Essa virada de ano marca um descasamento muito esquisito entre a realidade econômica e o sentimento a respeito dela no mercado financeiro – que, claro, influencia com seus atos e projeções muitos outros setores da economia.
Em nossa história, de modo geral, a esperança sempre foi mais pujante que os indicadores econômicos. Nossa capacidade de acreditar tem sido muito mais sólida do que os fatos que a sustentam.
Dessa vez, no entanto, parece que estamos vivendo o contrário: os números são bons; nossa expectativa, cinzenta. As notícias têm polaridade positiva; nosso mau humor continua gigante.
***
A economia cresceu 2,9% em 2023 e estima-se que tenha crescido acima de 3% em 2024. Em 2022 também crescemos 3% e para 2025 a expectativa é de mais crescimento: 2,5%.
Para a China, esses talvez sejam números acanhados. Para o Brasil, são números bem bons. Desde 2021, ano em que, num efeito chicote depois da contração da pandemia, a economia expandiu 4,1%, não paramos mais de crescer. Havia uma década que não conseguíamos crescer quatro anos seguidos
O desemprego caiu para 6,1% no fim de 2024 – a menor taxa da história.
Em 2023, a renda dos trabalhadores brasileiros cresceu 11,7% – a maior alta desde 1995, ano-chave do Plano Real, quando a renda aumentou 12,9%.
Em novembro de 2024, a massa mensal de proventos recebidos pelo número recorde de 109,3 milhões de trabalhadores brasileiros ocupados bateu outro recorde: 332,7 bilhões de reais.
O poder de compra cresceu especialmente entre os mais pobres. E o Brasil voltou a ser considerado um país de classe média, com mais da metade da população pertencendo às classes A, B e C
Em 2023, 8,7 milhões de brasileiros deixaram de ser considerados “pobres”. E a extrema pobreza foi reduzida em 40%.
Isso tudo projeta mais gente consumindo, mais produtos sendo comprados, mais serviços sendo prestados. E, com isso, mais empresas sendo abertas, e ainda mais empregos sendo gerados.
Diante desse círculo virtuoso, como não poderia deixar de ser, o Índice de Confiança dos Empresários (ICE), medido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), fechou 2024 em 97,3 pontos – 2,2 pontos acima de 2023.
E o Índice de Confiança do Consumidor (ICC), também medido pela FGV, fechou 2024 em 92 pontos, um dos maiores níveis da história.
De quebra, conseguimos aprovar, ainda que com as inevitáveis imperfeições, uma reforma tributária que há décadas todo mundo afirmava ser fundamental para o país – e, na mesma medida, um feito quase impossível de ser realizado
Isso tudo para ficar apenas no campo dos grandes números. Há outras melhorias no país em áreas fundamentais como a preservação ambiental, a garantia dos direitos civis, o respeito às instituições.
Enfim, parece que o Brasil voltou a operar no campo da lógica e da racionalidade, e a caminhar na direção de se tornar, mesmo com todas as contradições e tortuosidades que nos assolam, um lugar melhor para as pessoas viverem e trabalharem.
Tudo isso seria motivo de euforia em qualquer outro período da história brasileira. Por que não agora? Por que esse clima de desconfiança na turma que gere o nosso dinheiro, essas caras fechadas, essa convicção de que o barco está afundando?
***
OK, a expectativa atual do mercado é que o IPCA feche em 4,9% em 2024, ficando acima do teto da meta de inflação, que é de 4,5%. (O mercado está projetando 5% para 2025).
OK, os juros estão altos – a taxa Selic está em 12,25%. (O mercado está projetando 15% para 2025.) E dinheiro caro não é bom para a expansão dos negócios.
OK, o déficit fiscal primário do governo central (as receitas menos as despesas do Tesouro Nacional, da Previdência e do Banco Central) foi de 52,3 bilhões de reais em 2024. Só que em 2023 esse o rombo havia sido de 230,5 bilhões – uma redução de 77%!
(Por São Paulo Guedes, padroeiro da Faria Lima – se eu não estiver completamente equivocado nessas contas, temos que canonizar o Haddad!)
OK, se considerarmos o déficit fiscal primário do setor público inteiro (incluindo aí as receitas e as despesas dos governos estaduais), o rombo foi de 192,9 bilhões no acumulado de 2024 até novembro, ou 1,65% do PIB.
OK, o déficit fiscal nominal do setor público (o déficit fiscal primário de todos os governos, acrescido do pagamento dos juros da dívida pública) foi de 1,1 trilhão de reais no acumulado de 2024 até novembro, o equivalente a 9,5% do PIB. Só de juros, nesse período, foram pagos 918,2 bilhões de reais, ou 7,85% do PIB.
OK, a dívida pública brasileira – a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que engloba governo federal, INSS e administrações estaduais e municipais — alcançou 77,7% do PIB, ou 9,1 trilhões de reais, em novembro de 2024.
Tudo isso é verdade. Só que os juros sempre foram altos no Brasil. (E você e eu que aplicamos em renda fixa temos sido beneficiários diretos dessa ineficiência há décadas.)
Domamos a inflação, mas ela quase sempre está digladiando com o teto da meta.
E é claro que equilibrar as contas públicas, e os governos não gastarem mais do que arrecadam, e o Estado achar um jeito de sangrar menos o erário com o seu endividamento, são medidas essenciais.
Mas é preciso lembrar que o poder público, em suas várias instâncias, tem sido um gastão desde sempre. Isso não é obra recente. Não é notícia do dia, nem do mês, nem do ano.
Então, se essas variáveis são na verdade constantes, de onde vêm essas nuvens de chumbo que recobrem o noticiário financeiro? Não poderíamos estar enxergando também uns raios de sol e algumas nesgas azuis nesse céu? Qual o fundamento matemático para esse beiço interminável?
É óbvio que há preocupações relevantes no horizonte. Mas será que elas justificam a bolsa ter caído 10,36% em 2024? Como pode o real ter se desvalorizado 27,34% perante o dólar no ano passado?
Eu olho para os indicadores econômicos e não consigo encontrar essa correspondência. Ao contrário.
Nosso mercado consumidor está mais robusto, nossas empresas continuam crescendo, o Brasil não quebrou.
Então é como se a economia real fosse uma, e a compreensão dela, por quem administra a sua grana e a minha, fosse outra.
***
O mercado está abandonando seu tradicional pragmatismo para fazer, na medida do que lhe é possível, proselitismo político? Estamos em meio a uma guerra ideológica com vista às eleições do ano que vem?
(Nada seria menos capitalista do que ficar com saudade do banqueiro e se colocar contra os fatos. Nada seria menos orientado a resultados do que armar o piquete do ultraliberalismo e ignorar os ventos que estão soprando.)
Será que estamos ainda presos à compreensão do mundo por meio de lentes distorcidas, tisnadas por fake news, boatos e hoaxes difundidos para dominar a narrativa por meio de medos irracionais e fantasmas inexistentes?
Será que só o ódio nos move mesmo, e preferimos perder dinheiro – 10% das nossas economias e do valor das nossas empresas, além de mais de um quarto do valor do nosso dinheiro, em 2024 – a admitir que a ameaça da “esquerda” e do “comunismo” é uma grande balela, a mentira do século?
Será que a Faria Lima está de birra com Brasília – e disposta a queimar uma fatia da minha poupança e da sua nessa queda de braço besta?
Gosto que quem cuida do meu dinheiro seja cético. Mas não cínico. Especialmente em relação ao meu dinheiro.
Adriano Silva, 53, é jornalista e fundador da The Factory e do Projeto Draft. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
Ao mesmo tempo em que abria o leilão de áreas de exploração de petróleo na Amazônia, o governo anunciava o Plano de Transformação Ecológica. Entenda por que o documento é um avanço enorme – e quais são as armadilhas no caminho.
Um clima de pessimismo ronda o mercado. Mesmo assim, o investidor Amure Pinho assegura: há dinheiro (e boas ideias) circulando por aí. O desafio é garantir o match entre as duas pontas para acelerar o ecossistema de inovação.
Homens brancos são 30% da população, mas administram 93% do capital de risco. Itali Collini, diretora da Potencia Ventures, aborda as injustiças do mercado de investimentos e os caminhos para torná-lo menos desigual.