Transformar em net zero oito fazendas de produção de leite até o final de 2025 está no topo da lista de estratégias da multinacional suíça de alimentos Nestlé para mitigar as emissões de gases de efeito estufa de sua produção no Brasil. É também uma das ações mais disruptivas já adotadas pela companhia: a “receita de bolo” de inovação deve ser aberta para a toda indústria por meio da criação do primeiro protocolo para fazendas carbono zero.
Com o apoio da Embrapa, a ideia é intervir em problemas-chaves da cadeia de produção de leite, que representa 30% das emissões de gás carbônico das operações no país, como sistemas de digestão anaeróbica e captura de metano, compostagem de dejetos, substituição de fertilizantes, uso de suplementos na dieta animal e plantio direto.
No centro dessa e de outras ações, como projetos voltados para o desenvolvimento econômico e sustentável da Amazônia, está o conceito de regeneração, carro-chefe da companhia para cumprir sua meta global de reduzir as emissões em 50% até 2030 e se tornar net zero até 2050. Por meio dele, a multinacional quer ir além de adotar práticas agrícolas que melhorem o solo, sequestrem carbono e restaurem recursos naturais. O foco também está no impacto na comunidade e em alianças estratégicas – como a com a Embrapa.
“O Brasil é um mercado extremamente importante para o Grupo Nestlé e não há país melhor para atuar como pioneiro de inovações em sustentabilidade, dado seu papel na escala global, especialmente pela Amazônia”, afirma Maxence de Royer, VP de estratégia, desenvolvimento de negócios e ESG da Nestlé para a América Latina. “Na Nestlé, eu vejo o Brasil assumindo a liderança e abraçando a estratégia de sustentabilidade que definimos globalmente, ao mesmo tempo em que a foca em sua realidade.”
Em passagem pelo Brasil para visitar as operações nacionais e conhecer de perto iniciativas como as fazendas net zero, o executivo se juntou a Barbara Sapunar, diretora de sustentabilidade, comunicação e branding da Nestlé Brasil para conversar com NetZero. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
NETZERO: Em que momento a Nestlé se encontra em relação às suas metas de sustentabilidade?
MAXENCE DE ROYER: Primeiramente, acho importante colocar os compromissos do grupo em perspectiva. Há alguns anos publicamos nossas metas de sustentabilidade, que envolvem principalmente redução nas emissões de gás carbônico e alterações nas embalagens, e o tema ficou no topo do radar. Mas esse assunto não é novo dentro da companhia.
Sempre soubemos que o impacto que temos nas comunidades é enorme – compramos muita matéria-prima como café, cacau e leite – e lidamos com isso há algum tempo. Por isso, é importante dizer que estamos num momento de aceleração, não no ponto de partida. Por isso que em muitos mercados já estamos bem avançados em sustentabilidade. Em diversos países, todas as fábricas já funcionam com energia renovável e isso não aconteceu de um dia para o outro, mas sim porque já estavam lá antes do compromisso global.
Qual é o papel das Américas nas metas de sustentabilidade da Nestlé?
MAXENCE: Elas têm um papel significativo no roadmap da companhia. Estados Unidos, Brasil, México e Chile estão entre os maiores mercados do grupo Nestlé e têm um papel crítico em nossa jornada de sustentabilidade. Cada país é muito específico, com realidades, oportunidades e desafios específicos, e é por isso que, apesar de termos uma estratégica para o continente, também precisamos lidar com a realidade local. Na América Latina, que é a minha área de atuação, isso começa com operações: se trata de reduzir as pegadas de nossas fábricas, de melhorar nossa cadeia de abastecimento e de atuar nas plantações de café e cacau. Mas não podemos parar aí.
Se em um primeiro momento focamos em operações, agora temos que, além de manter nossas operações sustentáveis, trazer isso também para nossas marcas. É preciso realizar uma transformação de ponta a ponta, que envolve outros pilares, como a eficiência. Muitas de nossas iniciativas em sustentabilidade terão também impacto ao aumentar nossa eficiência.
Pense no que chamamos de “Fit for Purpose Packaging”, que é basicamente reduzir o tamanho das embalagens de acordo com seu conteúdo. Isso é bom para o planeta, mas também funciona bem do ponto de vista de eficiência para a Nestlé. E, no atual contexto de inflação de custos, qualquer eficiência conta – e é também uma maneira de se envolver com o negócio. Um segundo pilar diz respeito a como apoiamos nosso trabalho de advocacia, que pode ser ilustrado pelos investimentos que fazemos em reciclagem e embalagem.
Como a inovação se encaixa nesse contexto?
MAXENCE: A inovação corresponde aos outros dois pilares da transformação. Estou falando tanto de inovação de marca quanto de novos modelos de negócio, ou seja, de como vamos reinventar a forma com que escolhemos nossos produtos e como chegaremos aos nossos consumidores. Quando eu falo em inovação de produto, falo tipicamente de plant-based. Essa é uma grande oportunidade para a Nestlé, que está avançando muito na América Latina por meio de uma estratégia dupla: temos a marca Nature’s Heart, que é “born pure”, e incluímos produtos plant-based em nossas próprias marcas.
Ter todos esses pilares – operações, eficiência, infraestrutura, inovação de marca e novos modelos de negócio – como facilitadores é como transformamos nossas cadeias de valor de ponta a ponta e impulsionamos a sustentabilidade como fonte de vantagem competitiva para nossas marcas. Isso é chave porque é o que diferencia o ponto em que estávamos de onde estamos hoje.
Globalmente, a empresa busca construir um portfólio mais sustentável, com impacto ambiental reduzido. Como a sustentabilidade tem guiado o investimento da empresa em inovação? Tudo o que sai das equipes de pesquisa e desenvolvimento já olha para isso?
MAXENCE: A resposta é simples e é sim. Essa foi provavelmente uma grande mudança de como estávamos em nosso ponto de partida e como estamos hoje em aceleração, nesta segunda fase. Agora, sempre que lançamos um novo produto, acessamos sistematicamente não apenas sua propriedade nutricional mas também sua pegada de carbono. Usamos receitas que melhorem nossa pegada de carbono. Inclusive, não só a receita, mas também a embalagem. Precisamos ter certeza de que nossas embalagens são o que chamamos de “projetadas para reciclagem” e isso muitas vezes não é fácil, porque requer muita pesquisa e desenvolvimento.
E quanto desse portfólio sustentável de produtos chega ao Brasil?
BARBARA SAPUNAR: Temos um portfólio e um enfoque por categoria alinhados, mas também olhamos para as necessidades nutricionais do Brasil. Por exemplo, recentemente lançamos o Ninho com fibras, que tem um perfil muito melhor em termos de nutrição e, ao mesmo tempo, é muito positivo para o meio ambiente. Precisamos olhar para inovação e sustentabilidade como duas coisas que podem andar juntas e trazer um impacto positivo para os consumidores também por meio da nutrição. É claro que nos inspiramos em outras unidades de negócio, nos centros, como chamamos, mas sempre olhamos para o que o Brasil procura em termos de perfis e necessidades nutricionais e tentamos entender seus desafios intrinsecamente. São essas questões que lideram nossos programas de inovação. Também temos uma visão mais ampla de como nossos produtos podem impactar as comunidades que nos ajudam a produzi-los, vendê-los e assim por diante. Não podemos separar o S do E e do G.
No Brasil, o conceito de regeneração da Nestlé envolve cumprir até 2025 as seguintes metas: 30% de agricultura regenerativa, reciclagem de 100% do plástico e conservação de 300 mil hectares da Amazônia. Por que a Nestlé definiu esses compromissos como prioritários e como estão os resultados hoje?
MAXENCE: O Brasil é um mercado extremamente importante, não apenas para a América Latina como também para o Grupo Nestlé como um todo.
Não há país melhor que o Brasil para atuar como pioneiro em inovações de sustentabilidade dado o papel que o país tem na escala global e o papel da Amazônia. Então, monitoramos bem de perto tudo que está acontecendo no Brasil e colocamos isso no topo de nossa agenda de sustentabilidade. Esse é o papel do Brasil.
O que me deixou muito satisfeito depois desta visita foi ver o nível de engajamento da equipe brasileira com o tema. A estratégia que eu mencionei anteriormente é realidade aqui. Vemos os líderes incentivarem seus próprios KPIs de sustentabilidade, não apenas financeiros. O Brasil está assumindo a liderança e abraçando a estratégia de sustentabilidade que definimos e trazendo para sua realidade. O Brasil está em uma posição muito boa para abraçar o desafio de tornar as fazendas de leite net zero e também avançar com projetos muito concretos.
BARBARA: Os compromissos locais não foram inventados por nós no Brasil. Eles aceleram os esforços globais que a empresa tornou públicos há três anos como parte de nosso roteiro para o compromisso net zero. Em agricultura regenerativa, eu diria que o primeiro passo dado foi ter a clareza para saber onde precisávamos focar nossos principais esforços. E é claro que nossa principal pegada vem de nossos ingredientes, principalmente dos derivados do leite. Junto com cacau e café, eles precisam ser de alguma forma transformados pela inovação para cultivar a agricultura regenerativa.
Como o Maxence disse, aqui a inovação tem um papel fundamental. Somos o maior comprador de leite do país, o maior comprador de café sustentável – inclusive, 100% do nosso café já é sustentável – e, no caso do cacau, nosso desafio é um pouco maior, apesar de já termos nossa marca principal, Kitkat, produzida com cacau 100% sustentável.
Em termos de circularidade, aceleramos o compromisso global e afirmamos que vamos reciclar o equivalente a 100% do material que colocamos no mercado. Para isso, contamos com colaborações porque estamos nessa jornada há tempo suficiente para entender que precisamos de parceiros para trazer o conhecimento para dentro da empresa. Um deles é o Instituto Recicleiros, que nos ajudou a entender como contribuir para levar infraestrutura para cidades que estão dispostas a transformar sua estrutura de reciclagem e, ao mesmo tempo, reeducar a população para aproveitar ao máximo essa infraestrutura.
Também fazemos parte da aliança Reciclar pelo Brasil, movimento pré-competitivo para pressionar discussões sobre infraestrutura e sobre como impulsionar a inovação no setor. Por último, mas não menos importante, está a comunicação. No Brasil, temos sido muito ativos em usar o poder de nossas marcas para educar os consumidores sobre como eles podem contribuir para nosso compromisso de circularidade.
Como parte da meta global de tornar a produção do leite net zero, a Nestlé Brasil iniciou recentemente um plano de ação com oito fazendas-piloto para descarbonizar sua produção até o final de 2025. Como funciona esse projeto?
BARBARA: Eu diria que essa é uma das principais inspirações na transformação da cadeia que fizemos. Estamos trabalhando com a Embrapa, que é nossa aliada há uma década, para criar o primeiro protocolo para fazendas carbono zero.
Esse progresso será muito importante não apenas para nós, mas para a indústria, porque pretendemos ter essa inovação aberta a todos. É só pela cooperação que transformaremos a forma de produzir e isso vai resultar em uma espécie de “receita de bolo” de como produzir leite com pegada zero. Isso será muito disruptivo para nós.
MAXENCE: Gostaria de retomar dois tópicos mencionados pela Barbara de uma perspectiva de América Latina. O primeiro é sobre derivados do leite. Trabalhamos com mais de 28 mil produtores de leite na América Latina, de quem compramos e com quem temos relacionamento direto. Com esse número, imagine o impacto que podemos ter na região se os apoiarmos na transição de suas atividades para práticas de agricultura regenerativa. Nós estamos muito comprometidos com isso.
Em vários mercados, trabalhamos lado a lado com esses agricultores para liderá-los e fornecer assistência técnica. Mas também somos criativos e inovamos com eles para que isso aconteça, por exemplo, em financiamento. Podemos fornecer incentivos específicos para que eles entrem na agricultura regenerativa. Inovação muitas vezes tem a ver com como melhorar a operação e a configuração atuais. Temos uma pegada grande em derivados do leite e queremos tratar disso com nossos agricultores.
O segundo tópico diz respeito às nossas embalagens: 97% delas são o que chamamos de recicláveis no Brasil. Em alguns mercados da América Latina, como Colômbia, Equador, México e Costa Rica, já somos neutros em plásticos, ou seja, coletamos a mesma quantidade que colocamos no mercado. Mas isso não basta. Precisamos saber se essas embalagens são, de fato, recicladas e isso vem com infraestrutura de apoio. Um exemplo é a aliança regional que temos com a Latitud R. Junto com a comunidade, pressionamos por esquemas de reciclagem em nível local, regional e estadual. Em paralelo, também estamos criando com eles um programa de aceleração, por meio de apoio com financiamento a startups que atuem na economia circular. Fazemos advocacy há muito tempo, mas agora fortalecemos isso com inovação.
Cada vez mais grandes investidores pressionam a indústria por mais compromisso com metas nutricionais. A Nestlé vê a saúde dos consumidores como um risco ao negócio? Como lida com essa questão no longo prazo?
BARBARA: Na verdade, eu acho ótimo que essa questão esteja sendo levantada porque nós estamos em uma ótima posição para competir nessa agenda. A Nestlé se considera uma empresa de nutrição, saúde e bem-estar e é isso que nos inspira. Estamos analisando nosso portfólio e entendendo como podemos contribuir mais para a nutrição. Primeiro, para entender as necessidades nutricionais de cada país e depois para entender as tendências. Por exemplo, foi olhando para tendências de fora que lançamos nossa marca “born pure” Nature’s Heart, para impulsionar e acelerar todas as misturas à base de plantas que temos aqui no Brasil.
MAXENCE: Eu não poderia concordar mais. Se você pensar de forma muito simples, nossa estratégia é baseada em três pontos: oferecer produtos melhores para você, melhores para o planeta e melhores para a sociedade. Assim como acontece com o tema sustentabilidade, nutrição não é algo que lançamos agora, por pressão de investidores. Temos trabalhado nisso há muitos e muitos anos. Isso está profundamente enraizado em muitas de nossas categorias. Pense em Ninho no Brasil, em fortificação nas nossas marcas culinárias. Esse é um tema que consideramos há muitos anos.
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