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Desde pequena, eu gostava de cuidar. Não era algo planejado, fazia parte do que eu era. Fazia massagem nos meus pais e irmãos só para fazê-los se sentirem bem.
Cresci vendo meu pai dar aulas de esportes para crianças carentes e fazer reabilitação na hora do almoço, sem cobrar nada. E via minha mãe ser uma fonte constante de cuidado para toda a família. Cresci achando que esse era o jeito mais natural de viver.
Desde cedo, me encantei pelos idosos. Era apaixonada pelas minhas avós, Maria e Luiza, e a minha primeira amiga fora da família foi uma senhora de 70 anos, dona Cassemira, minha vizinha
Ela me recebia com café e conversa boa. Quando minha mãe não me deixava ir até a casa dela, eu a chamava pela janela e ela levava o café até mim. A casa era simples, com chão de terra batida na cozinha e vermelhão na sala, mas era cheia de afeto.
Acho que foi ali que aprendi que amor e cuidado valem mais do que qualquer coisa, mesmo sabendo que um pouco mais de dinheiro faria diferença para ela.
Cresci assim, me apegando aos mais velhos e ouvindo histórias. Mas, quando chegou a hora de escolher uma profissão, me vi em dúvida: Educação Física ou Administração?
No fim, optei pela Educação Física e me formei no final de 2007. Logo comecei a trabalhar na Prefeitura de Uberlândia, dando aulas de hidroginástica para adultos e natação para crianças.
Eu gostava de ver as pessoas se movimentando, voltando a sorrir. Mas, no fundo, sentia que faltava algo
Havia uma parte de mim que queria entender mais a fundo o corpo, o cérebro e o que estava por trás da melhora das pessoas.
Sempre tive uma mente inquieta, curiosa sobre invenções, tecnologia e criatividade. Eu era criativa nas aulas, mas sabia que queria ir além.
Foi então que descobri o mestrado em Engenharia Elétrica. Parecia improvável uma professora de Educação Física no meio dos engenheiros, mas entrei com a cara e a coragem. Sabia que ali poderia juntar as peças tecnologia e saúde.
Pouco antes de começar o curso, minha avó materna teve uma sequência de AVCs, nove ao mesmo tempo. Ver sua angústia pela melhora, sua força de vontade sem resultados tão efetivos, me cortava o coração
Eu quis fazer algo por ela e por todas as pessoas que viviam aquilo. Propus ao meu orientador, professor Eduardo, desenvolver algo voltado a essa população.
Assim, de um grupo multidisciplinar de pesquisa, nasceu a semente do SpES — um equipamento inovador para avaliar espasticidade, uma sequela comum do AVC.
Foi meu primeiro contato com a inovação, com o registro de patente e, principalmente, a primeira vez que senti que estava, de fato, no meu caminho.
Depois do mestrado, veio o doutorado e com ele, a vontade de ir além. Decidimos desenvolver um tratamento inovador para pessoas pós-AVC.
Estudei profundamente os jogos sérios e percebi que eles poderiam transformar o processo terapêutico.
Mas algo me incomodava: muitos artigos relatavam que esse tipo de tecnologia desumanizava o atendimento — e eu não queria isso
Comecei, então, a buscar formas de humanizar a interação entre paciente e sistema, de fazer com que a tecnologia não substituísse o vínculo, e sim o amplificasse.
Na época, meu artigo científico foi o único no mundo a abordar o tema sob esse olhar. Ali nasceu algo maior do que um projeto acadêmico, nasceu o sentido do meu trabalho, provar que a tecnologia pode ampliar o cuidado.
O resultado dessa pesquisa foi emocionante. Os pacientes melhoraram não só na função, mas na qualidade de vida. Um homem, que não levantava o braço há dez anos, conseguiu a proeza de erguê-lo dormindo
A mídia descobriu. Vieram matérias, entrevistas, aplausos e prêmios. Mas também vieram as sombras.
O sucesso chamou atenção e, com ele, vieram resistências. Alguns nomes influentes na faculdade não receberam bem o destaque do projeto.
No lugar do diálogo e da troca, surgiram disputas de ego e boatos que minaram o ambiente.
Foi um choque perceber como, em um espaço que deveria cultivar o saber, tantas vezes o conhecimento é tratado como território de poder…
Na época, eu amamentava e minha filha adoecia com frequência. Eu achava que era ela que estava doente, mas, na verdade, era eu
O estresse, o medo, o assédio silencioso, tudo me adoecia por dentro. Parei de amamentar. E foi só então que ela começou a melhorar.
Terminei o doutorado em frangalhos, com a sensação de que precisava me curar e sair daquele ambiente, mesmo tendo recebido apoio irrestrito dos amigos e familiares.
Fiquei um tempo afastada da universidade. Até que outro professor me chamou para um pós-doutorado, agora com jogos voltados para pessoas com doença de Parkinson. Aceitei.
Fiz dois no Brasil e, depois, tive a oportunidade de ir para a França. Lá, percebi que não queria mais a docência tradicional. Nem abrir uma clínica para atender poucas pessoas por vez.
Eu queria levar o cuidado mais longe. Queria ampliar o impacto. Mas ainda não sabia como
Na volta ao Brasil, reencontrei meu ex-orientador de mestrado e doutorado, Eduardo Lázaro. Ele me contou sobre um projeto que estavam desenvolvendo com a RNP: a Reabnet. E me convidou para a equipe.
A Reabnet foi idealizada para ser uma plataforma de telerreabilitação que unia tudo o que eu havia estudado e acreditava: tecnologia, acessibilidade e propósito.
Era a chance de levar meu doutorado a outro patamar, transformando conhecimento científico em algo que realmente chegasse às pessoas.
Recusei outro pós-doutorado e mergulhei de cabeça no projeto. Seis meses depois, abrimos a empresa e eu me tornei administradora, CEO e empreendedora, papéis que não imaginei exercer
Foi ali que entendi que estava onde devia estar. Toda a minha trajetória me preparou para isso, transformar cuidado em inovação e inteligência artificial para democratizar o acesso à tecnologia de ponta.
Aos 40 anos, percebo hoje que a Reabnet nasceu das minhas cicatrizes, de tudo o que doeu. Mas também de tudo o que curei em mim.
Nosso propósito é democratizar a prevenção em saúde e a reabilitação, levando ciência e tecnologia para dentro dos lares, hospitais e clínicas, para quem precisa e não tem acesso.
Tudo o que criamos funciona em celulares, tablets ou notebooks conectados à internet, simples, humano e acessível.
Impactamos hospitais universitários, clínicas, planos de saúde e, agora, começamos a levar nossa tecnologia para fora do Brasil
Mas o que mais me emociona ainda é o mesmo de sempre: ver alguém recuperar um movimento, um sorriso, uma esperança.
O cuidado sempre me escolheu. Demorei um tempo para entender que ele também podia ser inovador.
Aprendi que cuidar é transformar. E que a ciência e a tecnologia, quando se aproximam das pessoas, podem ser o mais humano dos gestos.
Isabela Marques, 40, é CEO da Reabnet Tecnologia, healthtech brasileira que une inteligência artificial e jogos sérios para tornar a prevenção em saúde e a reabilitação mais acessível, engajadora e democrática.
Fernando Goldsztein conta como fundou uma organização para financiar ensaios clínicos depois que o filho foi diagnosticado com um tumor no cérebro – e por que é urgente discutir o “vazio” na pesquisa científica do meduloblastoma pediátrico.
De uma hora para outra, Otavio Melo viu seu pai preso dentro do próprio corpo devido a um grave AVC. Ele conta como pesquisou alternativas e desenvolveu o Comunicar, uma plataforma interativa para tornar a comunicação mais acessível.
Aos 17, Renan Treglia começou a perceber sintomas como desequilíbrio e falta de coordenação. Ele narra sua saga até receber o diagnóstico de Ataxia de Friedreich e como a doença degenerativa impôs novos limites (que ele aprendeu a expandir).
