Conhecida por seu ativismo em causas sociais e ambientais ao redor do mundo, a fabricante de sorvetes norte-americana Ben & Jerry’s decidiu concentrar seus esforços, no Brasil, na causa da inclusão e da diversidade – mais especificamente, em relação a pessoas LGBTQIA+.
Desde a sua chegada ao território nacional, em 2014, a empresa viu que precisava fazer alguma coisa para ajudar a tirar o Brasil da triste liderança no ranking global de violência contra pessoas trans. Para isso, promoveu uma série de campanhas nos últimos oito anos: para aumentar a representatividade LGBTQIA+ no parlamento, para que o STF criminalizasse a LGBTfobia e, mais recentemente, para que as Secretarias de Segurança Pública dos Estados criassem protocolos e métricas específicas para o acolhimento e registro de agressões contra esse público.
Essa última, batizada de “Resolve esse B.O.”, iniciada neste ano, reuniu marcas como Doritos, Amstel, Mercado Livre e Telecine para ir às ruas coletar assinaturas para chamar a atenção dos Estados para a invisibilidade da LGBTfobia. Com o sucesso da primeira etapa de trabalhos, que chegou a coletar 170 mil assinaturas, marcas como Nivea, Havaianas e Burguer King repostaram a campanha em suas redes. “No segundo semestre vamos voltar a chamar a atenção para isso, pois nossa meta é chegar a meio milhão de assinaturas”, conta o líder da Ben & Jerry’s no Brasil, o curitibano Rodrigo Santini, 42.
Santini, que também é vice-presidente do conselho do Greenpeace no país, falou com NetZero diretamente da floresta amazônica, onde acompanhava uma expedição da ONG. Ele enfatizou a importância de as marcas se posicionarem em relação a questões de direitos humanos, observou retrocessos na área no Brasil e no mundo nos últimos anos e foi taxativo: a empresa que escolher ficar em cima do muro, ou seja, não fazer nada para contribuir para a melhoria da sociedade, será penalizada.
Mais do que marketing de causa, diz, a Ben & Jerry’s trabalha com ativismo, o que incomoda até mesmo alguns de seus próprios consumidores. Paciência, diz ele. “Não estamos dispostos a abrir mão dos nossos valores porque um consumidor não gosta do nosso posicionamento.” Confira a seguir os principais trechos da entrevista do líder da Ben & Jerry’s no Brasil.
NETZERO: A Ben & Jerry’s é famosa pelo ativismo social e ambiental. Qual é a diferença entre marketing de causa e ativismo?
RODRIGO SANTINI: O marketing de causa tenta fazer as pessoas se conectarem à marca. Então o primeiro passo é perguntar: o que o consumidor quer de mim? O que espera da minha marca? Vou tentar descobrir o que o consumidor quer que eu defenda, então eu incorporo aquele valor. Meu drive de decisão, nesse caso, é o consumidor.
O ativismo vem de outro lado. Eu como empresa não olho para o consumidor para definir minhas causas. Elas têm a ver com os meus valores e com aquilo que acho que é importante. Como não tenho compromisso com o que o cliente espera, posso falar de temas mais complexos. No nosso caso, por exemplo, elegemos a violência contra mulheres LBTs pretas como um tema importante, porque sabemos que essa população sofre muito mais violência e que ninguém está falando muito disso.
Marketing de causa e ativismo são coisas diferentes, mas não vejo uma hierarquia entre eles. Não tem uma forma mais certa do que outra.
E quais as diferenças entre as métricas de um e de outro? Como avaliar o seu sucesso?
Uma campanha de marketing de causa bem-sucedida é aquela que trouxe resultados para a minha marca, ou seja, aumentou o “brand awareness”, entre outras coisas. O sucesso no ativismo não é o sucesso da marca. O sucesso é da própria causa, então estou olhando para outros índices. É uma construção diferente. Por exemplo, se eu chamo um parceiro para uma campanha e esse parceiro tem mais visibilidade do que eu, isso não é um problema, porque a métrica de sucesso não tem a ver com marca, e sim com um avanço de política pública. Se isso aconteceu, é um sucesso.
Como lidar com o fracasso, com as ações que não geram mudança?
A questão principal não é exatamente o fracasso, mas sim entender que o timing de uma ação dessas não é o mesmo de uma empresa. São questões que demoram anos. Em 2018, por exemplo, incentivamos a representatividade LGBTQIA+ no Legislativo. Em 2019 trabalhamos com a All Out para colher assinaturas pela criminalização da LGBTfobia. Quando isso aconteceu, percebemos que faltavam instrumentos para colocar isso em prática.
Então começamos a pensar em como criar uma caixinha para que, nos Boletins de Ocorrência policiais, fosse sinalizado crime de LGBTfobia. Afinal, de que adianta dizer para as pessoas que esse é um tema importante se na prática a pessoa LGBT é agredida e isso fica invisível porque não existe um protocolo de tratamento da questão? Mais do que falhar ou não falhar, a questão é como articular uma linha do tempo que não é nada empresarial.
Como são escolhidas as causas de vocês?
A Ben & Jerry’s tem um conselho formado por ativistas e por pessoas da Unilever. A presidente do board global, [a indiana] Anuradha Mittal, vem do movimento campesino, tem uma atuação forte contra a grilagem de terras pelo mundo. Quando proponho uma campanha, esse board tem de aprovar. Se acharem que a ideia tem a ver com marketing, ela é rejeitada. A construção das campanhas não é solitária. Para pensar a “Resolve esse B.O.” a gente chamou pessoas que trabalhavam com temas ligados a gênero e ao feminismo, movimentos LGBTQIA+, pessoas ligadas a questões raciais, e procuramos fazer uma intersecção disso tudo.
Questionamos: depois que a LGBTfobia foi criminalizada, o que falta? Essas pessoas disseram que faltava acolhimento. E qual é a porta de entrada do sistema, onde isso precisa acontecer primeiro? É a segurança pública, porque é lá que a vítima vai fazer o B.O. A construção das ideias é feita com várias pessoas à mesa, e depois cada um sai com um papel para executar. A gente não dá voz a ninguém, quem somos nós para isso, mas podemos ampliar vozes e fortalecer esse processo.
A Ben & Jerry’s também é mundialmente conhecida por causas ambientais. No Brasil, isso é também uma bandeira?
Sim, a gente já fez várias ações nesse sentido. Estruturalmente, focamos na questão LGBTQIA+, mas fizemos ações ambientais também. Por exemplo, fizemos uma provocação à cidade de São Paulo quando teve licitação de transporte público, para que fosse incluída uma cláusula sobre transporte limpo.
Apoiamos a Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília. Trabalhamos com a WWF para um marco legal sobre poluição plástica nos oceanos. Nos posicionamos claramente contra a MP 910, sobre grilagem. Existe uma série de ações com agendas urgentes, mas a nossa estrutura maior está reservada para a questão LGBTQIA+.
Quando esse tema entrou na pauta da Ben & Jerry’s?
Essa decisão aconteceu há muito tempo, dois anos depois de a marca chegar ao Brasil [em 2014]. Naquele momento, os movimentos feministas estavam ganhando visibilidade, ficando mais fortes. Também existe a questão de que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo e que mais mata LGBT nas Américas – sem falar nas taxas de suicídio muito altas entre essas pessoas.
Como lidam com as críticas de consumidores contrários a essas causas?
Eu sempre digo que, se não tem gente reclamando, a campanha não foi boa. A gente não é uma marca gigantesca, existem marcas muito maiores, que às vezes falam coisas superficiais e mesmo assim são uma bala de canhão. Como eu sou uma marca menor, posso ser mais preciso no advocacy – e isso vai desagradar algumas pessoas. Somos uma marca democrática: tudo bem se alguns clientes discordarem de nós, não vamos abrir mão dos nossos valores.
Quando a resposta de alguém vem na forma de puro ódio, tipo “quero que vocês morram”, e isso realmente aparece, não tem o que conversar. Mas quando alguém fala algo como “diante de tantas questões importantes, como a educação, por que falar de LGBTQIA+?”, aí a gente conversa, porque parece ser uma questão de falta de informação. A gente explica que abordar uma questão não é excluir outra, que as coisas não se opõem assim.
O ativismo sempre foi importante na Ben & Jerry’s?
O Ben e o Jerry, que são os fundadores, trouxeram isso desde a origem. Eles queriam usar a marca como um meio para algo maior. Eles queriam protestar, fazer ativismo, e fizeram uma marca de sorvete para pagar as contas enquanto se dedicavam a isso. Os três pilares da marca se mantêm desde então. O de produto, que é não usar transgênicos, buscar ingredientes naturais, sustentáveis; o econômico, que é
beneficiar todo mundo que faz parte da cadeia; e o social, ou seja, criar um espaço para ampliar causas e gerar impacto positivo.
Por exemplo, quem produz os brownies dos sorvetes é a Greyston Bakery, que tem uma política de emprego inclusivo e contrata pessoas em situação de vulnerabilidade. A massa de cookie é feita por refugiados. Temos muito presente essa questão de incluir os excluídos.
O Brasil se destaca em alguma dessas causas da empresa?
O sorvete aqui é importado dos EUA, porque ainda não tenho como montar uma cadeia de produção com tamanha complexidade aqui. Isso leva anos. O que a gente trabalha mais forte aqui é diversidade e inclusão. Viramos case da ONU, estamos entre as empresas com melhores práticas de direitos humanos.
Como você avalia o envolvimento das empresas brasileiras com a agenda ESG?
Acho que existe uma preocupação cada vez maior e há mecanismos importantes que ajudam a localizar quem é quem nesse processo, como o Sistema B, uma referência de quem segue a agenda ESG, com índices bastante evoluídos. A agenda ESG avança cada vez mais, mas a discussão é como criar mecanismos para as empresas se posicionarem da porta para fora. Isso não é marketing, é compliance, é
jurídico, são relações governamentais.
Como a gente consegue se posicionar sobre momentos em que vemos uma erosão da agenda de direitos humanos no país e no mundo? Tudo bem se a empresa da porta para dentro defende esses valores, mas e da porta para fora? As empresas têm medo ou não querem se posicionar dessa forma?
Não é só que elas não queiram, existe também uma questão forte sobre como fazer isso. No passado, as empresas tinham um lugar muito claro. Elas não tinham que pensar em políticas públicas. Isso é, entre aspas, algo novo. Claro que já aconteceu em momentos de guerra, crise, mas, na nossa geração, é novo.
A empresa hoje precisa pensar no seu papel no próprio processo democrático. Isso, aliás, é de interesse delas, porque, para que possam operar, é preciso que exista um mercado democrático.
Pensando nisso, você acha que quem ficar em cima do muro será penalizado?
Acho que já é penalizado. Eu costumo dizer que a neutralidade, ou melhor, a inação, também é uma ação. Não agir é uma escolha, é uma ação. Não existe hoje estar em cima do muro, ou a empresa age fazendo algo ou “age” fazendo nada, e as duas coisas são escolhas deliberadas. Não agir é uma ação, e a sociedade civil tem olhado para isso.
Por onde uma empresa ou um executivo que não estão atentos a essas questões podem começar?
Em um vídeo que o Jerry gravou para uma convenção nossa, ele diz: “O sorvete é bom, o sorvete é gostoso, mas, precisar dele, ninguém precisa. O que o mundo precisa é de mais compaixão. Se o sorvete puder ser um meio para isso, por que não? Podemos usar isso como meio, e não como fim”.
Devemos pensar como usamos nossos espaços de poder para contribuir para um mundo melhor. Você não precisa procurar uma ONG para fazer isso, pode fazer de onde está. Por exemplo, mesmo que a sua empresa não tenha políticas afirmativas, você pode ir ao RH e dizer que quer um recorte de contratações que seja ao menos proporcional à população brasileira. Você pode fazer isso. Todos nós temos algum
poder, o que varia é o tamanho dele – e como o utilizamos.
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