Nasci na Central do Brasil, em uma “cabeça de porco”. Eu, minha mãe e mais dois irmãos vivíamos dividindo o banheiro com no mínimo umas 200 pessoas, o tanque de lavar louças e roupas também.
Porém, isso eram as coisas artificiais que compartilhávamos; as que iam deixar marcas em nós ainda não conseguimos identificar.
A pobreza, o abandono social, os abusos, a violência em formas infinitas nos garantiam um futuro nada promissor; se chegássemos vivos aos 18 anos seria milagre.
Tenho lembranças fortes da minha mãe sendo levada amarrada por conta da esquizofrenia. Me lembro dela voltando e indo trabalhar como se nada tivesse acontecido
Ali morei até os 7 anos, tempo suficiente para carregar em mim um desejo de sempre estar rodeada de pessoas (a terapia ajudou a melhorar muito isso).
Pensava que éramos uma grande família; criança não sabe identificar a miséria para desviar do mal que ela pode causar na sua alma.
Passei uma época querendo ser médica para curar minha mãe.
Na adolescência, entre os 14 e 16 anos, já tinha vendido coisas na rua e sempre inventava algo para arrumar dinheiro.
A partir dos 16, trabalhei em todas as redes de fast-food no RJ e, em uma delas, consegui, em menos de um mês de trabalho, virar tipo uma recepcionista divertida (divertida porque eu ficava fantasiada), e tudo que me livrasse da sala de lixo, do caos da fritadeira, valia a pena
A evolução foi a mudança para o telemarketing. Nessa época, chegava a trabalhar 12 horas por dia. Eu e minha mãe morávamos sozinhas e eu precisava ajudá-la a pagar as contas.
Esse caminho me preparava para algo extraordinário que eu jamais imaginaria!
O teatro me salvou com 19 anos. Conheci o grupo de teatro Tá Na Rua e, por oito anos, reencontrei minha autoestima, meus direitos e aprendi sobre o que era política. E assim passei a entender como funcionava a desigualdade social.
Nos primeiros dois anos de grupo, descobri um mundo que nunca tinha visto. Andei pela primeira vez de avião, pela primeira vez me hospedei em um hotel. A experiência de ver toda aquela comida logo de manhã e poder comer tudo foi quase que indescritível, considerando que eu voltava para casa, onde ainda sofríamos de limitações alimentares
O ódio tomou conta de mim, enquanto eu vivia dois mundos distintos.
Nesse período de oito anos eu só fazia teatro. Abandonei o telemarketing e comecei a trabalhar em serviços freelancer.
Nos últimos quatro anos de grupo, comecei a ganhar dinheiro com o teatro. Nesse período também consegui entrar na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena para aprender mais sobre teoria e prática do teatro de palco.
Eu era uma ótima atriz, porque essa era minha única saída: ser muito boa, para continuar.
O teatro organizou meu ódio. Iniciei a transição capilar para voltar a usar meu cabelo crespo. Andava na rua com a cabeça erguida; a vergonha de morar em uma favela e ser pobre foi substituída pelo orgulho e pelo desejo de lutar para que um dia a pobreza não fizesse mais morada em um lugar tão potente e ancestral como a Favela é
A luta ainda na emoção me trouxe o desejo de oferecer aulas de teatro para as crianças no Morro da Providência, primeira favela do Brasil, na região portuária do Rio de Janeiro, onde fui morar com a minha mãe aos 15 anos — a mesma favela em que ela morou antes de eu nascer, quando chegou ao Rio de Janeiro
Aliás, minha mãe mora até hoje nessa mesma casa, que nos salvou de morar na rua. Ah, e lembram da cabeça de porco? Era ali na beiradinha da favela.
Eu chegava na quadra, abria uma trouxa cheia de fantasias e as crianças viam. Porém, o teatro não era suficiente para o tamanho do problema… A Favela é um local completamente abandonado pelo poder público, com crueldade, principalmente em operação policial.
Motivada pelas necessidades, iniciei um curso para aprender a escrever e fazer projetos. No final da formação, ganhei 10 mil reais e assim nasceu o Entre o Céu e a Favela, como um informativo cultural, mas logo foi tomando proporções inimagináveis.
Eu nunca sonhei em ser fundadora de nada; eu só não queria desistir de mim e das crianças.
Tenho 39 anos, faço terapia desde os 28. Lidero o Entre o Céu e a Favela desde os 25 — e, desde os 19, descobri que podia sonhar.
Todo dia pulo de um penhasco sem rede de apoio. Erro infinitamente mais vezes do que acerto. Frustrações e alegrias andam lado a lado no passar das horas. Tenho tanto medo, mas sou feita de coragem
Em 13 anos já realizamos mais de 50 mil atendimentos. Hoje atendemos 500 famílias. Em 2024 formamos 650 pessoas em qualificação profissional para gerar renda. Garantimos para 200 crianças acesso à cultura, ao esporte e à educação com as nossas atividades semanais.
Já realizamos obras de urbanismo social na Favela em pontos estratégicos e abandonados pelas políticas públicas. Temos um grupo de teatro infantil, o Bando Teatro Favela, que já se apresentou para mais de mil pessoas.
Hoje temos 36 pessoas trabalhando para que isso tudo aconteça em três sedes: duas dentro do Morro da Providência e uma na lateral da Favela.
Eu já fui a Miami contar a minha história; já fui a Medellín estudar sobre os avanços na igualdade social; a Paris para pensar soluções para nosso país. Fiz também um intercâmbio para a África do Sul.
Durante oito anos, trabalhei com recursos financeiros escassos. Geralmente é assim com ONGs, principalmente de Favelas, que carregam os preconceitos que todo favelado carrega. E que sempre começa querendo fazer algo, mas que também sofre da falta de algo.
É como Emicida diz na música “Levanta e Anda”: “Só água na geladeira e eu querendo salvar o mundo”.
Porém, na Favela, muitas coisas que temos surgiram da falta: quando você precisa lidar com ela, o que te sobra é sua capacidade humana de ser criativo, resiliente e forte diante dos desafios desumanos que a miséria impõe
Em 2019, lembro como se fosse hoje, em uma noite, fui até o quintal, de onde hoje é a nossa primeira sede; na época, eu morava lá, essa era a única maneira de manter o trabalho. Sentei no quintal, chorei e pedi ao universo que, se fosse para dar certo, que ele me desse um sinal até o final do ano.
Não sou uma pessoa religiosa, mas minha espiritualidade é forte e firme como uma rocha. Dois meses depois consegui entrar para uma rede de ONGs (a Gerando Falcões), garanti um contrato de quatro anos com um recurso mensal, fiz uma universidade para líderes sociais chamada Falcons University, aprendi coisas novas e dei nome às coisas que eu já sabia.
No final do mesmo ano, consegui captar 300 mil reais via lei de incentivo. E, nos últimos cinco anos, o Entre o Céu e a Favela cresceu em estrutura, gestão, impacto e capacidade de atendimento aos nossos sócios (assim chamamos as pessoas que atendemos)
Com toda a autoestima conquistada, posso dizer que estávamos preparados para voar mais alto, porém precisávamos de recursos financeiros. Porque uma ONG é uma empresa e, como toda empresa, precisa de investimentos.
Eu sei o que vim fazer no mundo, e fui moldada no fogo e na dor.
Lidero uma ONG que passou por todas as fases. Lidero sem nunca ter pensado nisso, e o ato de liderar é de uma solidão indescritível em palavras; isso chega a ser cruel muitas vezes.
Eu fiz na necessidade, no susto, na dor. Já fui descredibilizada por ser mulher, por não ter faculdade, por falar errado, por ser da favela, por ser negra. Mas quando vejo onde estou e tudo que fiz, essas vozes somem no barulho que faço para manter o que acredito de pé. Foi assim que cheguei a lugares que eu nem sabia que existiam
Percebo que cada dia que eu vivo é a realização de um sonho. Tenho muitos sonhos e um desejo profundo de que o mundo seja diferente do que é hoje. Que a favela tenha seus direitos atendidos. Crianças com acesso à segurança alimentar, à moradia digna, ao direito de sonhar e realizar. E de serem o que quiserem ser.
E se você chegou até aqui e acredita que podemos transformar o mundo, vem comigo, porque juntos chegamos mais longe, sempre!
Cíntia Santana, 39, é empreendedora social, atriz e favelada. É formada em Artes Cênicas pela Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e licencianda em artes cênicas pela UNiRio. Intelectual orgânica, é idealizadora e fundadora do Instituto Entre o Céu e a Favela, no Morro da Providência, no Rio de Janeiro.
Juliana Camargo acolhia animais por conta própria, mas entendeu a necessidade de profissionalizar esse cuidado. Assim nasceu o Instituto Ampara Animal, que viabiliza o manejo ético de cães e gatos e projetos de proteção à fauna nativa.
Na pandemia, o engenheiro Raphael Koyama deixou a carreira e o sonho de empreender com impacto social para ajudar a salvar o restaurante dos pais. Ele conta como pivotou o negócio para o delivery – e o que aprendeu sobre trabalhar em família.
Fernando Goldsztein conta como fundou uma organização para financiar ensaios clínicos depois que o filho foi diagnosticado com um tumor no cérebro – e por que é urgente discutir o “vazio” na pesquisa científica do meduloblastoma pediátrico.