Você usaria um brinco de tampinha de plástico ou um colar de sacolinhas de supermercado? Falando assim, pode parecer estranho ou brega… Nada mais distante, porém, da proposta da I Do Design, marca autoral fundada em 2019 por Anna Boechat, 38.
Baseada em Curitiba, a designer gráfica transforma lixo em peças únicas e sustentáveis a partir de processos que envolvem a coleta desse material, sua higienização, o derretimento do plástico e sua modelagem e acabamento, até chegar ao resultado final, belas peças com design exclusivo.
São brincos, colares, pulseiras e braceletes, tudo feito artesanalmente e de forma sustentável. Anna chama as peças de ecojoias:
“Não trago o ouro, mas meu trabalho é super minucioso, então não gosto de chamar de bijuteria, menos ainda de biju, porque parece que é algo que a pessoa vai pagar barato, e não vai ter nenhum acabamento…”
Segundo a empreendedora, profissionais ligados ao setor de joalheria ainda torcem o nariz para o nome “ecojoias”. Para Anna, entretanto, o termo se aplica perfeitamente ao trabalho que ela desenvolve e aos processos envolvidos.
Por mais de dez anos, Anna atuou em agências e escritórios de design, na parte de criação.
Ela conta que gostava do que fazia, mas sentia a falta de um propósito maior. Além disso, havia duas limitações:
“Uma delas era só estar na frente do computador e não ver o resultado final daquilo que eu fazia, a parte palpável. A outra era trabalhar para os outros e não ter autonomia de verdade”
Na última empresa para a qual trabalhou, de São Paulo, ela conta que criava embalagens e chegou a oferecer alternativas mais sustentáveis, ideias para repensar o produto, mas não foi ouvida.
Em 2017, de casamento marcado, ela e seu então noivo decidiram confeccionar tudo o que podiam — do convite à decoração — de forma artesanal.
“Isso aflorou minha vontade de fazer algo com as próprias mãos. Depois de casada, voltei a ilustrar, algo que já praticava na faculdade e sempre gostei”
Aos poucos, Anna foi recuperando esses prazeres que vinham desde sua infância, O pai, já falecido, professor secundário, e a mãe, professora do ensino primário, sempre gostaram de pintar, e desde pequena ela teve contato com esse universo.
A designer também passou a bordar. Numa dessas experiências fez, com as linhas, o cabelo de uma menininha de costas, e ficou curiosa para saber como seria o rosto dessa garota. Daí veio a ideia de costurar bonecas de pano, muitas delas usando retalhos.
Assim, nasceu a marca Pandora Dolls, que durou apenas três meses, mas ajudou a inserir Anna no universo empreendedor. Ela chegou a produzir 40 exemplares e levar para uma feira artesanal em São Paulo. O produto, porém, era mais difícil de fazer e vender, por se tratar de um item de decoração.
Ao mesmo tempo, Anna começou a conversar com amigas que tinham marcas autorais em Curitiba e sentiam falta de acessórios legais para compor seus looks.
“Como eu gostava de acessório e estava nessa de ficar testando, propus criar algo e comecei com resina”, diz. “Era legal ver algo que não tinha forma tomando corpo, mas ainda não era isso que eu queria.”
A sugestão para usar um material sustentável partiu das próprias amigas:
“Elas propuseram que eu tentasse aproveitar algo de descarte. Aí foi rapidinho para eu pensar no plástico, porque é algo que a gente tem em abundância”
Anna imaginou que não seria difícil trabalhar e derreter esse material porque lembrou de uma vez em que estava usando a chapinha no cabelo e o aparelho, quente, foi capaz de retrair uma sacola plástica que estava por perto. Ela foi então em busca de estudos sobre o assunto.
Em pesquisas na internet, a designer descobriu um projeto holandês de código aberto, o Precious Plastic, que ensina quais os tipos de plástico são seguros para trabalhar, as temperaturas adequadas e os códigos dos maquinários para quem quer construí-los.
“É um tipo de comunidade em que você consegue indicar o que faz, se você sabe produzir esse maquinário ou cria o produto final ou está no meio da cadeia, higienizando o plástico, triturando esse material, e quer vender esse insumo para quem vai fazer”, conta.
O projeto de código aberto é mais voltado para placas de plástico maiores, mas Anna foi adaptando as ideias aos acessórios, que no começo levavam mais resina do que plástico (hoje ela já consegue fazer peças 100% de tampinhas e sacolas e usa a resina apenas para dar um acabamento de brilho).
Para começar sua produção, aliás, ela usou um equipamento que já tinha em casa e utilizava para projetos de design, e hoje calcula que custe cerca de 1 500 reais. Depois, adquiriu uma serra tico-tico.
Paralelo a isso, em 2019, a designer fez um curso de capacitação do Sebrae para se aprofundar na área de empreendedorismo. No final, teve que apresentar um produto para uma banca avaliadora formada por pessoas que vendem suvenires na cidade. Ela resolveu mostrar dois.
“Fiz uma boneca com caracterização de gralha-azul, símbolo do Paraná, e os acessórios, por saber que Curitiba é conhecida por sua preocupação ambiental. A boneca passou e o acessório, não”
Mas Anna não desanimou e na mesma época se inscreveu para participar com a I Do Design de duas feira em Curitiba. “Percebi a receptividade das pessoas e que todo mundo ficava muito impressionado em saber que aquilo era feito de sacolas e tampinhas. Aí vi que isso era minha validação e resolvi investir no negócio.”
Nesse meio-tempo, ela continuou se dedicando ao seu trabalho de designer e à nova marca, até que chegou a pandemia e, no final de 2020, Anna tomou uma decisão.
“Senti que não estava feliz. Achei que ia conseguir fazer as duas coisas ao mesmo tempo, mas empreender é muito intenso. Aí meu marido disse que tinha condições de nos bancar naquele momento, falou ‘se joga, faz o que você acredita’, e desde então, estou focada na I Do Design.”
Para produzir os itens da I Do Design, tudo começa com a coleta das tampinhas e sacolas, que geralmente chegam a Anna por meio de doações de amigos e familiares.
“Eu mesma vou coletando também, porque quando você para para prestar atenção nisso percebe a quantidade de coisas à nossa volta feitas de plástico. Saio com a cachorra para passear e volto com os bolsos cheios de tampinha. Nos meus bolsos não tem dinheiro, só tampinha!”
Ela conta que regularmente também recebe doações da Associação Amigas da Mama, de Curitiba, que ajuda mulheres passando pelo tratamento de câncer de mama. “As voluntárias me perguntam qual cor estou precisando mais, separam para mim e o resto vai para o projeto. Aí eu faço a coleção e doo peças para elas poderem rifar, e assim consigo ajudá-las também.”
Após a coleta, os itens são higienizados (no caso das sacolas é só armazená-las), separados por cor e, na hora da produção, derretidos em uma prensa térmica ou forno. A designer diz que é possível misturar tampinhas e sacolas na hora do derretimento, mas elas precisam ser do mesmo tipo de plástico (os que ela usa são o PP 5 e o PEAD 2).
Anna conta que poderia utilizar plásticos maiores, mas que ainda não tem o equipamento necessário para triturá-los, por isso prefere as tampinhas e sacolas (também mais fáceis de armazenar). Todo o maquinário que ela tem hoje, aliás, foi adaptado ou produzidos para esse fim, mas sem seguir especificamente a linha do Precious Plastic.
Ela diz, por exemplo, que além de um forno próprio usa uma prensa de serigrafia para achatar as tampinhas e derretê-las; e calcula que desde o início já deva ter investido cerca de 30 mil reais em equipamentos. Sobre o processo de derretimento, afirma:
“Basicamente trabalho com processo de calor e pressão. Usamos as cores que queremos ver no fim, porque não adicionamos nenhum pigmento, e muitas vezes não sai do jeito que imagino. Deixo muito o processo levar a gente, mostrar no que vai dar”
Na sequência, Anna passa à modelagem, que pode ser chapada ou ter mais volume, lembrando uma pedra. “Em seguida vem o acabamento e tem aquelas peças em que passamos uma camadinha de resina para dar um brilho, depois elas vão para a prensa e o corte — e todas são lixadas e polidas.”
Há ainda um toque final: “Esse é um segredinho nosso, que é a adição de um detalhe metalizado, que é um produto de descarte também, mas não revelo o que é.”
A parte de metal das correntes e outras estruturas metálicas é feita em liga ZAMAC (sem níquel), com banho dourado ou prata. Nos brincos, os pinos e tarraxas são em aço ou metal livre de níquel e com banho em ródio e camada antialérgica.
Um ponto interessante é que na tag que acompanha cada peça, Anna coloca quantas tampinhas ou sacola foram utilizadas para produzir aquele acessório.
Desde o começo da I Do Design, Anna sempre fez tudo sozinha, inclusive as fotos e divulgação da marca. Ela mesma, aliás, é a modelo em várias das fotos das redes sociais.
“Muitas vezes, a única hora que sobrava para fotografar era de noite, então eu mesma servia de modelo. E os seguidores achavam legal ser quem fazia as peças ali com os acessórios. Mas em algum momento se eu puder ter outras pessoas e diversificar o perfil, com outros corpos e peles, vai ser bacana.”
Antes, ela divulgava seu trabalho apenas no Instagram, mas no começo do ano passado, incomodada com a entrega dessa rede social, resolveu criar um perfil no TikTok e postar ali os conteúdos que já tinha produzido.
O resultado, segundo ela, foi muito melhor. “Fui de quase nada de seguidores para 40 mil. e aí continuou pingando um pouco no Instagram. Eu fazia vídeos do processo de produção e deixava para narrá-los no TikTok e estava postando no Instagram de vez em quando.”
Até que uma pessoa que estava fazendo um TCC em que citava a I Do Design pediu que Anna enviasse para ela um vídeo do processo de produção sem o logo do TikTok. Ela conseguiu a edição original e resolveu aproveitar para publicá-la no Instagram, no final do ano passado.
“Este vídeo viralizou, hoje já está com mais de 1 milhão de visualizações, e fez com que meu perfil no Instagram passasse de 5 mil e pouco seguidores para quase 100 mil. Aí percebi que as pessoas gostam de conhecer os processos”
A partir daí, Anna precisou contratar uma amiga para, primeiramente, dar conta de responder os seguidores nesta rede; depois, a amiga passou a ajudar a empreendedora na criação de conteúdo. E há dois meses, o irmão de Anna, Arthur Boechat, também entrou para a equipe.
“Ele é contador, mas sempre gostou de trabalhos manuais e estava no mesmo processo que eu, insatisfeito com a carreira. Ensinei para ele todos os processos e o Arthur está mandando super bem. O pessoal estava comprando mais até as peças que ele criou do que as minhas!”
Com o sucesso, a designer viu as encomendas aumentarem e recebeu inclusive, no fim de 2022, um convite de parceria, produzindo mais de 2 mil peças para a marca de semijoias curitibana Zarpelon (veja o vídeo da campanha), que entrou com o acabamento em metal. Com o valor dessa encomenda, Anna conseguiu conquistar o próprio ateliê.
“Antes eu fazia tudo no meu apartamento. Era um pouco na sacada, no banheiro, na lavanderia, na sala, um pouco na casa da minha mãe”
Agora, ela diz que o espaço já está até ficando pequeno. “A gente está pensando em investir em maquinários que ajudem a fazer em quantidade um pouco maior para atender outros tipos de parcerias. Mas para investir nesses maquinários maiores, mais pesados e barulhentos, precisamos estar num lugar maior.”
Hoje, os brincos da I Do Design variam de 139 a 259 reais. Há colares entre 199 e 399 reais; já os modelos de pulseiras custam 199 ou 229 reais; e os braceletes, 229 reais.
Anna diz que já recebeu questionamentos sobre o preço dos seus produtos. Em parte, isso tem a ver com o vídeo que viralizou: se por um lado ajudou a marca a deslanchar, por outro, segundo Anna, o conteúdo pode ter criado uma percepção “simplista”, no sentido negativo, do trabalho que existe por trás da criação das joias.
“A edição faz parecer que tudo aquilo é algo muito simples, você estala o dedo e o negócio existe… e aí as pessoas não conseguem entender o valor daquilo, porque não veem o trabalho que dá — o esforço físico envolvido, de lidar com o calor, e o emprego de força”
Anna já fez até um post específico para rebater os comentários sobre a precificação: “Muitas vezes quem critica o preço não está criticando o valor do meu trabalho, mas está chateada porque não tem condições de comprar algo naquela faixa. É um exercício para mim pensar nisso…”
Além de refletir a mão de obra e o investimento envolvidos, o preço das ecojoias, segundo ela, também tem um componente estratégico:
“Não quero que vejam as peças como algo que pode ser jogado fora daqui a pouco. A ideia é justamente mostrar que são peças duráveis. Se é barata, a pessoa se cansa, não dá mais bola e descarta.”
A empreendedora afirma que já recebeu pedidos de seguidores para dar um curso ensinando sua técnica.
“Estamos começando a desenhar um roteiro para o online, mas ao mesmo tempo queria primeiro fortalecer um pouco mais a minha marca”, diz.
Anna gostaria de dar um curso presencial, algo difícil no momento.
“Sei que é importante ter alguém acompanhando, como percebi ensinando meu irmão; e no presencial, a pessoa não precisa investir num maquinário de cara, pode fazer primeiro testes… Mas para isso, a gente precisa ir para um espaço maior”
Ao ensinar outras pessoas a produzir ecojoias, Anna poderia engajar mais gente na sua missão de transformar tampinhas usadas em algo útil — e ampliar o impacto positivo que a I Do Design traz para o meio ambiente:
“Mesmo se a gente parasse de usar o plástico hoje, isso já seria um problema”, afirma. “Precisamos pensar que fim a gente pode dar ao [plástico] que já está circulando.”
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