Neide Santos, 54: os pés e o coração por trás do projeto Vida Corrida

Aline Vieira - 24 dez 2014Neide, do Vida Corrida: em 15 anos, o projeto já colocou mais de 360 corredores nos circuitos de rua de São Paulo.
Neide, do Vida Corrida: em 15 anos, o projeto já colocou mais de 360 corredores nos circuitos de rua de São Paulo.
Aline Vieira - 24 dez 2014
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“Eu me pego pensando para quanta gente nesta vida eu já olhei, mas nada enxerguei”, escreveu o autor americano John Steinbeck em O Inverno da Nossa Desesperança. Marineide dos Santos Silva, 54, a fundadora do projeto Vida Corrida, definitivamente não é uma dessas pessoas a quem se olha e nada vê. Mais conhecida como Neide Santos, ela viveu uma vida cheia de “baixos”, mas prefere esquecer a maioria deles e focar apenas nos “altos”. E eles são quase que incontáveis desde que ela criou, em 1999, o projeto que usa o esporte como uma ferramenta potente pela “mudança social com os pés e o coração”.

Desde então, o Vida Corrida já associou às corridas de rua pelo menos 360 atletas do Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo que já foi um dos mais violentos do Brasil. “Eu tinha tudo para sair matando e roubando, mas sempre acreditei que um dia poderia ser feliz. E encontrei a minha felicidade. Minha felicidade são as minhas crianças do projeto”, afirma Neide.

Nascida em Porto Seguro (BA), ela sempre gostou de nadar, jogar futebol e correr. Vivia bem perto de uma aldeia e o contato com os índios era constante. “A gente brincava o tempo todo com os índios na areia da praia. Na época, a gente era muito humilde, não tinha TV. Fazíamos bolas com folhas de bananeira. Minhas brincadeiras foram todas à beira-mar e tenho certeza que foi ali que eu comecei a minha vida de atleta. A gente estava sempre em movimento”, conta.

A montanha russa na vida de Neide começou aos 6 anos, quando a mãe a entregou para a adoção. A família tinha poucas condições de cuidar da garotinha e dos outros dois irmãos e, por isso, precisou de ajuda. Os pais adotivos a trouxeram para São Paulo, mas a “repassaram” para outras duas famílias entre os seus 6 e 16 anos, como ela conta:

“Adoção naquela época era mais no boca a boca. Nordestino falava: ‘vou criar seu filho como se fosse meu’, mas a realidade é que eles não tinham dinheiro para pagar empregada, então pegavam o filho dos outros para lavar, passar e fazer outras coisas”

“Comigo não foi diferente. Foi muito traumático. Sofri todos os abusos que uma criança pode sofrer. Não gosto nem de lembrar”, diz. Aos 14, Neide trabalhou em uma alfaiataria para ajudar os pais adotivos. Na escola, sua aula favorita era a de Educação Física, pois era o único momento em que podia ter contato com outras crianças e se exercitar. Nesta idade, descobriu a corrida. Ela nunca mais esqueceria o sentimento de liberdade que experimentou ao correr “o mais rápido que podia”.

“Um dia fui a um campeonato numa pista na Zona Sul. Fui para jogar handebol, mas uma menina do revezamento faltou e o professor pediu para eu substituí-la. Ele disse: ‘não dá para te explicar muita coisa agora porque está em cima da hora, mas ela vai te entregar um pauzinho pelas costas, você tem que pegá-lo e sair correndo. Corre o máximo que você puder’”. E Neide correu. Ao final, impressionou a todos: tinha sido o melhor tempo da competição e naquele dia até medalha ganhou. “Me encantei com isso. É o que gosto de fazer”, repetia, feliz. Continuou treinando.

Neide à frente de um grupo de crianças atendidas pelo projeto, que hoje tem patrocínio de Nike e Gatorade.

Neide puxando um pelotão de corredores-mirins atendidos pelo projeto, que hoje tem patrocínio de Nike e Gatorade.

Dos 14 aos 16, além do esporte, Neide também se apoiou na esperança de reencontrar a mãe biológica e os irmãos. “Eu sonhava que um dia seria feliz. Pensava que não poderia acontecer tanta coisa ruim com uma só pessoa. Eu acreditava muito em ter minha família por perto e encontrar meus irmãos. Idealizava a família perfeita, com um lugar bom para morar”, conta.

Mas o reencontro com a família biológica foi bem diferente do sonho. A mãe biológica já tinha mais três filhos quando se mudou para São Paulo. “Fomos morar em um cortiço no Capão Redondo, junto com outras oito famílias. Só tinha um banheiro, só um tanque para lavar roupa”, diz. Nessa época, ela foi convidada para treinar no São Paulo. A oferta era quase um sonho, mas ele teve que recusar, pois não podia parar de trabalhar e tinha que cuidar dos irmãos.

O tempo voou e Neide foi se tornando cada vez mais popular em seu bairro: organizava quermesses, falava com todos e se descobria, aos poucos, uma verdadeira líder. Apesar das dificuldades, essa vida a deixava feliz.

UMA VIDA MARCADA PELA VIOLÊNCIA E SUPERAÇÃO

Aos 18 anos, Neide se casou com o primeiro namorado, com quem um filho. Dois anos depois, mais más notícias. “Meu marido era negro e trabalhava à noite. Um dia, ele vinha do trabalho quando foi abordado pela polícia. Ele foi assassinado. Segundo os policiais, meu marido não obedeceu a voz de comando. Imagina um negro na década de 80. Dizem que meu marido reagiu e por isso atiraram, mas depois a gente viu que ele tinha levado um tiro à queima-roupa”, conta.

Ela criou o primeiro filho com a ajuda da família até que, três anos depois, casou-se novamente, e teve mais um casal de crianças. Com três filhos para cuidar e sem tempo para treinar, Neide fez um esforço para, ao menos, correr como hobby. Acordava de madrugada, corria, voltava para casa, pegava os filhos, os levava na escola e depois ia para o trabalho. Uma verdadeira maratona. Era o começo do esqueleto do Vida Corrida, mesmo que ela não percebesse.

Jonathan Santos, corredor que é uma das apostas do Vida Corrida.

“Anota o nome dele: Jonathan Santos. Ele ainda vai ser medalhista olímpico”, aposta Neide.

Em 98, Neide deu apoio e orientação para que Maria Gonçalves, de 74 anos, começasse a treinar corrida. “Na sua cidade natal, ela trabalhava na lavoura e caminhava quilômetros todos os dias. Eu dizia para ela que ela já era uma atleta bem condicionada. Quando veio para São Paulo, ouviu de muita gente que não podia treinar porque estava velha demais. E eu comecei a treiná-la”. A primeira aluna impulsionou a formação de um grupo inteiro de mulheres da comunidade e, quando Neide se deu conta, já eram 30.

Marcos, filho mais velho de Neide, ao ver aquelas mulheres querendo praticar esporte, fez uma proposta à mãe: “Por que a senhora agora não trabalha com crianças também? Eu ajudo!”, conta Neide, para em seguida, cair em lágrimas. O garoto morreu em setembro de 2000, aos 21 anos, após ser assaltado e assassinado no Capão Redondo.

A morte de Marcos fez o mundo de Neide desmoronar e ela parou o projeto, que ainda não tinha nome, por alguns meses. “Foi muito difícil. Nunca imaginei que seria atropelada pelo percurso natural da vida e ter que enterrar o meu filho.”

Refeita do luto e de volta às ruas, Neide resolveu seguir os desejos do filho falecido e também atender aos pedidos da comunidade do Capão Redondo. Conversou com a chefe para ter o horário reduzido no serviço (como decoradora de festas) e passou a treinar também crianças. O projeto começou a crescer e chamou atenção da comunidade. A cada dia, mais adeptos se agregavam.

O VIDA CORRIDA GANHA FAMA E APOIO DE MARCAS

Em 2009, já presidente da associação de moradores da Cohab Adventista, Neide foi convidada para o Nike Gamechangers, que além de ter uma corrida no Jockey Club de São Paulo, premiaria o melhor projeto social brasileiro de inclusão de meninas. Ela não tinha inscrito o Vida Corrida, mas o pessoal da Nike soube do projeto e pediu para que Neide contasse sua história no meio de um palestra sobre vários outros projetos de mulheres no mundo. Atualmente, 87% dos participantes do Vida Corrida são mulheres e meninas com idade entre 4 e 80 anos, num total de 200 adultos e 160 crianças.

“Quando terminei de contar a história, fizeram de tudo para que eu inscrevesse o Vida Corrida. Quando abri o formulário de inscrição, fiquei assustada com o tanto de palavras que eu nunca tinha ouvido falar. Eu não fiz faculdade, tinha muitas palavras, como empreendedorismo, que eram mirabolantes pra mim”, conta.

Os organizadores do evento pediram que Neide escrevesse do jeito “humilde” dela. E ela o fez. Ganhou. Desbancando projetos gigantes de atletas como Ana Moser, do vôlei, e Magic Paula, do basquete, e levou 5 mil reais que ajudaram sua ONG a se estruturar. Comprou computador, colchonete e tudo o que o Vida Corrida necessitava.

De lá pra cá, conseguiu o patrocínio da Nike, com quem tem contrato até o fim de 2015 e de quem recebe camisetas e tênis, do Instituto Dante Pazzanese, que acompanha os atletas maiores de 16 anos, e da Gatorade, que fornece isotônico para as crianças. Além disso, tem parcerias com os projetos People of Change, que fez um documentário sobre a ONG, e Sonhar Acordado, que promove ações sociais de Natal e Ano Novo dentro do Vida Corrida.

Com tantas conquistas, Neide não hesita em citar a maior delas. “Anota o nome dele: Jonathan Santos. Ele ainda vai ser medalhista olímpico, eu tenho certeza absoluta.” O garoto, atualmente com 16 anos, participa do projeto Vida Corrida desde criança e sempre sonhou em ser igual Marílson Gomes dos Santos, maratonista três vezes campeão da São Silvestre. De tão talentoso e dedicado ao esporte, hoje ele tem o mesmo treinador de Marílson.

Neide não é assalariada pelo projeto e garante que nunca quer ser. “Se um dia eu receber um salário, ele deixa de ser o meu projeto. O Vida Corrida é o meu projeto de mudança social. Meu projeto com os pés e o coração. A única coisa que eu tenho para oferecer para essa comunidade é um coração cheio de amor, um olhar pelo o próximo e os meus pés, que aprenderam a vida inteira a correr”, diz, e se emociona.

Cercada de crianças, Neide não é remunerada pelo projeto, e nem quer.

Cercada por algumas das crianças do projeto, Neide não é remunerada pelo Vida Corrida — e nem quer.

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