“A vida é como um jogo de videogame: não dá para pular etapas”

Cristhiane Dagnoni - 31 mar 2017
Cris teve sua formação acadêmica no Brasil ignorada e precisou "voltar algumas casas" antes de finalmente conseguir o emprego que sonhara, na Harrods (foto acima).
Cristhiane Dagnoni - 31 mar 2017
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por Cristhiane Dagnoni

Quando tomei a decisão de deixar a Inglaterra e voltar para o Brasil, a primeira coisa que ouvi foi: “Sua maluca!”. Após sete anos morando em Londres, realizei o sonho de trabalhar, nos últimos dois, no Head Office da Harrods, e de construir a carreira internacional tão sonhada desde a minha chegada, resolvi voltar para o meu país e continuar minha vida profissional em São Paulo, para poder estar mais perto da minha família e dos meus amigos.

Sei que ter expectativas altas no mercado de trabalho brasileiro neste momento é muito ambicioso, mas a minha motivação é que empresas estejam buscando profissionais qualificados e com experiência profissional diversificada para ajudá-las a inovar em tempos de crise.

Confesso estar ansiosa com a minha readaptação ao país, mas estou otimista e acredito que posso fazer parte na construção de um Brasil melhor

Assim como consegui superar o grande desafio de fazer carreira no mercado altamente competitivo de Londres como estrangeira, acredito que posso ter uma carreira de sucesso em São Paulo como brasileira, mesmo com o Brasil em recessão.

Quando decidi vir morar em Londres, em 2010, eu também sabia que enfrentaria muitas dificuldades e que não teria nenhuma garantia de sucesso, mas a minha determinação e foco me fizeram reagir todas as vezes que eu me deparei com os altos padrões londrinos, que só dá chances para progredir na carreira a quem prova ser muito bom no que faz. Exemplo disso foi o lema da empresa do meu primeiro emprego: “Go the extra mile”, ou seja, vá além do esperado.

Nesses sete anos em Londres, tive a rara oportunidade de trabalhar por quase quatro anos na Harrods. Foi o melhor aprendizado na minha vida profissional, já que a empresa tem 168 anos de sucesso. Digo que foi rara porque não havia nenhum outro brasileiro na parte administrativa da empresa no período que estive por lá. Primeiro, passei 18 meses supervisora de uma loja. Saí, trabalhei em outras empresas e finalizei meu mestrado, e então voltei à Harrods já no departamento de Atacado e Franchising Internacional. Cobri a licença maternidade (de um ano) da Gerente de Vendas e Administrativo e, quando ela retornou, fui efetivada como Gestora Sênior de Vendas. No cargo, aprendi muito sobre operações de atacado, franchising e de comércio exterior.

Coincidência ou não, a realidade dos meus primeiros quatro anos na cidade, antes de conseguir o emprego na área dos meus estudos e me tornar uma “londoner”, foi uma fase de lutas constantes para eu não abrir mão do meu sonho de construir uma carreira na cidade, que dialoga com o ditado popular que diz que você somente se torna um londrino após quatro anos morando na capital britânica. Essa fase inicial foi muito mais complicada do que eu tinha previsto.

Quando cheguei em Londres, toda a minha formação acadêmica do Brasil e minha experiência como gerente e compradora de varejo foram totalmente ignoradas

Nessa época, completei cursos intensivos na área de Compras e Luxo com a intenção de melhorar as minhas possibilidades de conseguir um trabalho na área de administrativa no mercado de varejo em Londres. Infelizmente, não foi bem assim. Após aplicar várias vezes, sem sucesso, ouvi em um desses cursos que a experiência em lojas em Londres era um dos requisitos para compreender o mercado local e poder, então, trabalhar na área de cadeia de suprimentos de Varejo e Atacado. Compreendi que o meu primeiro passo deveria ser trabalhar em lojas na cidade, enquanto eu aprimorava meu inglês e fazia o mestrado.

Tive que começar do zero e preferi trabalhar para marcas famosas e para as melhores lojas de departamento de Londres, ao menos para aperfeiçoar o meu conhecimento em varejo. Mesmo que isso significasse ficar 8 horas por dia em pé, de salto, o que fazia eu me sentir sempre muito cansada e ter dor nas pernas. Me lembro de ter renunciado a várias festas e viagens porque precisava descansar e porque tinha pouco dinheiro sobrando para lazer.

Nesses primeiro quatro anos, precisei dividir casa com amigos para não ficar sem dinheiro e ter que abandonar tudo e voltar ao Brasil. Nas diversas vezes que pensei em desistir, pensava na frustração que eu carregaria por não ter lutado um pouco mais pelos meus objetivos e por todas as renúncias que fiz quando decidi vir para Londres.

Antes de vir para Londres, eu morava em Balneário Camboriú, uma cidade em Santa Catarina, muito conhecida como “a terra da magia” por suas lindas praias, vida noturna e bom clima. Eu tinha um emprego que me permitia ter um bom padrão de vida. Por este motivo, essa foi a primeira vez que tive que enfrentar pessoas me chamando de louca ou até mesmo de perdida. Me sinto uma vencedora por ter largado, nesta época, a minha zona de conforto em busca dos meus sonhos.

Ao chegar na Inglaterra, aproveitando minha graduação no Brasil em Administração e Marketing e meu MBA em Gestão Estratégica de Varejo, escolhi de cara a loja de departamento que mais vende por metro quadrado no mundo. Sim, a Harrods foi a primeira loja que apliquei para trabalhar como vendedora e — contrariando as todas as minhas certezas àquela época — não passei na seleção. Eles deram preferência para alguém que já tinha experiência como vendedora em Londres.

Me frustrei, mas acabei entendendo que para progredir profissionalmente, em Londres, é preciso levar cada etapa como um “stepping stone”, ou seja, um degrau para uma etapa mais avançada.

Demorei para perceber que a vida muitas vezes é como um jogo de vídeo game: não dá para pular etapas

Ciente disso, apliquei para outras lojas e acabei começando como vendedora na Hugo Boss. Após 10 meses trabalhando lá, apliquei para conseguir o trabalho de supervisora de vendas na Harrods. Só aí, finalmente, consegui realizar um dos meus primeiros objetivos na cidade. Depois de 18 meses na função, finalizei o meu primeiro ano do mestrado em Compras e Gerenciamento de Cadeia de Suprimentos e recebi um convite para ser Gerente da Acqua di Parma em outra loja de departamento, a House of Fraser. Era uma promoção e a oportunidade de trabalhar com perfumes de luxo. Aceitei e fui bem sucedida, tanto que oito meses fui transferida para a Selfridges, a segunda loja de departamento mais famosa da Inglaterra, para gerenciar pontos de venda e uma equipe três vezes maior.

Nesses dois anos em que eu passei cursando o mestrado em Londres, também fui chamada de maluca muitas vezes. Não são razão, pois foi um período extremamente difícil. Eu me sentia constantemente no limite físico e mental. Além de trabalhar cinco dias por semana em lojas, eu usava meus dois dias de folga para fazer as duas aulas semanais do mestrado. E, no meu escasso tempo livre, tinha que produzir artigos e trabalhos acadêmicos. Nesses dois anos, renunciei totalmente à minha vida social para dar conta de tudo.

Assim que conclui o mestrado, comecei a procurar trabalhos na área do curso e consegui trabalhar como gerente da conta do Grupo Marisa para a Elite Creations, que é um fornecedor de bolsas e acessórios. Minha formação em Londres e o fato de eu falar português me abriram esta porta. Mas a Harrods nunca saiu da minha cabeça. Depois de alguns meses, achei uma vaga em aberto lá, na mesma área dos meus estudos. Eu sabia das dificuldades e da concorrência, e pensei que eles jamais me contratariam para a vaga. Mesmo com poucas chances, apliquei para a vaga e, para a minha surpresa, consegui realizar um dos meus maiores sonhos desde que planejava vir morar em Londres: trabalhar na área administrativa da Harrods.

E foi como eu contei. Tenho consciência do quanto esses sete anos em Londres foram cruciais no meu desenvolvimento pessoal e profissional. Se eu tivesse que voltar atrás, apesar de tantas dificuldades, viveria todas essas fases novamente, pois me tornei um ser humano mais forte e uma profissional com uma visão muito mais ampla. Mais uma vez, é como o dito popular inglês de que “what doesn’t kill you, makes you stronger”, ou seja, o que nåo te mata, te deixa mais forte.

Agora, chegou a hora de encarar novamente meus medos e testar meus limites voltando para o Brasil

É nítido que o país enfrenta um de seus momentos mais difíceis, e que voltar, muito provavelmente para a maioria das pessoas, parece mesmo uma loucura, uma maluquice, como muitos disseram. Mas eu acredito que essa seja mais uma oportunidade, como as outras que tive e criei ao longo da minha vida.

Mais do que voltar,  quero poder dividir conhecimento, evoluir juntos com os desafios que o país enfrenta e, logicamente, crescer. Estou confiante e acredito que pode dar certo. Depois tanto tempo tentando e recomeçando, acabei percebendo que, sim, eu sou capaz de ir além do esperado (go the extra mile). Que venham os próximos desafios!

 

Cristhiane Dagnoni, 36, é administradora de empresas, especializada no mercado de varejo de luxo.

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