Cresci em uma casa onde o Sistema Único de Saúde (SUS) era pauta diária. Minhas tias, profissionais da saúde pública, chegavam dos plantões trazendo histórias de superação.
Eu via nelas o orgulho de quem acreditava que o trabalho transformava vidas. Mas a pandemia apagou esse brilho.
As conversas que antes eram sobre pacientes recuperados deram lugar ao cansaço extremo. Uma tia chegava com o rosto marcado pela máscara usada o dia inteiro; a outra se isolava, sem poder cuidar da filha pequena dada a proximidade com o vírus
Pela primeira vez, percebi que até minhas heroínas podiam quebrar. Dentro de casa, entendi que o SUS não estava apenas sobrecarregado: ele vivia um colapso humano.
Na escola pública onde eu estudava, esse colapso tinha outra face. Em 2021, o Brasil enfrentava uma onda de massacres e ameaças em colégios. O medo atravessava os corredores, a tensão era visível.
Eu percebia nos meus colegas a mesma sensação que via em casa: gente tentando seguir, mas sem apoio, sem escuta, sem espaço para respirar.
Foi nesse contexto que busquei entender, de forma mais profunda, os impactos da pandemia na saúde mental. Entrei em contato com a professora Silviane Barbato, da Universidade de Brasília, e comecei uma pesquisa longitudinal sobre o tema. Durante três anos, coletamos relatos e dados de profissionais do SUS.
Os números confirmavam o que eu já presumia: quem cuida também precisa ser cuidado. A cada semana, novos relatos mostravam exaustão, ansiedade e falta de apoio
Essa vivência reforçou em mim a convicção de que não dá para falar de saúde pública sem escutar quem está na linha de frente.
Com essa inquietação, nasceu o Juventude pelo SUS, um movimento formado por jovens para ampliar as vozes de quem vive a saúde pública no dia a dia.
Minha motivação ao criar essa iniciativa, aos meus 17 anos, é simples: reduzir a distância entre a vida real e as políticas públicas.
No início, não tinha nada além de vontade. Criei um Instagram, gravei vídeos explicando a proposta e abri um formulário para interessados. Aos poucos, as pessoas começaram a chegar
O primeiro episódio do podcast produzi praticamente sozinha. Escrevi roteiros, organizei perguntas e gravei com a doutora Lygia Pereira, professora da USP e referência em genética.
Queria que os voluntários entrassem em algo que já existisse, ainda que de forma embrionária, para acreditarem que valia a pena investir tempo. Só depois desse teste decidi formar um time de voluntários para dar corpo e tração ao projeto.
Hoje nos dividimos em três frentes: comunicação, conteúdo e policy reports. Cada grupo tem seu papel, mas todos compartilham a mesma missão de transformar histórias de profissionais de saúde em memória, visibilidade e proposta de mudança
Começar foi mais difícil do que imaginei. Usávamos plataformas gratuitas, equipamentos improvisados, internet que caía no meio das entrevistas. O que podia ser motivo de desespero acabou virando aprendizado. Cada falha nos ensinava a melhorar.
No início do Juventude pelo SUS, participei de um evento no Ministério da Saúde e conheci o trabalho da ImpulsoGov, organização sem fins lucrativos que trabalha em parceria com governos para o SUS com soluções inovadoras.
Voltei inspirada! Eles mostravam que dados e tecnologia só fazem sentido quando dialogam com a realidade de quem está na ponta. Dessa aproximação nasceu nossa parceria.
Com a ImpulsoGov, criamos no podcast o quadro “O SUS que você não vê”, dando visibilidade a trajetórias muitas vezes invisibilizadas
Uma das mais marcantes foi a de Lidiane Rosa, coordenadora da Rede de Atenção Psicossocial de Aracaju. A capital sergipana participa do programa de capacitação em saúde mental na Atenção Primária promovido pela ImpulsoGov.
Nesse programa, profissionais como enfermeiras e agentes comunitários de saúde são treinados para oferecer atendimentos para pessoas com sintomas depressivos leves a moderados, seguindo a abordagem psicossocial breve recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Lembro de uma frase dela: “Para cuidar da saúde mental é preciso ter tempo e amor para escutar”. Essa frase se tornou uma síntese daquilo em que acredito: a escuta é a base de qualquer sistema humano de saúde.
A cada episódio do podcast, colecionamos vozes potentes. Conversamos com médicas que reinventaram escalas para evitar burnout; com agentes comunitários que atravessavam bairros sem equipamentos de proteção; com psicólogos que lidavam com desafios relacionados à saúde mental de pacientes.
Uma entrevista que nunca esqueci foi com a Dra. Myrian Krexu, primeira cirurgiã cardiovascular indígena do Brasil. Ela nos mostrou como manter a floresta viva é também uma questão de saúde pública
Dessas escutas nasceram nossos relatórios. O primeiro, sobre queimadas e mudanças climáticas, conectou saberes tradicionais à saúde coletiva. O próximo a ser lançado, “Sob Pressão”, reúne dados e recomendações para mostrar que cuidar do bem-estar de quem sustenta o SUS é cuidar de todo o sistema.
Hoje somos voluntários de 16 a 21 anos, organizados em times que se apoiam mutuamente. O que nos une é o sonho em comum de inspirar jovens a acreditarem que têm poder de transformação, valorizar profissionais de saúde e transformar análises em políticas reais.
O maior desafio, porém, foi aprender a liderar. Muitas vezes eu coordenava voluntários mais velhos que eu, e isso me deixava insegura. Com o tempo, percebi que liderar não significa ter todas as respostas, mas criar espaço para que cada pessoa contribua
Foi assim que o Juventude pelo SUS deixou de ser apenas minha ideia e se transformou em um projeto coletivo.
Já temos um projeto de lei em tramitação inspirado no nosso primeiro relatório. Mas o que queremos vai além de Brasília. Queremos ver nossas propostas aplicadas nas Unidades Básicas de Saúde, nos hospitais, em cada espaço onde o SUS acontece.
O Juventude pelo SUS nasceu do silêncio das minhas tias e do medo nos corredores da minha escola. Hoje, o que me move é garantir que esses silêncios não sejam esquecidos, mas transformados em ferramentas de mudança
Minha ambição é dedicar a vida à saúde pública, estudar sistemas, pensar soluções para o Brasil e para a América Latina. Se aprendi algo até aqui é que a escuta tem força de política. Escutar pode ser o primeiro passo para transformar dor em legado — e juventude em futuro.
Fundadora do Juventude pelo SUS, Ana Beatriz Araújo é estudante do Colégio Dom Pedro II, escola pública no Distrito Federal, e atua como pesquisadora e liderança jovem nas áreas de saúde pública, neurociência e políticas educacionais. É bolsista de iniciação científica do CNPQ na Universidade de Brasília, onde investiga os impactos da pandemia na saúde mental de profissionais do SUS.
Criada em um ambiente muito precário, Cíntia Santana aprendeu a capacidade de sonhar ao se tornar atriz. Ela conta como fundou o instituto Entre o Céu e a Favela para ensinar teatro e despertar a autoestima a crianças do Morro da Providência, no Rio.
A cada seis brasileiros, um já pensou em se matar. Neste Setembro Amarelo, João Lovise, head de criação da F/Malta, fala sobre a campanha #UmEmCadaSeis, que engaja artistas e celebridades pela causa da prevenção ao suicídio.
Juliana Camargo acolhia animais por conta própria, mas entendeu a necessidade de profissionalizar esse cuidado. Assim nasceu o Instituto Ampara Animal, que viabiliza o manejo ético de cães e gatos e projetos de proteção à fauna nativa.