Paulo Veras ajudou a fazer da 99 o primeiro unicórnio do Brasil. Confira os bastidores desta história cheia de desafios

Paulo Veras - 4 set 2020
Paulo Veras, cofundador da 99.
Paulo Veras - 4 set 2020
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por Paulo Veras

Em 2004, escrevi, sozinho, meu primeiro livro: Por Dentro da Bolha. Desta vez, resolvi optar por uma estratégia diferente.

Unicórnio Verde-Amarelo — Como a 99 se tornou uma start-up de um bilhão de dólares deu bem mais trabalho do que eu imaginei no primeiro momento. Mas posso dizer com segurança: o livro valeu cada minuto investido nele.

Junto com a jornalista Tania Menai, fiz dezenas de entrevistas com pessoas que tiveram papel relevante na construção desse sonho. A própria Tania me entrevistou mais de 15 vezes, e as horas de relatos foram contadas em primeira pessoa. 

Escrevi o livro porque acredito que ele possa ajudar outros empreendedores e interessados em geral no tema a aprender com os erros dos outros. E a reconhecer que empreender não é fácil para ninguém.

Após um final feliz, é muito fácil esquecer que quase quebramos algumas vezes, que passamos por períodos de fortes provações, moral abalada… Problemas que qualquer empreendedor conhece

Recontar essa jornada foi uma viagem no túnel do tempo, ainda que recente. Tudo aconteceu rápido (talvez até demais), entre 2012 e 2018.

Alegria, desespero, realização, frustração ou pura diversão: ao tocar o projeto do livro, pude relembrar os principais momentos da trajetória de empreender a 99. Colocando, em perspectiva, cada decisão difícil, cada obstáculo vencido, cada vitória suada. 

Na narrativa, destaco três elementos fundamentais para um negócio dar certo: clientes, time e crescimento. Qualquer empreendedor que busque estes três elementos com paixão e determinação vai avançar muito — e aumentar demais as chances de chegar a algum lugar bem melhor do que o ponto de partida

Minha dica: monte de um time excepcional, entregue uma experiência impecável e busque cadência de crescimento, terminando cada semana melhor do que começou.

O mais difícil não é concordar com esta ideia — e sim como liderar estas prioridades no dia-a-dia. Não há fórmula pronta, mas diversos métodos que ajudam (e são cobertos em detalhes no livro).

Espero que a leitura traga ânimo, ferramentas e confiança a todos que buscam o sucesso em suas jornadas. A seguir, compartilho um trecho que selecionei especialmente para os leitores do Draft.

 

O paraíso das fraudes

A Uber entrou no Brasil pelo Rio de Janeiro em 2014, um mês antes da Copa do Mundo. Pedro foi para lá testar. Fez doze corridas e escreveu um relatório enorme. Ele diz que a experiência foi muito instrutiva para a carreira dele e para a 99.

Na época, só estava disponível o serviço Uber Black, com carros mais sofisticados, o que nos preocupava pouco. Muitas pessoas, incluindo o Pedro, não acreditavam que um passageiro em sã consciência entraria no carro de um estranho. No Brasil os hábitos são diferentes; nos Estados Unidos, pega-se carona até na estrada.

Naquele ano, a chegada da Uber não teve impacto para nós. A 99 continuou crescendo, tudo azul nos dados de operação, apesar da falta de mais investimento. O nosso problema era outro.

Algumas quadrilhas começaram a atacar o sistema da 99, o que nos forçou a sofisticar significativamente as medidas antifraude. Funcionava da seguinte forma: alguém registrava um cartão clona do no aplicativo da 99. Na hora do pagamento, o cartão passava sem problemas, porque o dono ainda não tinha se dado conta da clonagem. O bandido combinava com o motorista: “Você me leva até a esquina, computa uma viagem de quinhentos reais, eu te pago duzentos e fico com o restante”.

Com a cumplicidade do motorista, o bandido conseguia tirar dinheiro do sistema, porque o taxista fechava a corrida por quinhentos reais. A 99 cobrava a corrida no cartão, autorizava a transação e a gente pagava o motorista.

Um ou dois meses depois, uma pessoa ligava para a operadora do cartão, com uma fatura de 2 mil reais de corridas da 99. Só então percebia que o cartão estava clonado. A operadora do cartão cancelava a fatura e cobrava o valor da 99, atrasado e retroativo.

De fato, colocávamos o risco todo para dentro de casa. Foram muitas falcatruas. O volume de fraudes cresceu rapidamente, nos assustou e colocou a nossa empresa inteira na corda bamba. O Brasil é o paraíso da fraude.

Aos poucos, fomos nos aprimorando em relação ao problema. Sabíamos que esse tipo de falcatrua precisava de passageiro e motorista para acontecer. Quando um não quer, dois não brigam, como se diz.

Passamos a observar os motoristas com corridas suspeitas. Tínhamos o itinerário, então podíamos avaliar se o taxista havia cobrado preços exorbitantes por trechos curtos. Se ele rodou três quarteirões por cem reais, algo estava errado. O esquema só funcionava na maquininha, em dinheiro não fazia sentido — ele teria de pagar de verdade.

Montamos um time antifraude permanente, que se tornou o embrião do time de segurança. Aproveitamos um pouco desse conhecimento que adquirimos contra fraudes financeiras e o aplicamos a problemas mais graves, como assaltos e latrocínios.

Comportamentos ilegais, do assalto à mão armada à clonagem de cartão, têm coisas em comum. Foi um dos times mais fortes da 99, com umas cinco ou seis pessoas de diversas áreas. Conseguimos reduzir as fraudes ao mínimo. Elas sempre existirão, mas é preciso controlar o suficiente para caber dentro do seu curso de transação.

Um sistema excessivamente rigoroso, que anula a possibilidade de fraude, acaba causando problemas para os passageiros honestos, recusando transações legítimas sem justificativa, e faz os clientes fiéis abandonarem a plataforma.

É preciso controlar, mas também ter uma tolerância para fraudes, sob risco de comprometer a lucratividade do negócio

Quando sofremos uma avalanche de fraudes, além do dinheiro perdido, a Visa e a Mastercard também nos multaram. Quando o nível de fraude era alto, as operadoras enviavam uma notificação, cobravam uma quantia exorbitante, de 200 mil ou 300 mil reais, e avisavam que se não baixássemos a percentagem de fraudes nos meses seguintes iriam recusar todas as nossas transações.

Quem tem cerca de 2,5 por cento de transações fraudulentas recebe uma advertência. Quem passa de uns cinco por cento é excluído. Mas não ajudam a lidar com o problema, não fazem treinamento, não disponibilizam ferramentas. Apenas jogam a bomba no colo da empresa.

Alguns anos depois, o presidente global da Mastercard Global veio ao Brasil e chamou alguns clientes para um almoço. Ele nos perguntou como a Mastercard poderia nos ajudar. Respondi que seria ótimo se nos ajudassem com fraudes, algo novo para nós, ou organizassem uma oficina para treinar nossos funcionários. Seria mais produtivo do que mandar uma multa e ameaçar de exclusão.

“Desenvolvemos um dos primeiros sistemas de pagamento de celular de verdade do Brasil. Apanhamos um pouco com isso. Mas enquanto levávamos surra dos bandidos, apanhávamos da Mastercard também”, eu disse. Ele ficou chocado. Mas o auge da crise já tinha passado.

É compreensível que para a Mastercard um cartão clonado gere um transtorno. O cliente fica bravo, e a reemissão do cartão significa um custo extra para eles. Ainda que a operadora de cartão não tenha necessariamente o custo financeiro, porque ela pode repassar isso para terceiros, é péssimo ter parceiros que estão dando índices altos de reclamação. Por isso criaram esses procedimentos.

Uma das coisas de que os americanos gostavam na Uber, por sinal, era a falta de preocupação com pagamento. Eles registram o cartão de crédito no aplicativo uma vez e saem do carro sem precisar colocar a mão na carteira a cada corrida. O processo de pagamento foi eliminado — ficou transparente e automático. Eles valorizam demais essa experiência. Mas o brasileiro não.

A gente ofereceu algo equivalente aqui e, ainda assim, quase todo mundo optava por pagar diretamente no táxi, em dinheiro ou pela maquininha do motorista.

Talvez fosse o hábito de pagar em dinheiro, ou o medo de colocar o número de cartão no nosso aplicativo, por causa de clonagem ou falta de segurança. Esse medo era infundado, porque era bem mais seguro colocar o cartão no nosso aplicativo do que na mão de outras pessoas ou em uma maquininha em qualquer estabelecimento.

O Brasil é o país em que mais se usa cartão de débito para pequenas despesas, seja na padaria ou no táxi. No resto do mundo, a maioria das pessoas usa cartão de débito para sacar dinheiro, enquanto o cartão de crédito é o preferido para comprar e pagar por produtos e serviços.

O Brasil ainda tem a mentalidade da época da inflação, então o débito é uma solução. Mas para isso é necessário o uso da maquininha de cobrança dentro do táxi — o aplicativo só cadastra o cartão de crédito. Na época, menos de um terço dos táxis em São Paulo tinha esse equi pamento (hoje aceitar cartão é obrigatório). No Rio de Janeiro era pior ainda, menos de dez por cento dos motoristas cobravam em cartão.

 

Paulo Veras é empreendedor e investidor, e fundou o aplicativo 99 com Ariel Lambrecht e Renato Freitas. O livro Unicórnio Verde-Amarelo – Como a 99 se tornou uma start-up de um bilhão de dólares é publicado pela Portfolio Penguin, e está disponível em ebook na Amazon, Apple, Google Play, Kobo e Cultura. E em versão impressa, pré-venda na Martins Fontes

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