mais tarde, Faustão, Ana Maria Braga e Gugu. 

Atualmente, além das muitas especialidades oftalmológicas, ele mantém, em espaço discreto da Eye Care, um consultório de longevidade com visada multidisciplinar, de suplementação vitamínica a atendimento psicológico, procurando melhorar a qualidade de vida dos pacientes já mais entrados em anos. 

Leia a seguir a conversa de Renato Neves com o Draft:

 

O setor de saúde vive um momento de concentração. Qual é a receita para seguir longe disso, ser esse cara meio maverick que você se tornou?
Sou mesmo isso, um dos caras que sobrou. Pensando em quem tem clínica, não consigo hoje me lembrar de mais ninguém. 

O cenário é o seguinte: tome como exemplo o banco Pátria, que fez um fundo e comprou 70 clínicas pelo Brasil inteiro. Eles consideram isso um bom negócio, e, por isso, só compram um tipo de lente [oftalmológica], mais barata, que vai gerar mais lucro. 

Com relação ao médico, eles o transformam num “gerador de lucro”; alguns também falam no médico como “commodity”. Esses conglomerados têm uma administração comum, RH para todas as empresas. O objetivo final é o lucro – e, com isso, a qualidade passa para o segundo lugar 

Mas um médico mais antigo, como eu sou, pensa na qualidade, estuda, quer fazer bem feito, compra máquina e equipamentos não visando lucro, mas melhora de atendimento… Meu resultado vem do negócio bem feito. 

E o espaço não acaba se fechando com essa concorrência?
Fica mais difícil concorrer, tem aquela pressão, é difícil contratar a equipe. Eu recebi vários convites [para vender a rede de clínicas], mas, primeiro, não quero me aposentar, não é bom negócio pra mim; e, segundo, trabalhar para eles [concorrentes] acho que não consigo. Deixaria de fazer aquilo que eu gosto. E não me pauto só pelo financeiro. 

O setor de medicina [no Brasil] vai viver nos próximos cinco anos o que os Estados Unidos já vivenciou. Você já vê lá hospitais médios, como o de Miami, com lucro e faturamento gigantes, na casa do bilhão. Há ainda a questão da isenção de impostos, o trabalho com médicos mais baratos, o veto à realização de exames mais caros 

Tem ainda um excesso de faculdades de medicina despejando novos profissionais, faculdades e mesmo cursinhos que formam especialistas com dois meses de curso. Num fim de semana dá para aprender a fazer coisas na área de dermatologia. Em oftalmologia há cursinhos em que é possível aprender teoria e em alguns casos até mesmo cirurgia. 

Eu vejo que essa falta de qualidade no ensino da medicina vai chegar ao setor de maneira geral.

Isso por um lado. E por outro tem a automatização. Ela não vai acabar por tornar menos necessário esse especialista “old school”, digamos, de grande conhecimento técnico?
Se você me pergunta se é possível trocar o médico por inteligência artificial, eu te digo que sim – o médico ruim, ao menos. A parte da intuição, da experiência, que são as partes que eu acho superiores, que definem os bons profissionais, aí já não. 

Experimente dar os tomos do tratado de oftalmologia, acho que são 13, para alguém. Eu duvido que essa pessoa, apenas lendo os livros, sem ter visto ou vivenciado vários casos, consiga fazer o diagnóstico preciso de um paciente. 

Ao longo dos anos a demanda dos pacientes da Eye Care mudou significativamente? Você tem números expressivos de cirurgias de catarata e reversão de miopia e astigmatismo a laser.
Isso segue, mas temos especialistas de diversos setores, retina, neuro-oftalmologia, oftalmopediatria. E como a gente foca em qualidade, recebemos muitos casos de segunda opinião. 

A clínica mudou um pouco ao receber esses casos de diagnóstico difícil. Às vezes me sinto como o Dr. House [o médico meio Sherlock Holmes do seriado homônimo]. Há também problemas e complicações cirúrgicas que chegam para resolvermos 

Ocorre também de uma médica, ao constatar um estrabismo, por exemplo, identificar tumores – às vezes de olho mesmo, às vezes de cérebro. Se é tumor ocular, encaminhamos para o oncologista ocular Rubens Belfort Neto, que eu considero o papa disso no Brasil.

Acho que ouvi de você mesmo, Renato, muitos anos atrás, talvez em relação à finada Unimed paulistana, que um negócio gerido por médicos não pode dar certo… Então como o seu dá certo?
Dizem que quem monta uma clínica que funciona bem pode montar qualquer coisa, fábrica, restaurante… Clínica é bem mais difícil do que restaurante, que eu também tenho. 

É complexo, os planos de convênio pagam quanto e quando eles querem; médicos de qualidade são difíceis de arrumar e manter; e há que se relacionar com o paciente, pessoas que podem vir a ficar cegas ou mesmo morrerem 

Talvez ajude o fato de eu estudar muito, como médicos em geral estudam, mas eu aprendo e vou fundo no negócio. Aprendi a fazer pizza com os mestres de Napoli, fiz o jardim da minha casa, aprendi até sobre os sabres de luz dos Jedi (risos). 

Em entrevistas que eu já fiz com CEOs – por exemplo, o Christian Gebara, da Vivo –, invariavelmente, a conversa migrava para diversidade, um tema que parece hoje incontornável no mundo corporativo. Você leva esse tema em consideração na hora de recrutar?
Acho que fazemos o recrutamento de maneira normal aqui. Se a pessoa é do bem, é “easygoing”, não importa quem seja, pode vir trabalhar. Eu não faço força para trazer minorias, porque acho que, no limite, isso seria uma forma de preconceito também. 

No [hospital Albert] Einstein tem, não sei se o termo é esse, travesti ou transgênero, na recepção tem uma funcionária, é simpática e mostra que o hospital se preocupa com a diversidade. Eu não me preocupo em mostrar que me preocupo com o tema, aqui é natural.

Nos cargos mais importantes – os médicos – pedimos primeiro indicações a outros médicos, eventualmente publicamos algum tipo de anúncio. Mas é uma escala pequena. Se conheço o lugar em que o candidato foi treinado, com quem ele aprendeu a operar, se ele vem de faculdade legal, tudo isso é muito importante. 

Hoje comigo, operando catarata, há duas meninas jovens que trabalham muito bem, mas antes de começarem aqui fui ver operar.

Beleza, mas a área médica exige do estudante muita dedicação e investimento, tem um funil na universidade, anos de residência médica. Com esse modelo na Eye Care você não acaba por perpetuar uma situação em que apenas brancos trabalham?
Acho que médico negro chegar é difícil, oftalmologista eu não conheço nenhum. 

Converso com amigos professores na Escola Paulista de Medicina (Unifesp), há uma enorme dificuldade para os meninos que entram por cota, eles não têm dinheiro para pegar o ônibus, às vezes nem mesmo para comer. Em casa eventualmente o pai é alcoólatra, rasga os livros do filho 

Eu até faço doações aqui, cada um deles tem um mentor, mas é difícil esse pessoal chegar [ao final do curso]. O ideal seria haver uma estrutura que começasse lá de baixo, no ensino fundamental. 

Em 35 anos de carreira, posso te dizer que não conheci e não conheço nenhum oftalmologista negro. Gay, tem muitos, dos dois lados. E muito mais mulher agora. 

Teve essa inversão, pois acho que a oftalmologia é uma especialidade médica mais delicada, tem relação com algo mais poético, talvez mais próxima da estética. Mas há excelentes cirurgiãs também de catarata ou retina.  

Você utiliza fortemente as redes sociais, inclusive com alguns vídeos de, acho que dá para chamar assim, “realities”, como um que mostra os teus dilemas e da tua equipe na procura de um novo endereço para a Eye Care. Qual sua intenção com essa vertente?
Como tantos, eu tinha aqui na clínica os monitores de televisão ligados no [programa do José Luiz] Datena. Era só morte, baixo astral. A própria programação da TV aberta já é baixo astral. 

Aí, vendo na TV uma mulher vendendo ômega 3, eu decidi usar esse espaço para marketing interno. 

Começamos mostrando cirurgia de catarata, mas era um negócio chato pra caramba. Aí decidi colocar as entrevistas que eu, convidado, fazia em programas como os do Gugu, do Faustão, da Ana Maria Braga… 

Pus, por uma época, esses programas todos aqui, com um pen drive e tal. Eu senti que os pacientes achavam bacana ter um médico que ia na televisão. 

Depois comecei a fazer esses vídeos de história, de viagem, de alguma coisa que acontecia, tipo um reality show aqui também. E vi que isso dava uma humanização. O paciente se sentia mais próximo, mais à vontade. Então foi por isso que fui por esse caminho. 

Eu imaginava que a ideia era prospectar novos clientes, ao menos pelas redes sociais.
Não deixa de ser uma forma de propaganda. Tem um vídeo que eu fiz com o Marcos Lago, que trabalha comigo na Eye Care há 23 anos. Temos quase “6.0” de idade, e cada um, no vídeo, examina o outro. 

Ele se especializou, além de oftalmo, em longevidade, em envelhecimento, hormônios; e grandes problemas oculares têm relação, claro, com o envelhecimento da população. Foi [um conteúdo] super simpático, deu quase 2 mil views aí no Instagram. Mas atração de clientes não é o objetivo. 

Por outro lado, a gente tem campanha no Google, por meio de uma startup, a Intelligen.ai, em que fui seed investor. Ela permite que uma clínica, ou um médico, ganhe visibilidade maior na busca, pagando muito menos do que é normalmente cobrado pelo Google, eventualmente até 10% disso.

Chega a ser inverossímil pensar num médico, que, sem largar o ofício, passa a comandar restaurantes. O que aconteceu para você explorar esse sendero?
Eu li um livro uma vez, Trabalhe 4 horas por semana, do Timothy Ferriss. Ele [o autor] montou a vida dele sempre pensando em tirar miniférias. 

Ele viaja pelo mundo e fica seis meses, por exemplo, em Buenos Aires. E ali aprende a dançar tango. Aí vai para o Japão e resolve aprender sumô. E ele, que era da luta livre, começa a lutar sumô. E faz isso trabalhando quatro horas por semana e se sustentando dessa forma. 

Depois que eu li o livro, falei: “Putz, o meu trabalho depende muito de mim”. E então pensei se eu não conseguiria montar algo que não dependesse de mim, que funcionasse sozinho. Esse era o meu objetivo 

Na primeira tentativa que fiz, montei uma empresa de suplementos e acessórios para crossfit que virou a maior do Brasil. Comercializava marcas boas, importadas, só que o dólar era 2 [reais], depois virou 5 [reais], então a empresa quebrou. Mas foi legal, durou dois anos. A gente conseguiu fazer o negócio, e funcionava sem mim. 

Isso me estimulou. Não me atrapalhava em nada, eu continuava médico, clinicando. E usava a estrutura da clínica, o financeiro, colocava mais dois funcionários e funcionava junto.

Era essa a ideia, então? Quase um reality show, algo do tipo “vou me testar aqui”? Nem era pelo dinheiro ou coisa assim.

Era para ver se funcionava, e funcionou. O restaurante foi assim: um pouquinho antes da pandemia, eu comecei, de hobby, a fazer pizza em casa. E ficava cada vez melhor, comecei a estudar, comprei um livro sobre a bioquímica da pizza. 

Fui para Nápoles uma vez, falei com os melhores pizzaiolos do mundo, de lá. Aí pensei em abrir uma pizzaria. Não entendia nada de restaurante, achava que restaurante era a coisa mais difícil do mundo

Chamei um consultor, ele veio aqui, disse que pizzaria não dava dinheiro e sugeriu um lugar em que as pessoas viriam para comer coisas “muito legais”. O conceito era de trattoria italiana. Ele deu uns seis exemplos em Nova York, Londres.

Mas aí o imperativo passou a ser o dinheiro, não?
O consultor disse que pizzaria era para levar os amigos para comer, e disse que o que eu devia fazer mesmo era um negócio. E eu quero sempre fazer negócio. 

E eu estava naquele conceito lá, que a atividade funcionasse e não dependesse de mim. E a minha mulher, que também gostava bastante de comida italiana, me apoiou para a gente fazer juntos [o restaurante]. 

A gente foi duas, três vezes, para a Itália experimentar a comida. Na Itália, na hora que você sai do restaurante não tem aquele negócio de ficar assim, passando mal, você dorme bem à noite. Era essa a ideia. 

Com a pandemia, era para abrir em abril, mas só abrimos em agosto [de 2020]. O Luce Gastronomia começou na Oscar Freire, nos Jardins, e depois montamos uma filial no shopping Higienópolis. 

Agora temos também o Capanema, também nos Jardins, de comida mediterrânea e kosher, e por fim o Mila, de comida italiana jovem, no Itaim Bibi, em que nos associamos ao [antigo] proprietário para dar um upgrade. Entrou para o nosso grupo agora.

Caso os restaurantes fiquem muito grandes, e você seja necessário ali, a ideia de a coisa andar sozinha seguirá fazendo sentido?
Eu já sou requisitado nos restaurantes. Mas é diferente da clínica. 

Ninguém gosta de gastar dinheiro com médico, tratar doenças. Restaurante é diferente, a pessoa vai lá para se sentir bem. Essa diferença pra gente é legal, dá um contraponto, uma satisfação, um relax. Mesmo olhar as planilhas é relax 

Eu e minha mulher vamos em cada um deles toda semana, olhamos os pratos novos, o ambiente. Esse conceito do Luce acabou sendo vencedor, tanto que veio o convite para o shopping [Higienópolis]. 

No meio do caminho houve um outro, especializado em café-da-manhã, mas a gente diagnosticou rapidamente que não daria certo e fechou. Vimos que o brasileiro só gosta de pão na chapa, misto quente e café… O tíquete médio ali era 30 reais, e a gente tinha um cardápio bem mais caprichado, a conta não fechava. Servia até shakshuka [prato de ovos fritos e molho de tomate, popular em Israel]. 

Encaramos como aprendizado. Quando a pancada [financeira] não é muito grande, é sempre um aprendizado.   

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