“Nesse cenário de dificuldade, a inovação reversa ensina que a favela faz parte do caminho para criarmos processos eficientes”

Dani Rosolen - 13 abr 2020
Daniel Cavaretti, cofundador do G10 das Favelas e do Canal Transformadores, em Paraisópolis.
Dani Rosolen - 13 abr 2020
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Mais de 12 milhões de brasileiros vivem em favelas, segundo o IBGE. Para essas pessoas, com trabalhos informais, moradias lotadas e acesso restrito a produtos de higiene e saneamento básico, recomendações como “lavem as mãos”, “trabalhem em home office” e “evitem aglomerações” muitas vezes não fazem o menor sentido.

Em tempos de coronavírus, algumas dessas famílias ganharam um breve alento neste último fim de semana, com a distribuição de 60 mil ovos de Páscoa (doados por empresas como Cacau Show) para os moradores de 18 comunidades periféricas de São Paulo.

A ação logística teve apoio do G10 das Favelas, que acionou os “presidentes de rua” de cada comunidade para organizar a entrega de porta em porta, com os devidos cuidados de higienização de produtos e transporte.

Formado no fim de 2019, o grupo reúne líderes empresariais e empreendedores de impacto social das dez maiores favelas do Brasil, como as cariocas Rocinha e Rio das Pedras, as paulistanas Heliópolis e Paraisópolis, a recifense Casa Amarela e a Cidade de Deus, em Manaus. 

Segundo pesquisa da Outdoor Social, juntas, essas dez comunidades têm um potencial de consumo de 7,7 bilhões de reais. A proposta do G10 é estimular os empreendedores locais para que se tornem autossustentáveis, gerem receita e contratem a força de trabalho local. 

“Unindo essas comunidades em um grande polo de negócios, a ideia é torná-las mais atraentes para as empresas investirem, chamar mais atenção do governo e da população, de modo geral, para que se tenha um olhar diferente sobre as favelas”, diz o advogado Daniel Cavaretti, 35, cofundador e coordenador nacional do grupo.

Daniel não vive na favela, mas conhece seu contexto, atuando como empreendedor social e diretor do Canal Transformadores, um centro de estudos e de desenvolvimento de pessoas que estuda modelagem de negócios e empregabilidade nas comunidades. 

A seguir, ele conta como o G10 tem ajudado a articular medidas para minimizar o potencial de estrago do coronavírus: 

 

O que motivou a criação do G10 das Favelas? E quantas pessoas vocês já impactaram?
As primeiras perguntas que a gente se fez quando começou o projeto foi: por que não há grandes empresas investindo dentro das favelas? E por que o governo não tem trabalhos muito efetivos e com frequência dentro das comunidades?

Os empresários costumam responder, sem validação, que é a falta de segurança, de estrutura ou de logística. Mas nossa primeira percepção foi em relação à falta de informações confiáveis sobre as favelas.

Não existem muitos dados estruturados sobre as comunidades, o que coloca a favela fora do mapa político e empresarial por questões de eficiência. Afinal, o empresário investe lastreado em números, e o governo também

Hoje, o G10 reúne líderes das dez maiores favelas do Brasil, e cada uma delas busca atingir a comunidade como um todo. Em Paraisópolis, por exemplo, são mais de 100 mil pessoas; em Heliópolis são 150 mil.

Com o coronavírus, muitas comunidades menores começaram a nos procurar e pedir para replicar o modelo do G10. Então, hoje temos ainda 12 comunidades menores, como as de Guarulhos, Cidade Tiradentes, Jardim Peri e Vietnã, cada uma com 5 mil pessoas, que também estão sendo impactadas pelas nossas ações.

Como o G10 vem atuando para ajudar as favelas a enfrentar a crise do coronavírus?
Durante a pandemia, o G10 assumiu o papel de mostrar como os moradores podem ser protagonistas na busca de uma solução. 

Lógico que eles precisam do amparo do Estado, mas montamos um projeto em Paraisópolis, que está sendo replicado em várias comunidades, mostrando como a sociedade civil pode participar e ajudar na superação da crise.

Dividimos Paraisópolis em diversas microrregiões, que chamamos de bairros. Cada uma passou a ter um presidente de rua que cuida de 50 casas. São voluntários que monitoram a região para entender o que está acontecendo, passar orientações, pedir que as pessoas sigam as normas da quarentena… Tudo com uma linguagem específica, dentro daquela realidade

Os presidentes de rua também cuidam de todas as doações arrecadadas, sendo responsáveis por sua distribuição, até para evitar a aglomeração de pessoas. Outra missão é combater fake news e monitorar o sistema de saúde privado que contratamos.

Em Paraisópolis, o G10 contratou três ambulâncias (sendo uma UTI móvel), dois médicos, dois enfermeiros e três socorristas, que durante a quarentena estão hospedados em casas da comunidade. Como tem sido essa experiência?
Quando contratamos as ambulâncias privadas, vimos que os médicos não estavam preparados para atender aquela localidade. Os terrenos são íngremes, as vielas são estreitas e têm casas de quatro andares, com escadas, onde o idoso fica acomodado no último lance. 

Imagine retirar uma pessoa de maca do quarto andar, ou alguém de cadeira de rodas num espaço que não é acessível…

Alguns dos médicos contratados disseram que deveriam receber treinamento semelhante ao do BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais], no Rio de Janeiro, que se preparam para fazer rapel nas comunidades. A polícia está preparada para entrar nas favelas — mas os médicos, não

Quando há uma pessoa que não está passando bem, o presidente de rua chama esses médicos, que vão até o local para fazer um primeiro atendimento e orientar se são sintomas de coronavírus. 

Se for o caso, já encaminham o morador para a unidade básica de saúde mais próxima, para que ele receba o tratamento correto e de modo que cesse o contato dessa pessoa com a comunidade, evitando assim o contágio.

A ideia não é substituir o sistema público de saúde, mas dar um amparo para que as pessoas não entrem em desespero diante de uma suspeita e gerem um colapso nas unidades básicas.

Os moradores das comunidades estão conseguindo manter o distanciamento social?
No início, fizemos uma campanha grande para mostrar que a coisa era séria. As pessoas começaram a cumprir [o distanciamento]. Mas, com o passar do tempo, elas estão afrouxando, porque as questões econômicas começam a pesar, as contas continuam chegando…

A primeira dificuldade que bate na favela, e rápido, é a questão econômica. Já é uma dificuldade que persiste no dia a dia. Com um lockdown, o desemprego chega antes nas comunidades do que em outros locais, pelo fato da maioria dos trabalhadores ser informal

A segunda dificuldade tem a ver com o lado de infraestrutura. Se as casas da comunidade já não estão estruturadas para se viver em boas condições quando os moradores passam o dia fora trabalhando, imagine todo mundo dentro do imóvel o tempo todo… 

Na favela há muitas comunidades sem água. Como o morador vai lavar as mãos? Ou passar álcool em gel, se a receita dessas pessoas não permite comprar produtos de higiene a toda hora… E como manter a reclusão em casas se às vezes a pessoa está mais isolada na rua do que num imóvel pequeno que abriga 20 pessoas?

Como o G10 vem apoiando a economia local dessas comunidades? Pode explicar como estão funcionando as campanhas de crowdfunding?
Fizemos uma parceria com o eSolidar, uma plataforma portuguesa. No ano passado, já tínhamos criado com eles um projeto de captação de recursos para ajudar empreendedores locais e oferecer uma espécie de Bolsa Família para as pessoas mais vulneráveis. Mas essa proposta foi interrompida por causa da crise do coronavírus.

Agora, a plataforma está nos isentando de taxa para montarmos campanhas específicas [de crowdfunding] para cada comunidade. O embaixador do G10 local junto com a entidade local — a União dos Moradores de Paraisópolis, por exemplo — recebe esse dinheiro e estrutura a operação.

As vaquinhas são interessantes porque permitem adquirir produtos dentro da favela. Quando a cesta básica vem pronta, por meio de doação, ela é adquirida de grandes produtores que têm condições melhores de financiamento e empréstimos, o que é muito difícil para os pequenos empreendedores da favela

Estamos usando as doações em dinheiro para comprar e montar as cestas básicas com itens comprados dos empreendedores e comerciantes locais. Privilegiamos a compra de marmitas entregues nas áreas mais vulneráveis dos empreendedores de impacto local.

Os pratos estão sendo preparados pela Mãos de Maria, um grupo de empreendedoras de Paraisópolis que qualifica mulheres que já sofreram violência doméstica para que possam montar os negócios delas ou trabalhar dentro da cozinha da empresa.

Além disso, estamos apoiando o Costurando Sonhos, um projeto de costura também com mulheres que sofreram violência doméstica, que está emprestando máquinas para que elas façam uma espécie de home office, costurando em casa e prestando serviço para empresas de fora da comunidade nesse período.

Outra iniciativa é o Emprega Comunidades, que recebeu o apelido de “LinkedIn da Favela” e aproxima moradores e empresas que querem empregar pessoas da comunidade. Essa plataforma também lançou a campanha Adote uma Diarista para apoiar as empregadas que perderam o trabalho por causa da pandemia.

É possível extrair, do momento atual, alguma mensagem de esperança?
Acredito que esse senso colaborativo que estamos vendo, essa real empatia para entender as diferenças, será um fator importante para superarmos este momento — e mudarmos a percepção sobre as favelas.

Neste cenário de dificuldade, a inovação reversa [na prática, a inovação que vem dos países emergentes para os desenvolvidos, ou no caso, da favela para os grandes empreendimentos] ensina que as comunidades fazem parte do caminho para criarmos processos eficientes. 

Quando a crise passar, podemos voltar mais fortes com nossas ações. O desenvolvimento econômico depende da coletividade e do fator confiança entre as pessoas. E essas são questões que estão sendo muito desenvolvidas agora.

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