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O humor e o Deus das montanhas

Edson Aran - 19 jan 2015 Edson Aran, escritor e roteirista, ele também é autor-diretor-faxineiro e único proprietário do Site do Aran.
Edson Aran, escritor e roteirista, ele também é autor-diretor-faxineiro e único proprietário do Site do Aran.
Edson Aran - 19 jan 2015
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Enviamos uma mensagem ao Aran pelo Facebook dizendo o seguinte: “Que tal escrever um artigo para o Draft fazendo uma defesa radical do humor e da liberdade de expressão?”. Depois outra: “Há limites – bom senso, bom gosto, senso comum? Onde fica a fronteira, se é que há? Até onde ir? Brincar com ideias tudo bem mas não com pessoas, como ouvi por esses dias? Qual o limite ético, moral e legal da piada – ou da mera exposição de uma opinião sobre algo ou alguém?”. E mais outra: “O que é um insulto? A partir de onde discordar de você, criticá-lo, fazer um comentário a seu respeito, rir de você é uma ofensa – e deixa de ser um direito meu para se tornar algo contra o que você tenha o direito de se insurgir?” E ainda: “Muitos sugerem que a liberdade de expressão é uma espécie de direito absoluto. E esse é exatamente um ponto de vista religioso – li isso agora.”

 A todas, Aran respondeu o seguinte: “Pra mim, a pergunta certa é ‘a religião pode tudo?’ e não ‘o humor pode tudo?’”. E mandou o artigo abaixo.

Aran, você sabe, é escritor e roteirista. Autor dos livros “O Amor é Outra Coisa” (Jardim dos Livros), “Delacroix escapa das chamas” (Record) e “Conspirações – Tudo o que não querem que você saiba” (Geração Editorial), entre outros. Desde 2003, ele é autor-diretor-faxineiro e único proprietário do Site do Aran, um site de humor. Como jornalista, editou as três principais revistas masculinas do país: “Vip”, “Sexy” e “Playboy”. Atualmente, escreve um livro novo sobre teorias conspiratórias e trabalha na reformulação do humorístico Zorra Total, da TV Globo.

 

 

Por Edson Aran

Fui ver “Êxodo”, do Ridley Scott. O cara é superestimado, mas gosto dos filmes dele. “Êxodo” começa bem, com Batmoisés (Christian Bale) fazendo guerra de guerrilha contra o faraó e tal. Mas então deus decide intervir e mandar suas 10 pragas pra cima do Egito. E deus é tão desumano, tão cruel, tão despótico, tão absurdamente insano, que eu me vi torcendo pro faraó virar o jogo. Sério. Torci contra deus.

Mas o filme do Ridley Scott me fez pensar um troço: quando vejo jornais e revistas publicando artigos tipo “o humor pode tudo?”, tendo a achar que estão fazendo a pergunta errada. A certa é: “A religião pode tudo?” Um deus bárbaro que habita as montanhas pode impor suas leis a toda a humanidade? Mesmo àqueles que não acreditam nele? Mesmo àqueles que preferem Zeus ou Cthulhu? Quem concedeu esse direito a um deus específico? Eu é que não fui. Foi você?

Uma religião, qualquer religião, é um conjunto de ideias. Uma ideologia. Quem impõe ideologia à força é fascista e não há negociação possível com fascistas. O “Charlie Hebdo” nunca facilitou a vida desse povo, fossem eles fascistas-islâmicos ou fascistas-fascistas. Ao desafiar os detentores da verdade, o jornal exerce uma ação concreta no mundo, ao contrário do deus do deserto e das montanhas que, se não me falha a memória, atuou de forma direta pela última vez no episódio de Jó. Não deu muito certo, nós sabemos.

Cartum de Aran

“Não gosto de 80% do que leio no jornal que assino. Mas ainda assim, eu o leio toda manhã”

A religião é reverente e o humor é irreverente. “Reverência” é submissão ao sagrado. “Irreverência” é perceber que nada é sagrado. O Islã tem todo o direito de ficar ofendido com imagens do profeta. Entendo e respeito. Mas ele não é o MEU profeta, é o SEU profeta. Eu defendo o SEU direito sagrado de reverenciá-lo, desde que você não me obrigue a fazer o mesmo com uma AK 47 na mão, percebe?

Isso não significa que você ou eu precisamos gostar de todas as charges do “Charlie Hebdo”. Não é disso que se trata. Eu, por exemplo, não gosto de 80% do que leio no jornal que assino. Mas ainda assim, eu o leio toda manhã. Um pouco para preservar a indústria do impresso, mas isso é outra história. O ponto é que sempre procuro balizar minha visão de mundo observando quem pensa de maneira diferente. Liberdade de expressão é, basicamente, o direito dos que pensam de maneira diferente.

Ou, nas palavras de Voltaire, “não concordo com uma palavra do que diz, mas defendo até a morte o seu direito de dizê-la”. Na verdade, ele nunca disse exatamente isso, em nenhum livro, mas a frase sintetiza o pensamento dele. Voltaire foi um brilhante satirista francês, assim como os cartunistas do “Charlie Hebdo”. O ataque ao jornal é, por tabela, um ataque a Voltaire, um ataque ao iluminismo e um ataque à razão.

Nós vivemos um período de odioso relativismo moral, mas alguns valores devem permanecer absolutos, como, por exemplo, a liberdade de crença e a liberdade de expressão. Você acredita no que quiser e eu digo o que eu quero. Inclusive sobre as SUAS crenças. Não tem “esquerda” versus “direita” nessa fórmula. Não tem colonizadores versus colonizados. Não tem ocidente contra oriente. É apenas civilização contra barbárie. A escolha é essa e não tem relativismo na jogada. Simples assim.

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