Por que os brasileiros são melhores quando estão no exterior do que quando estão no Brasil?

Renata Velloso - 28 jul 2015Renata Velloso: "emigrei há quatro anos para os Estados Unidos, com marido e três filhas. E descobri que o ambiente social, determinado por nossas ações, também determina o modo como agimos".
Renata Brunetti é formada em Design, mas atuou no setor de captação de recursos para ONGs por 20 anos, até entender que poderia ajudar o setor de impacto a se desenvolver através da comunicação.
Renata Velloso - 28 jul 2015
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Por Renata Velloso

 

Quando eu e meu marido decidimos nos mudar para os Estados Unidos, quatro anos atrás, entre as nossas principais motivações estava a vontade de proporcionar às nossas três filhas – na época com 10, 7 e 5 anos – a oportunidade de viver em outra cultura e aprender uma nova língua.

Chegamos cheios de sonhos e também com alguns medos – por exemplo, a dificuldade de adaptação das meninas na nova escola. Meu marido conseguiu uma transferência pela empresa, então contamos com algumas facilidades, como visto de trabalho e ajuda financeira para a mudança. No meu caso, profissionalmente, a situação era menos confortável: tinha acabado de me formar em Medicina (uma troca de carreira, eu havia trabalhado no mercado financeiro) e, portanto, não tinha a possibilidade de exercer a minha profissão aqui logo que chegamos.

Com o tempo, instalados na região do Vale do Silício, fomos percebendo que os medos não tinham muito fundamento – e também que os sonhos nem sempre são cor-de-rosa.

Nossas filhas se acostumaram rapidamente à nova realidade. Fizeram amigos na nova escola e em menos de seis meses já estavam falando inglês melhor do que eu – e sem sotaque! Do meu lado comecei a trabalhar com tecnologia para saúde, uma área quente nesse lugar que respira inovação. Mas muitas coisas aqui nos Estados Unidos são desafiadoras para quem vem do Brasil.

Em São Paulo, a gente contava com a ajuda de duas funcionárias, uma babá e uma arrumadeira que vinha aos finais de semana. A família toda era meio dependente dessa ajuda. Uma vez, minha filha mais velha, então com 10 anos, falou na escola que a culpa por ela não ter trazido a lição de casa era da babá, que tinha esquecido de colocá-la dentro da mochila. Isso é relativamente comum para uma família brasileira de classe média. Por aqui, o raciocínio que minha filha teceu é impensável.

Aqui não temos ajuda externa nenhuma, nem um dia por semana. E vivemos uma vida confortável, de classe média americana. Então todo mundo tem responsabilidades em casa. As meninas fazem a própria cama, arrumam seus quartos, limpam seus banheiros, guardam as roupas e tiram a mesa do jantar.

Elas são responsáveis também, é claro, por guardar a lição de casa e de levar seus materiais para a escola. Aliás, as professoras aqui recomendam que os pais não interfiram na lição de casa: a tarefa é encarada como uma responsabilidade da criança, não dos pais.

Se não é papel dos pais ajudar na lição de casa, participar da educação dos filhos, estando bem próximos da escola, é. Nossas filhas estudam em escola pública, algo que nem passava pela nossa cabeça no Brasil. A escola pública aqui tem o mesmo nível de uma boa escola particular no Brasil, mas isso só é possível com a ajuda dos pais, tanto em investimento de dinheiro quanto de tempo. Cerca de 10% do orçamento da escola pública são cobertos por uma fundação que recebe doações dos pais.

Além disso, os pais participam ativamente na sala de aula. Eu, por exemplo, sou responsável pelo programa de educação artística na sala da minha filha do meio e participo da aula de robótica, liderada por outro pai, na classe da minha filha mais nova. Não basta pagar, tem que participar. Ninguém fica só reclamando da diretora da escola ou do secretário de educação do governo – o negócio é arregaçar as mangas e ir lá dar a sua contribuição concreta para que o processo seja o melhor possível.

Uma das maiores vantagens de morar aqui na Califórnia, que é comum a outros lugares desenvolvidos, é a sensação de segurança. Uma das consequências disso é que as crianças têm muito mais liberdade para viver experiências sozinhas. Assim, crescem mais. Em São Paulo eu não deixava a minha filha ir a pé até a casa da professora de inglês, que ficava a duas quadras da minha casa, dentro do mesmo condomínio fechado! Aqui, as meninas vão para a escola a pé ou de bicicleta, andam pelo centrinho da cidade com as amigas, sozinhas, vão até a biblioteca ou a farmácia tranquilamente. Para um pai e uma mãe brasileiros, é preciso trocar de DNA para aprender a operar dessa forma.

Aqui também parece mais fácil e lógico ensinar valores corretos, como a importância de respeitar as regras e, principalmente, respeitar as outras pessoas. No Brasil, a gente chegava a duvidar se valia a pena ensinar as nossas filhas a fazer tudo certo se a maioria das pessoas faz tudo errado e onde quem tenta seguir as regras acaba passando por trouxa.

Isso tem efeito na própria conduta do adulto. Aqui, nós mesmos acabamos dando muito melhor exemplo, já que muitas vezes, no Brasil, nos permitíamos pequenas transgressões, como andar pelo acostamento quando estávamos atrasados. Aqui não há espaço para isso. Então somos cidadãos melhores, e, portanto, educadores melhores para nossas filhas.

No fundo, acho que nós, brasileiros, não somos diferentes dos outros povos do mundo. Mas o ambiente de impunidade e desordem, do qual participamos, faz com que nós e outros deixemos de respeitar as regras. Trata-se de um acordo social malfeito. Em vez de “eu ajo certo porque confio que você também agirá”, vivemos um regime de “vou defender o meu, ainda que às custas do outro, porque sei que o outro está pensando e agindo da mesma forma em relação a mim”. O que gera um círculo vicioso que só nos prejudica a todos.

Não somos vítimas do meio, porque somos nós que o construímos, mas ele de fato nos influencia. É assim que cada sociedade ensina às crianças, e a todo mundo, os valores que a regem. Assim como eu passei a me policiar muito mais para andar na linha aqui nos Estados Unidos, imagino que um californiano, se vivesse em São Paulo, a partir de determinado ponto se sentiria fortemente tentado a parar em fila dupla e não parar no sinal amarelo. O ambiente é determinado por nós. Mas ele também nos determina.

A perda das raízes e da convivência com as pessoas que amamos é a pior parte da vida do expatriado. Dá tristeza quando você percebe que suas filhas estão mais confortáveis conversando em inglês do que em português. A força da língua materna é menor do que a gente pensava – uma surpresa para nós. Se não fizermos um esforço (grande), em pouco tempo as crianças não se comunicarão mais em português.

Mais importante do que a língua é a perda de contato próximo com a família no Brasil, principalmente os avós, mas também tios, primos etc. Sem hipocrisia: mudar de país é uma decisão eminentemente egoísta, que vai provavelmente devastar emocionalmente as pessoas que ficam. Sim, existe Skype, Whatsapp e várias outras ferramentas que nos ajudam a não cortarmos todos os laços, mas não é a mesma coisa. O Skype não dá um abraço apertado e o Whatsapp, por mais que seja onipresente não pega a gente no colo quando precisamos. A intimidade diminuiu e há a construção de novas memórias e de novas histórias e de uma nova realidade, longe do Brasil, que não são acompanhadas. E vice-versa.

Mudar para outro país é sair da sua zona de conforto e de familiaridade. É trocar de hábitos e, de certo modo, reaprender a viver. Como sempre acontece quando você rompe com aquilo que lhe era habitual e óbvio, você aprende, você cresce, você ganha em autonomia e liberdade. Não sem algum sofrimento.

Tudo isso fica mais fácil quando você percebe que a comunidade a sua volta, muitas vezes ao contrário do que acontecia no seu país de origem, partilha dos mesmos valores do que você. Aí você se sente realmente em casa. Porque “casa” é isso – o lugar onde você se sente bem, parte integrante, onde aflora, às vezes para sua própria surpresa, o que há de melhor em você.

 

Renata Velloso, 41, é médica, administradora de empresas e mãe de três filhas: Luiza, 14, Julia, 11 e Clara, 9. Atualmente trabalha na criação de uma ponte entre o processo de inovação do Vale do Silício e a medicina brasileira.

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