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“Nem todo mundo consegue contar histórias para uma criança em um leito de hospital… É preciso se preparar para o inesperado”

Valdir Cimino - 14 out 2022
Valdir Cimino, fundador da Viva e Deixe Viver.
Valdir Cimino - 14 out 2022
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Nasci em São Paulo no bairro do Ipiranga, na Zona Sul, bem em frente ao Museu do Ipiranga, lá onde Dom Pedro I bradou: “Independência ou morte”. 

Minha mãe conta que fui sempre muito independente, o primeiro de três irmãos a largar as fraldas e a chupeta, também a andar e a me comunicar. E muito jovem vencia todos pelo cansaço quando queria alguma coisa — tinha estratégias para tudo.

Aos 8 anos, já fazia qualquer negócio para ter um dinheirinho: lavava louça, pintava camisetas e almofadas e vendia coxinha e empadinhas que minha mãe fazia muito bem.

Adorava a escola. Lembro como se fosse hoje dos conselhos da minha querida professora Theresinha Leopoldi: “Sem o amor pela leitura, somos páginas em branco de um livro sem capa”

Liderava os eventos promocionais sempre inspirado pela arte e o saber. Tinha orgulho de carregar a bandeira do Brasil e da escola nas paradas e atividades que representavam a educação e o esporte.

A vida passa muito rápido… Aos 13, desejava fazer um curso de desenho artístico e propaganda, mas a situação financeira de meus pais não possibilitava este tipo de luxo, logo a solução veio com o trabalho e, desde então, não parei.

ACABEI ME ESPECIALIZANDO NA ÁREA DE COMUNICAÇÃO E VIREI EMPREENDEDOR SOCIAL

Apesar de amar a Medicina, o meu barco do conhecimento me levou para o mundo das comunicações. Me tornei um publicitário de sucesso, um professor e empreendedor social.

Mal sabia que um dia estaria batendo nas portas dos quartos do Instituto de Infectologia Emílio Ribas oferecendo a leitura e o brincar como forma de expressão para espantar dores e sofrimento vividos por crianças e adolescentes, seus familiares e também para os profissionais da saúde

Eles logo perceberam a importância deste ato, não como mero entretenimento, mas como algo mais profundo, um ato para a melhoria da qualidade de vida e das relações comunicacionais entre os sujeitos que produzem saúde, educação e cultura.

Em uma trajetória dedicada aos estudos da mídia, como impactar pessoas, com o grande objetivo de consumir produtos, serviços e ideias, e trabalhando com grandes marcas como C&A, MTV, Rede Globo e agências de comunicação e marketing, observei o grande desafio em promover o consumo consciente, bem antes de se propagar esta tal da sustentabilidade planetária.

Participei ativamente da Eco 92 e movimentos sociais e não fazia sentido para mim ter um Brasil que estimulava pouco a literatura e o livro entre os pequenos versus o tempo dedicado à televisão e mais para a frente ao consumo de tecnologia desmedida.

Com isso, passei a sentir a necessidade de militar em prol do voluntariado, lição que aprendi quando criança junto às atividades oriundas das religiões católica e espírita que me constituíram como ser. 

DURANTE UM SABÁTICO, MERGULHEI NO VOLUNTARIADO E DESCOBRI O CONTADOR DE HISTÓRIAS QUE HAVIA DENTRO DE MIM

Mais tarde fazendo um período sabático, no qual tive a oportunidade de viver por nove meses (uma gestação) em Nova York para me especializar e aprender mais sobre TVs segmentadas, estagiei no grupo VIACOM e na USTV.

E foi nesse período que descobri algo que mudou a minha vida para sempre. Me comprometi, como voluntário, a conversar com idosos.

Para melhorar meu inglês, me alistei na English In Action e também lia para pacientes home care do The Hospital Saint Vincent. Acredito que neste momento, entre conversar e ler, nasceu o contador de histórias que habitava dentro de mim

Lembro bem das minhas inquietações ao retornar ao Brasil. Em um período de cinco anos, passei a ser doador de leite, roupas, brinquedos e materiais escolares para as mais de 600 crianças atendidas pelos profissionais da saúde e da Capelania Católica, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, hospital que há 25 anos faz parte da minha vida. 

Em 1997, não bastava mais doar coisas, então passei a dedicar de duas a três horas por semana para conviver e viver os dramas de crianças que sofriam com catapora, meningite, hepatite, malária etc. Assim como escutar as necessidades das famílias, aliás, muitas crianças já não tinham famílias devido à evolução da AIDS. 

NO COMEÇO, TIVE QUE LIDAR COM A RECUSA DAS CRIANÇAS INTERNADAS EM OUVIR HISTÓRIAS

E foi assim que nasceu a Associação Viva e Deixe Viver, com o objetivo de oferecer leitura para crianças que não foram estimuladas a ter prazer pelo livro.

As frases mais comuns e corriqueiras que eu recebia eram: “Sai da frente da TV, tio”, “Não gosto de ler porque é chato”, “Este livro tem muitas figuras?”, entre outras 

As recusas eram muitas, mas vinham recheadas de possibilidades. Um “não” pode ser “sim” desde que haja diálogo e negociação, assim é a comunicação. Aos poucos fui descobrindo com elas o que as fazia bem. 

Os clássicos da Disney eram a bola da vez, até porque é o que recebemos por osmose da indústria do consumo, mas apresentar os nossos autores e histórias com a nossa identidade nacional passou a fazer parte do que eu levava semanalmente em minha sacola literária.

Escolhi os melhores autores, lembro que os primeiros foram aqueles apresentados na minha infância através da revista Recreio.

Sonia Robatto se tornou amiga e quando voltou para a Bahia doou sua biblioteca para a Viva e Deixe Viver; depois veio Pedro Bandeira, que nos doou generosamente livros para serem distribuídos para as crianças; Tatiana Belinky me foi apresentada por Vania Dohme, Ruth Rocha e Ricardo Azevedo. 

TODOS PODEM CONTAR HISTÓRIAS, MAS NEM TODOS PODEM CONTAR HISTÓRIAS EM UM LEITO DE HOSPITAL

Sempre imaginei que a narrativa, como terapia a partir do contador de histórias, deveria ser prescrita, pois cada criança é um mundo a ser lido, traz as suas necessidades, desejos e valores.

O mesmo acontece com os sujeitos impactados que circulam como cuidadores destas crianças. Imaginei um mundo do “era uma vez” com infinitas possibilidades positivas que tirassem o medo, angústia e sofrimento. 

Tudo é uma questão de pesquisar e armazenar conhecimento. Ou seja, desde o início tivemos que construir ferramentas que avaliassem o trabalho do contador de histórias, hora qualificada e valorizada, como uma forma de comprovar a distância entre a ação assistencialista pontual para o profissionalismo do trabalho oferecido pelo voluntário.

Outro papel importantíssimo era fazer com que a Associação Viva e Deixe Viver firmasse sua atividade principal, a de promover leitura e o lúdico criativo no leito hospitalar, e crescesse.

Num primeiro momento, sete amigos toparam participar. A oitava pretendente a voluntária praticamente chorou ao assistir a uma contação de histórias para um menino de 8 anos que estava em cuidados paliativos.

Seu olhar de tristeza nunca me saiu da cabeça, assim como a observação do próprio garoto que solicitou que ela fosse tomar um copo d’água e que se acalmasse, pois ele estava bem

Estar preparado para o inesperado nos fez avaliar que precisávamos de um curso de formação e ensino continuado para garantir que cenas como esta não viessem a se repetir.

Todos podem contar histórias, mas nem todos podem contar histórias em um leito de hospital. Assim nasceram os três Cs da Viva:

1) Consciência sobre a causa que pretende atuar e consequências que ajudarão o voluntário a decidir melhor o campo de atuação e especialização, além de investir em políticas públicas que favoreçam a qualidade de vida e o bem-estar de todos;

2) Comprometimento com um sistema onde a Viva possibilita a participação em entidades de saúde e educação de grande porte, onde diariamente milhares de pessoas procuram apoio;

3) Constância, única forma de vivenciarmos a transformação social: voluntário que aparece só de vez em quando não muda o mundo, ou melhor, não tem consciência — aí, voltamos para o primeiro C.

NA PANDEMIA, NÃO PARAMOS. CRIAMOS AÇÕES ONLINE E CONTINUAMOS NOSSO TRABALHO COM A AJUDA DA TECNOLOGIA

Com isso, nosso curso de formação se transformou e ganhou respeito, premiações e se transformou em atividade extensionista em diversas faculdades e universidades como Estácio de Sá no Rio, Universidade do Estado da Bahia (UNEB), PUC São Paulo, Uninove, Escola de Enfermagem da USP, e mais recentemente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Manter o voluntário por muitos anos na instituição requer atenção e cuidado. Com o tempo, fomos desenvolvendo o apoio psicológico para os nossos voluntários.

Na pandemia, graças ao avanço tecnológico, conseguimos abrir novas frentes como o “Viva On”, que são salas abertas digitais para encontros e saraus. Também transformamos as tradicionais “Domingueiras de Histórias” presenciais em momentos de humanização da tecnologia, com aulas, lives, workshops e fóruns

Neste último triênio, desenvolvemos o espaço Viva Eduque, no qual disponibilizamos o conhecimento desses 25 anos para a formação do cidadão interessado na arte de contar histórias e o brincar, seja nosso voluntário ou profissional da saúde e educação — assim como para os profissionais em geral que desejam aprimorar a gestão do trabalho voluntário e a melhoria das comunicações. 

MAIS DO QUE DIVERSÃO, A CONTAÇÃO É UMA ALIADA AO TRATAMENTO CONVENCIONAL

O nosso pioneirismo em diversas frentes nos ajudou a desenvolver diversas pesquisas, cujas conclusões sempre apontaram para transformações sociais importantíssimas na vida da criança.

Recentemente, uma pesquisa inédita ganhou destaque na mídia nacional e internacional, ao demonstrar, através da neurociência, que a narrativa de contos e histórias pode ser um grande aliado aos medicamentos tradicionais. 

Hoje lemos, em média, mais de 22 mil livros por ano, e brincamos muito. O perfil de nosso voluntário mostra a fidelidade de permanecer na instituição por uma média de nove anos. Eles também doam quase 10 horas por mês

Muitos voluntários seguem carreira e se especializam na arte de contar histórias. Temos orgulho de dizer que a cada 1 real investido na Associação, 7 reais são devolvidos para a sociedade.

Fazemos parte de uma economia criativa, onde todos ganham cultura, educação, amor, conhecimento, saúde, ordem e progresso.

 

Valdir Cimino, 61 anos, é empreendedor social, fundador da Viva e Deixe Viver, sócio-diretor da Cimino Marketing de Propósito. Graduado em Comunicação Social  pela ESPM e especializado em Marketing, Comunicação e Relações Públicas. Pós-graduado em Tecnologia do Ensino pela FAAP e mestre em Ciências da Saúde pela FCMSCSP. Professor em Comunicação, Rádio TV, Internet e Audiovisual, Gestão do Terceiro Setor, Sustentabilidade e Voluntariado Corporativo. Diretor voluntário do Instituto Helena Florisbal. 

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