“Um tsunami em curso. Medo. Silêncio. Pensei: ‘Eles vão abandonar essa população à própria sorte’”

Paulo Faria - 7 maio 2020
Pelo megafone, Paulo orienta as pessoas sobre o horário de doação das cestas básicas (foto: Paulo Brazyl).
Paulo Faria - 7 maio 2020
COMPARTILHE

Ao acordar e antes de dormir, olhando pela janela do teatro do Pessoal do Faroeste, onde estou em confinamento, vejo o antigo DOPS, do outro lado do Largo General Osório. 

Aquela construção de tijolos, de 1917, projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo, inicialmente servia para estocar café. A partir do fim da década de 1960, foi usada para torturas e mortes regidas pela ditadura. Hoje, abriga o Memorial da Resistência.

Resistência. Até quando?

O que difere aquele período do que vivemos hoje na região, no mesmo entorno?

Já perdi a noção do tempo. De quando tudo começou. Me mudei para cá há uns 50 dias, para acompanhar as ações da polícia, que desde a gestão municipal de João Doria, e agora na de Bruno Covas, destina à nossa região a mesma política eugenista, gentrificadora, de décadas. 

Foi assim em 30 de dezembro de 1953, na véspera do Quarto Centenário da cidade, quando a Prefeitura de Jânio Quadros e o Governo do Estado expulsaram as prostitutas do Bom Retiro, que vieram pra cá, para os hotéis da Santa Ifigênia.

Ou, mais recentemente, em dezembro de 2012, quando a gestão municipal de Gilberto Kassab expulsou os usuários de crack, que também vieram para cá, para a Rua do Triunfo. Sempre a ação policial em vez de Assistência Social ou de Saúde. 

E isso não parou durante a pandemia. Ao contrário.

Só se agravaram as ações diárias da polícia, que solta bombas na Cracolândia em plena pandemia, afetando todo o bairro e principalmente as famílias que moram nos cortiços, ocupações e favelas do entorno. Nitidamente um genocídio, uma necropolítica

Neste período tão difícil para o mundo, vim para ficar em alerta e denunciar essas ações. E logo na primeira semana de minha quarentena, uma cidade invisível se visibilizou. 

Famílias pobres e a fome. O que era invisível foi criando pontes, excluindo distâncias. Nunca antes tínhamos estabelecido este contato. Fizemos uma Cartografia Afetiva do Quadrilátero do Pecado, em 2014/15, mas essa população não se manifestou na época, não conseguimos entrar em suas moradas. Apenas marcamos os lugares no nosso mapa. E a fome nos aproximou agora.

Nas duas primeiras semanas, a polícia sumiu. Uma sensação de quando o mar está calmo — parece que algum monstro vai surgir. Um tsunami em curso. Medo. Silêncio de moscas. E pensei: claro, eles vão abandonar essa população à própria sorte

Logo a polícia voltou, mais forte e violenta. Tenho visto mais usuários de crack usando máscaras, e se protegendo (como se fossem o Zorro), do que a própria polícia. O mesmo vale para a população moradora das habitações precárias, que tem saído de suas casas atrás de alimento 

Já coleciono histórias tão sofridas… É muito triste ver mulheres grávidas, puxando filhos em carrinho, atrás de comida. Ou idosas abandonadas num quarto de um Abajur Lilás, ou de uma Navalha na Carne. Todo o submundo invisível que sucessivos governos têm enfiado em covas rasas.

Tenho presenciado a polícia proibir distribuição de alimentos, arrancar cartazes que informam aos moradores de rua e usuários de crack sobre quais medidas adotar para não se infectarem. Sobre como ficar na rua sem tantos riscos. Porque não vai ter cama ou abrigo para todo mundo, nem ajuda de custo para quem precisa. 

Nesse turbilhão, segue incansável o trabalho do A Craco Resiste e de ativistas que arriscam as próprias vidas para buscar dignidade a quem o Estado abandonou.

O número de famintos é assustador. Criamos aqui no Pessoal do Faroeste a campanha #FomeZeroLuz para erradicar a fome numa das regiões mais ricas da cidade e que mais têm alimento: Santa Ifigênia, 25 de Março, Mercado Municipal, Zona Cerealista, Bom Retiro, “Rua das Noivas” [Rua São Caetano], José Paulino etc. 

É, também, um dos lugares com mais investimentos em cultura: aqui ficam as secretarias estadual e municipal de Cultura, a Sala São Paulo, a Pinacoteca, o Memorial da Resistência, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu de Arte Sacra, o Centro Cultural Banco do Brasil, o SESC Bom Retiro, o Theatro Municipal.

As pessoas pobres que moram nesta região, de alguma forma, sustentam esses espaços, trabalhando na informalidade ou em serviços nesses equipamentos culturais. Como elas podem estar com fome?

A campanha #FomeZeroLuz pretende alimentar, em um ano, 1 500 famílias, aproximadamente 8 mil pessoas [clique aqui para saber como doar]. Cada cesta mensal terá o valor de 160 reais. Em um mês, precisaremos de 240 mil reais mensais e movimentaremos em um ano 5 milhões de reais envolvendo toda a parte administrativa e operacional. 

Esta primeira fase se encerra no dia 10 de maio, e levará cestas básicas para mil famílias e trabalhadoras do sexo do Parque da Luz, em parceria com a ONG Mulheres da Luz.

O Pessoal do Faroeste, além de ser um grupo de teatro e cinematográfico, conta com um Instituto, o Luz do Faroeste, que promove ações sociais na região da Luz. 

A campanha pretende também promover inclusão social dessas famílias, dando acesso a todos os equipamentos públicos existentes, principalmente os culturais. Propomos um programa público civil como proposta de política pública, para combater a fome.

A fome não permite que essas famílias se protejam, em um país hoje tão desumano. A fome mata mais rápido que o novo coronavírus — e é o ‘terreno’ ideal para o vírus se estabelecer

Não sei o que viveremos aqui durante o mês de maio. Essa incerteza se dá por haver no poder um outro inimigo, que não oferece medidas de controle para essa população.

Parece que o antigo DOPS se esparramou, viralizou por todo o entorno. E o inimigo é novamente o Governo. 

Quem vai nos proteger?

 

Paulo Faria é diretor da Cia. Pessoal do Faroeste.

COMPARTILHE

Confira Também: