O célebre José Mujica, ex-presidente uruguaio e fonte de inspiração para muitos e muitas, uma vez disse sobre o seu estilo singelo de ser e viver: “Não sou pobre, sou sóbrio, pouca bagagem, vivo com o suficiente para que não me roubem a liberdade”.
Ser ou não adepto de um dos líderes da esquerda sul-americana não vem ao caso. A questão é o quanto você está disposto(a) a deixar para trás a bolha das redes sociais ou a famigerada zona de conforto de sua vida?
Há oito anos eu decidi largar tudo. Uma carreira estável no jornalismo — onde atuei como repórter e editor de conteúdo multimídia para vários veículos importantes no Brasil —, a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, um bom salário e a qualidade de vida de abrir a garrafa de cerveja bem ao lado das ondas do mar.
Divorciado e sem filhos, me sentia estagnado. Pior, não me sentia mais útil à sociedade.
Juntei minhas economias e embarquei para a Grécia, em abril de 2016.
Vivi por praticamente três meses no campo de refugiados do porto de Pireus, próximo a Atenas.
Quando eu falo “vivi” é no contexto literal: dentro de um armazém onde voluntários independentes, como eu, que na cara e na coragem quiseram presenciar a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial, trabalhavam de maneira incessante para vestir e alimentar cerca de 4 mil refugiados sírios e afegãos.
A primeira lição que eu aprendi ali foi que “jornalista não era bem-vindo” num campo de refugiados e que a exploração da miséria alheia não era algo tolerado por ali
Pior do que isso era o fato de que muitos fotógrafos e cinegrafistas não tinham a preocupação em perguntar se podiam fazer imagens de pessoas que eram perseguidas em seus países de origem. Foi a mudança de chip.
Demorou para eu adquirir a confiança daqueles seres humanos que viviam apinhados em barracas de camping, com parcas mochilas e retratos de uma vida que, dificilmente, recuperariam.
Entendi plenamente que era necessária muita coragem para deixar tudo para trás, entrar num bote em mar revolto sem saber nadar, lidar com traficantes de pessoas com seus filhos ao lado, enfim, arriscar a vida ou beirar a morte. Terminar um relacionamento me pareceu “fichinha”.
Na real, de cada dez refugiados que você tiver (quem sabe um dia) a oportunidade de conversar, eu arriscaria dizer que 11 vão dizer que prefeririam seguir em suas respectivas terras natais. Mas tem momentos na vida em que você simplesmente não tem outra escolha
E este foi outro grande ensinamento no processo de desmistificação do refúgio. Ninguém chega a outro país que não seja por um motivo bastante plausível e real de violações de direitos humanos.
De lá para cá, não posso negar: me tornei outro ser humano. Lembro de voltar ao Brasil e ter muita dificuldade em explicar o que tinha visto e vivido.
Até hoje tenho dificuldades, porque é o tipo de coisa que você tem que viver para entender. Dei inúmeras palestras, sem nunca ter a certeza de que as pessoas que me viam e ouviam entendiam, de fato, o conceito de refúgio
Quando alugamos o primeiro apartamento de moradia para jovens refugiados — os mais vulneráveis na crise, que sempre prioriza famílias, idosos e crianças — em dezembro de 2016, foi o primeiro esboço do que viria a ser, no futuro, o Planeta de TODOS, a ONG que eu tenho muito orgulho em capitanear ao longo dos últimos sete anos.
Entendemos, naquele momento, que não havia outra escolha para estes jovens, assediados por diversas máfias locais para serem soldados.
Na ânsia de terem o que comer e beber — ou onde cair (quase) morto —, eles eram muito suscetíveis às drogas, ao tráfico de pessoas ou mesmo à prostituição.
Reconheço que foi um processo psicológico difícil o de não menosprezar os meus próprios problemas e angústias.
Afinal, o que eram as minhas questões em mente quando eu lidava com uma problemática infinitamente maior?
Veio um burnout, claro que veio. Era muita desgraça e miséria para não te afetar diretamente.
Entendi que ainda não estava 100% preparado para aquilo e que estar em dia com a terapia era o equivalente à musculação ad aeternum de quem opera o joelho e sabe que precisa de reforço muscular constante para não ter uma artrose no futuro.
Na real, o grande ensinamento foi o de nunca tentar ajudar uma pessoa se você não se encontra bem consigo mesmo.
Precisei de um tempo para refrigerar as ideias e me fazer forte novamente. Nunca mais desmoronei. Tinha caído a ficha.
De lá para cá, entendi que o desapego era algo que eu seguiria para o resto da vida. Que eu não precisava mais acumular coisas.
Deixei meu apartamento no Rio de Janeiro, doei minhas coisas e passei a viver com duas malas, meu computador e minha câmera fotográfica
Era o suficiente. As riquezas acumuladas na minha vida, a partir daquele momento, seriam experiências e aspectos culturais compreendidos no meu ideal.
A tal bagagem que eu carrego hoje não pode ser mensurada. É algo que não tem data de validade: eu vou carregar para o resto da minha vida.
Eu já fui levado de camburão pela polícia grega porque eles suspeitavam que o simples fato de eu alugar um apartamento para jovens refugiados configurava tráfico de pessoas. Em vão.
Me levaram três vezes para a delegacia em Roma, na Itália, porque também não entendiam por que um brasileiro morava com seis imigrantes africanos, todos negros. Outra vez, em vão
Sim, eu morei com seis africanos, cada um de um país e região diferente, e pude entender também que a Mamma África é complexa, de credos e aspectos culturais bem diversos um do outro — não à toa é o continente com a maior quantidade de países, 54.
Nunca vou esquecer meus workshops sobre como usar a máquina de lavar e o microondas. Eram dias a fio, porque ninguém ali tinha ciência de como operá-los. Afinal, nunca tinham vivido num apartamento antes. Nunca tiveram eletrodomésticos.
Também sou muito grato pelas várias histórias compartilhadas por colombianos(as) e venezuelanos(as) da comunidade LGBTQIA+, vítimas de conflitos armados e perseguições de gênero.
Aprendi a tratá-los(as) de acordo com os respectivos pronomes e vi que não era tão impossível assim tirá-las(os) da prostituição. Mas, como eu já tinha visto e assimilado, era preciso muita coragem e desapego.
Hoje, o Planeta de TODOS já acolheu 160 jovens de 26 diferentes nacionalidades na Itália, na Grécia, na Colômbia — e, mais recentemente, no Brasil.
Em nosso primeiro projeto nacional, estamos integrando social, cultural e laboralmente sete refugiados do Afeganistão que estavam acampados no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em busca de apenas uma oportunidade.
Costumo dizer que fiz mestrado, doutorado, PhD… na vida mesmo. Veja bem: não estou menosprezando a importância de uma universidade. Apenas salientando outra escolha pessoal. Simples assim. Eu desapeguei do diploma.
Entendi que a base de uma vida feliz é cuidar-se, é doar-se e, principalmente, não fazer propaganda de suas ações só para ser um messias nas redes sociais
A simplicidade da vida me trouxe frutos inenarráveis. Hoje, falo seis línguas, três delas aprendidas no contexto do refúgio; conheço 37 países, a grande maioria em função do meu trabalho; sei cozinhar pratos de deixar chefs renomados com inveja na boca.
Enfim, tenho a plena convicção de que sou, hoje, um ser humano muito melhor. E ter tido a oportunidade de comandar o Planeta de TODOS, com o apoio incondicional do Cartão de TODOS e da família Vilar (dona da holding que mantém a ONG), foi e continuará sendo o meu grande gol de placa na vida.
A minha bagagem não pesa: ela está gravada nas minhas experiências e são justamente elas que me fazem voar, ser livre em absoluto. Ninguém mais vai se atrever a roubar a minha liberdade.
André Naddeo é jornalista com passagem pelas redações de alguns dos principais portais do país. Há oito anos, “chutou o balde” e começou a trabalhar com refugiados de mais de 26 nacionalidades. Idealizou um programa inovador de acolhimento e integração sociocultural de jovens refugiados e hoje é diretor-executivo da ONG Planeta de TODOS.
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