Para tudo. A gente passou todo esse tempo olhando o Brasil do jeito errado

Adriano Silva - 12 mar 2021
(imagem: Pexels).
Adriano Silva - 12 mar 2021
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A gente está analisando o Brasil de modo injusto.

A gente olha para os Estados Unidos e pensa – o Brasil tinha todos os recursos para ter construído essa estatura e esse dinamismo.

A gente olha para a China e suspira – o Brasil tinha todas as condições para crescer desse jeito.

A gente olha para o Japão e diz – se os caras fizeram tudo isso numa ilhota pedregosa, tendo tomado duas bombas atômicas na cabeça, imagina o que fariam se sua matéria-prima fosse um país como o nosso.

A gente olha para a Coreia do Sul, paupérrima há apenas 50 anos, quando vivíamos o “milagre econômico” brasileiro, e se espanta com o fato de que hoje o PIB per capita da Coreia é de 30 mil dólares, enquanto o do Brasil é de 11 mil dólares 

Ou seja: em cinco décadas, os cidadãos coreanos saíram lá de trás, nos ultrapassaram e se tornaram três vezes mais ricos do que nós.

É um enorme tapa na cara. 

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Então, olhando para tudo que poderíamos ter nos tornado, para tudo que não conseguimos alcançar, para todas as oportunidades que perdemos, para todo o potencial que jogamos no lixo ano após ano, eleição depois de eleição, é bem difícil não nutrir um belo complexo de vira-latas. 

É difícil não achar que o Brasil, de fato, não deu certo. Que o país micou, que o Brasil não tem jeito, que somos um abacaxi insolúvel.

Mas… peraí. Pensa comigo.

***

Em 132 anos de República, tivemos 40 anos de ditadura. Ou seja: para cada dois anos e pouco de autodeterminação, tivemos um ano de jugo. 

É como se, ao longo dos seus 245 anos desde a independência, os Estados Unidos tivessem vivido quase 80 anos sob o tacão.

Fora que a própria República brasileira nasceu de um golpe militar. 

E o que se seguiu foi um conluio entre as oligarquias agrárias de São Paulo e Minas Gerais – o que se convencionou chamar de “Política do Café com Leite”.

Ou seja: o Brasil que emergiu de 1889 e que entrou no século 20 não era exatamente uma democracia. Pouca gente votava e o jogo era de cartas marcadas.

A ideia não era promover o “progresso”, termo bordado na bandeira, mas, ao contrário, conservar o atraso. O plano nunca foi evoluir como nação, mudar para melhor, formar cidadania – mas, sim, manter tudo e todos nos seus devidos lugares, e segregar o acesso à prosperidade

Subtraia 20 eleições da história estadunidense. Imagine o Grande Irmão do Norte vivendo mais de três quartos de século em regime de exceção. Pior ainda: imagine três gerações de americanos nascendo, crescendo, sendo educados, vivendo e trabalhando num regime ditatorial.

Não só os Estados Unidos seriam muito diferentes – mas o mundo também seria outra coisa.

Ou seja: o Brasil conseguiu se tornar uma das maiores economias do mundo apesar do seu sistema político desenhado para eternizar privilégios e dos seus políticos interessados apenas em garantir o seu.

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Falando nisso: já percebeu que, em quase um século e meio de presidencialismo, nós tivemos apenas quatro líderes dignos de nota? 

Independente de você concordar ou não com suas visões e seus atos, há quatro administrações que tiveram peso histórico, que mudaram o Brasil, que construíram uma obra e deixaram um legado: Vargas, JK, FHC e Lula.

E acabou. O resto é xepa. É gentinha. É irrelevância. 

Quatro em 38 mandatários. É muito pouco. 

Significa que só dez por cento das nossas administrações serviram para alguma coisa. Todas as outras serviram apenas a si mesmas. E aos seus amigos.

Nove em cada dez governos no Brasil oscilaram entre a corrupção e a inépcia. Ou o cara era ladrão ou o cara era incompetente. E, em muitos casos, o time presidencial conseguiu ser as duas coisas ao mesmo tempo – desonesto e incapaz, bandido e burro

Uma linha do tempo com essas características decretaria a falência de uma empresa num par de anos. Arruinaria para sempre o patrimônio de uma família. Rebaixaria um clube para série D. E, claro, inviabilizaria um país, o colocaria na miséria, decretaria a guerra civil e o fim das instituições. 

Porque simplesmente não é possível manter por tanto tempo um nível tão grande de ineficiência e de improbidade na gestão dos recursos – por mais abundantes que eles sejam. 

Ainda assim, contra tudo isso, o Brasil conseguiu se tornar um dos mercados mais relevantes do mundo em uma série de indústrias.

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Por fim: que país resistiria a seis anos de Dilma, dois anos de Temer e, até aqui, dois anos e 66 dias (e contando cada hora desse pesadelo) de Bolsonaro? 

Essa sequência de catástrofes políticas e econômicas que temos enfrentado desde pelo menos 2013 – portanto já há oito anos – é coisa para quebrar a Alemanha, para colocar por terra a Inglaterra, para nocautear a França.

É preciso muita pujança para seguir adiante. Empreendendo, investindo em startups, falando em Nova Economia, inovação, negócios criativos, pauta ESG

Em qualquer outro lugar do mundo, coisas como “hoje eu estou saudando a mandioca”, “tem que manter isso aí, viu?” ou a recente saraivada de coices – “só se for na casa da tua mãe”, “vão para a puta que os pariu”, “o Brasil tem que parar de ser um país de maricas”, “eu não sou coveiro” etc. –, vindas da boca da principal autoridade do país, teriam acionado uma espécie de circuit breaker nacional

O Brasilzão, de algum modo, segue. Não sei como, mas ele vai adiante. A gente continua trabalhando, estudando, tocando a vida – e votando errado. 

As empresas continuam produzindo, as quitandas ainda têm produto na prateleira, às terças tem feira na rua perto da sua casa. O Brasil resiste. Incrivelmente. A vida, de algum modo, continua.

Como se tivéssemos aprendido a viver ao largo desses verdugos que nós mesmos, estupidamente, colocamos na posição de nos torturar e nos espoliar.

(Esses caras, infelizmente, refletem quem somos. Talvez por isso evitemos olhar. E cobrar. Ou talvez adoremos olhar – mas só de esguelha. Como semelhantes que amamos odiar.)

***

Por tudo isso, digo que estamos acessando o Brasil pelo lado errado em nossas análises. 

Não se trata de tudo que poderíamos ser hoje se tivéssemos feito a coisa certa. Mas do tanto que conseguimos realizar mesmo tendo feito todas as cagadas possíveis no percurso que nos trouxe até aqui

Fazemos tudo que podemos para inviabilizar o país – de defecar na água que bebemos a roubar merenda de criança, de negar a importância das vacinas a furar a fila da vacinação. 

Só para, de relance, com os olhos injetados de raiva e de remorso, de decepção e de autocomiseração, de desespero e esperança, nos regozijarmos com o fato de que o Brasil se mantém de pé. Apesar de nós e do peso do caos que lhe impomos.

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV A República dos Editores.

 

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