“O Projeto de Lei 6159 sobrepõe o interesse de empresários à própria dignidade dos trabalhadores com deficiência”

Francisco Sogari - 6 dez 2019
Francisco e Iracema, fundadores do Instituto Gabi, junto com o filho João Felipe.
Francisco Sogari - 6 dez 2019
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por Francisco Sogari

“Quem ajuda as pessoas é feliz.” Esta frase desafia qualquer marqueteiro de plantão. Foram as últimas palavras que minha filha de 6 anos pronunciou. No final da tarde de domingo, 4 de fevereiro de 2001, eu e minha filha fomos ao mercado para comprar comida para um morador de rua que tinha pedido dinheiro.

Gabi não conseguiu entregar a doação. Ao retornar ao ponto onde havíamos sido abordados, ela foi arrancada dos meus braços por um motorista embriagado. Estava ferida nos joelhos e sem voz de tanto gritar

Esperamos mais de 40 minutos por uma unidade do SAMU. E olha que havia uma base bem próxima. Foi esta demora que a levou a óbito. Um milhão de vezes me perguntei: Por que ela e não eu? Ser pai e mãe é viver e morrer na companhia dos filhos, ser enterrado por eles… Mas este ciclo foi brutalmente quebrado.

O luto é um cálice muito amargo. Os amigos podem nos ajudar, mas não podem beber o fel amargo que é estar no fundo do poço. A travessia é longa, escorregadia, muitas quedas, mas progride.

Sair do poço não é mágica, mas um longo processo de amadurecimento, uma redescoberta, um insight. Minha esposa afirma: “Quando passamos por uma experiência dolorosa, não saímos dela da mesma forma. Evoluímos. Vemos a vida, a família e o mundo de forma diferente”.

A vida tinha que continuar. Nosso filho João Filipe, na época, com 2 anos, era a razão de nosso viver. Ao mesmo tempo, tínhamos a certeza que Gabi estava viva, em outra dimensão. Esta crença nos levou a uma atitude proativa: memorizar sua imagem em uma iniciativa que cuida de outras crianças.

Surgiu assim, no mesmo ano em que perdemos nossa filha, o Instituto Gabi, um projeto social que promove a inclusão de pessoas com deficiência

Sem muitos recursos, mas com um propósito, iniciamos uma longa trajetória. Começamos com uma oficina de música numa garagem, em São Paulo. Em seguida, passamos o chapéu e convidamos nossos amigos a ajudar nas despesas do aluguel da Casa Gabi, como era chamado o espaço.

Logo, a garagem ficou pequena. Envolvemos o poder público e passamos a prestar este serviço num imóvel amplo na capital paulista. Com os pés no chão, nossa caminhada seguiu firme.

São quase duas décadas de serviço à pessoa com deficiência de baixa renda, sem acesso a informação e atendimento especializado.

Hoje o Instituto Gabi tem duas unidades: o Núcleo Conveniado, onde atende diariamente, durante quatro horas, 60 pessoas com deficiência de baixa renda, e o Espaço Multidisciplinar e a Sede Administrativa, com terapias, oficinas, cursos e o Bazar de Oportunidades.

A ideia de atender, orientar e encaminhar pessoas com deficiência partiu da experiência em escolas públicas de Iracema, a mãe da Gabi.

A realidade de salas lotadas, que recebem crianças, jovens ou adolescentes com Síndrome de Down, autismo, paralisia cerebral ou outros diagnósticos, mas que não têm nenhuma estrutura para lidar com esta situação, fez com que ela refletisse.

A PCD é excluída ao invés de incluída. Sem acesso a informação e recursos, fragilizada pela realidade, a família faz uma peregrinação pelos serviços públicos e pelas organizações que deveriam acolhê-las

Algumas delas encontram em iniciativas, como o Instituto Gabi, uma porta aberta e acolhimento e atendimento necessários. Mas as vagas são limitadas, a demanda é muito maior que a capacidade. Aumenta-se assim o ciclo de exclusão.

E o governo não pode se abster. O Instituto Gabi, assim como outros projetos sociais, foi criado não para isentar a iniciativa governamental na efetivação e garantia de políticas públicas, mas para cobrar o cumprimento de direitos. Uma das maneiras é a mobilização dos seus públicos de ação e da imprensa, como estamos fazendo ao protestar contra o Projeto de Lei 6159 que destrói conquistas da pessoa com deficiência.

O PL descaracteriza a Lei de Cotas. É inconstitucional, ilegal, imoral e irresponsável do ponto de vista das obrigações assumidas pelo Brasil perante a comunidade internacional em matéria de direitos das pessoas com deficiência

A medida, recém-enviada pelo Executivo à Câmara, sobrepõe o interesse de empresários à própria dignidade dos trabalhadores com deficiência, pois permite de forma alternativa o pagamento de um fundo de reabilitação em detrimento da contratação formal. Estabelece diversas condições para o direito ao auxílio-inclusão que, se efetivadas, impedem o acesso à sua concessão e frustram os objetivos da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

Todas as organizações se manifestam contra o PL, pois representa um retrocesso, uma exclusão e não uma inclusão. Precisamos conversar mais, debater mais

Mas voltando ao Instituto Gabi e sua consolidação, minha formação e prática jornalística foram decisivas para que conseguíssemos ganhar visibilidade e projeção. Com a assessoria de imprensa e de marketing voluntários (hoje há um investimento), pautamos os principais veículos do país, que passaram a utilizar nossos dados como fonte para suas reportagens. O movimento de qualidade pela inclusão social serve de base para pesquisas acadêmicas em diferentes áreas, tanto no Ensino Superior como em outros níveis. Hoje somos referência na construção de políticas públicas.

Durante todos esses anos, atendemos centenas de PCD que tiveram juntamente com suas famílias uma melhora de qualidade de vida. Alguns estão no mercado de trabalho, quase todos frequentam a escola e são acompanhados por nossa equipe multidisciplinar. Todos tiveram um ganho na conquista da autonomia e na independência

Conquistamos o Prêmio Relevância Social, na Câmara dos Deputados, e o Título de Cidadão (Cidadania Paulistana) na Câmara de Vereadores. Por isso, acreditamos no mote de Dom Quixote: Sonho que se sonha só é apenas sonho. Sonho que se sonha junto, é o começo da realidade”.

 

Francisco Sogari, 63 anos, gaúcho, é mestre e professor de Jornalismo. Fundou, junto com a esposa Iracema Barreto Sogari, o Instituto Gabi

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