“Não me especializei, não tinha Plano B nem networking. Não me orgulho disso. Mas também não me arrependo”

Cristine Gentil - 15 set 2017Jornalista, Cristine Gentil se despediu de seu primeiro e único emprego sem ter um plano B. Além de garantir uma nova renda, precisava encontrar numa nova identidade (foto: Luís Tajes).
Jornalista, Cristine Gentil se despediu de seu primeiro e único emprego sem ter um plano B. Além de garantir uma nova renda, precisava encontrar numa nova identidade (foto: Luís Tajes).
Cristine Gentil - 15 set 2017
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por Cristine Gentil

No dia 3 de abril de 2017, disse adeus ao meu emprego de 22 anos. Deixei o crachá, a carteira assinada, a segurança que julgava ter. Não foi só isso. Deixei ali a parte de mim que mais conhecia, o trabalho que me sustentava e aos meus filhos, o talento que me atribuíam, a casa que me acolheu recém-formada, cheia de medos e inseguranças. Deixei o lugar onde andei sem sapatos, onde virei madrugadas degravando entrevistas e escrevendo reportagens, onde abri exames de gravidez, onde fiz amigos. Sei também que deixei saudades. Tanto quanto levei.

Por pelo menos um ano, pensei que este dia chegaria. O difícil era saber quando e como. Trabalhava como editora no jornal Correio Braziliense, na capital da República. Cuidava de uma revista semanal e da editoria de Cidades e participava da escala de plantão da primeira página. Por muito tempo, amei o que fazia e de nada sentia falta. Como em todo jornal impresso, a redação passou a amargar os efeitos de uma crise econômica e as dificuldades inerentes a uma época em que o digital se impõe com uma força absurda, mas não paga as contas de uma grande estrutura.

Como encontrar forças para vencer uma montanha por dia se o fôlego só era suficiente para caminhar na planície?

Aos poucos, não era mais passeio: o dia a dia era uma corrida insana, que colocava à prova o meu amor pelo jornalismo. O apreço pela notícia já não valia como poderoso energético. Era preciso mudar e também abrir espaço para a empresa se reinventar. Eu me tornara uma profissional cara. Mais caro, no entanto, era o tamanho do meu sacrifício. Ir ou ficar já não era uma questão de escolha, mas de tempo.

Não estava sozinha. Meu marido, Luís Tajes, então editor de fotografia e vídeo do mesmo jornal, compartilhava a angústia e o desejo por uma nova vida. Saímos juntos, incluídos numa lista de demissão. Éramos, então, dois desempregados, com uma despesa tamanho família (ele tem dois filhos; eu, três – apenas uma é independente financeiramente), prestações de apartamento e o tempo contado para garantir uma nova renda. Na verdade, é o que ainda somos.

Desde então, passaram-se cinco meses de um período sabático sem viagens ao exterior, nem cursos de aperfeiçoamento, nem consultoria para recolocação no mercado de trabalho

Houve, sim, uma profunda imersão para tentar viver com dignidade um processo que alterna altos e baixos, coragem e desânimo, sensação de extrema liberdade com a de confinamento em si mesmo. Digo que fiz uma viagem alma adentro para acordar vontades, cutucar ideias natimortas e varrer o velho. Quem sabe, assim, poderia despertar a profissional que gostaria de ser.

Saí sem saber para onde ir, nem o que fazer. Só tinha a certeza do que não queria mais. Era suficiente para tomar uma decisão de ruptura, mas não vinha com a placa indicativa de um novo caminho. Não me enxergava em outra redação, não pensava em trabalhar como assessora de imprensa, nem iniciar uma carreira no jornalismo online. Durante duas décadas, mergulhei de corpo e alma no que fazia, no meu único emprego. Não me especializei, não estudei, não participei de projetos paralelos, não fiz networking. E não me orgulho disso, mas também não me arrependo.

Nos primeiros dias sem emprego, chorei muito e respondi a uma infinidade de mensagens carinhosas que me devolveram a autoconfiança. Sempre tive dúvidas se tinha talento para gerir pessoas. Mas, ao deixar o emprego, ganhei mais essa certeza. No mais, tudo foi e tem sido uma descoberta.

Descobri, por exemplo, que meu guarda-roupa já não combinava com minha nova rotina. Que tinha saltos e maquiagens demais

Que meu espelho fazia perguntas e tentava capturar uma alma ainda desconhecida. Que a falta de emprego não tira apenas seu salário e sua segurança – rouba sua identidade, algo que você não acha no mercado mais próximo.

Descobri também que morava em mim um sentimento de urgência, um desejo por espaço e organização, uma vontade represada de se livrar de tudo o que era demais. Comecei por dar cabo dos 7 mil -mails da minha caixa de entrada. Nessa faxina cibernética, encontrei muitos links interessantes.

Paralelamente, me afeiçoei a um mundo de novas possibilidades, para ser degustado devagar: os livros, os filmes, as músicas, as caminhadas ao acordar, as noites que passei a ver chegar, o tempo livre para ser administrado como se quer. Essa foi a autoajuda que escolhi para mim. Também me reconciliei com as palavras, criando uma rotina para escrever.

Enquanto resolvíamos toda a burocracia (homologação da rescisão, seguro desemprego, plano de saúde, transferência de linha telefônica), fazíamos contas. Com a indenização, amortizamos parte da dívida do apartamento, reservamos algum dinheiro para investir em um novo projeto e, o resto, para forrar o colchão da sobrevivência.

Meu marido já flertava com o empreendedorismo faz tempo. Sabia que, aos 55 anos, o mercado da fotografia já não lhe abriria portas. Tinha um plano vago em mente: montar um food truck e testar suas habilidades culinárias, algo que já era um hobby. Eu nunca tive vocação para o comércio, não tinha problema em ter patrão, gostava de estudar. Por que não um concurso público? Quanto mais pensava nisso, mais golpeava dentro de mim a energia da mudança.

Eu buscava sentido, não um contracheque. Aos poucos, a tentadora ideia da estabilidade foi caindo de patamar na minha pequena lista de prioridades

Mergulhei na internet. Estudei o mercado de aplicativos, startups de jornalismo, fiz cursinhos básicos de fact-checking e de design thinking (ok, confesso, fiz de maquiagem também), li sobre disrupção, experiências fantásticas de inovação a partir de ideias simples. E cadê, cadê minha ideia simples que poderia mudar o mercado e a minha vida? De todos os projetos que tinha mente, nenhum vingou, nada parecia ter estofo suficiente para garantir renda. Não podia me dar ao luxo de ficar um ou dois anos sem ter retorno financeiro.

Esperei os telefonemas, afinal muitos me disseram que viriam às pencas quando soubessem que eu estava disponível. Esperei retornos de contatos por e-mail, poucos voltaram. Esperei ansiosamente a resposta pela única vaga à qual concorri, indicada por uma amiga. Veio logo: tinha experiência demais para o cargo. O LinkedIn continua me mandando ofertas e mais ofertas de estágios, deixando claro que meu currículo minguado não é páreo para a concorrência da rede. Acho graça.

Sair do emprego aos 45 anos sem ter um plano B pode ser uma atitude de coragem ou um rompante de loucura. De qualquer forma, é preciso ter humildade para enfrentar um mercado que vai te receber ou como uma novata, tentando algo que nunca fez, ou como uma profissional superexperiente, que ninguém pode ou deseja pagar. Passei a morar neste limbo. Não me desesperei, no entanto.

Fiquei perto da família, busquei histórias de pessoas que mudaram radicalmente de vida, abordei estranhos virtualmente, viajei para conhecer um casal que largou tudo e montou uma pousada, me hospedei com eles para sentir que era possível ser feliz em algo que nunca se fez, mesmo com medo, insegurança e angústia. A paz deles apaziguou meu coração. O meu, não; o nosso. Em tudo isso, tinha a companhia do meu parceiro sem crachá.

A esta altura, eu já havia decidido infiltrar minhas melhores intenções no projeto do meu marido. Sempre trabalhamos juntos, nos acostumamos assim. Seria também uma empreendedora, com o conforto de não estar só. Decidimos unir uma experiência gastronômica com a possibilidade de ouvir e contar histórias. Nosso projeto chama-se “Se essa rua fosse minha”. Inclui um food truck e um site de jornalismo focado no empreendedorismo de rua. Chamamos o conceito de Food Truck & News.

Consumiu boa parte de nossas economias, horas de sono e tem nos levado a picos de ansiedade. O cronograma atrasou e provavelmente nosso carro ganhará as ruas no período chuvoso, o que contraria todas as previsões de sucesso. Mas sigo pegando carona no otimismo do meu marido. Não só dele. Na verdade, de todas as pessoas que tenho conhecido e entrevistado e que, invariavelmente, atravessam momentos de crise e depois se lembram deles com aparente leveza e risadas.

O desemprego me ensinou muitas coisas. Existe prazer em não desperdiçar, em consumir com mais consciência, em buscar um novo caminho, apesar de toda a ansiedade que acompanha essa nova jornada

Com ele, consegui me reconectar ao que considero minha forma de expressão no mundo: a escrita. Tenho contado a minha experiência no blog Não basta abrir a janela – do jornalismo ao empreendedorismo.

Daqui a pouco, estarei dentro de um food truck servindo pão com linguiça e escrevendo histórias de pessoas como eu, que desafiam a rua e os próprios medos para tentar alternativas à carteira assinada. Se vou gostar ou se vai durar, o tempo vai dizer. Eu vou fazer minha parte.

 

 

Cristine Gentil, 45, é jornalista. Trabalhou 22 anos no jornal Correio Braziliense, 12 deles como editora. Atualmente é free lancer, blogueira e se prepara para encarar o comércio de rua a bordo de um food truck.

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