“Precisamos reensinar esses jovens a sonhar e ajudá-los a surfar a onda da vida!”

Rômulo de Lima de Oliveira - 17 jan 2020
No Lwandi Surf, o surfe tem um viés terapêutico. Não se trata apenas de uma prática esportiva, mas de falar de medos e desafios da vida.
Rômulo de Lima de Oliveira - 17 jan 2020
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por Rômulo de Lima de Oliveira

E lá estava eu rumando para o famoso limbo pós-faculdade e entrada no mercado de trabalho. Até hoje me pergunto: “O que exatamente pensei quando escolhi Engenharia Civil”?

Foram seis anos puxados que certamente me trouxeram ao lugar onde vivo hoje, Ponta do Ouro, em Moçambique, na África. E graças às aulas tediosas e ao arqueológico modelo educacional que, de alguma forma, ainda permanece nas nossas faculdades, acabei me apaixonando pela área da Educação, ou melhor, pelo desafio de transformá-la.

Já era final de 2018. Eu morava em Florianópolis, realizando o estágio final em bioconstrução, uma das únicas áreas que realmente me interessava dentro do vasto curso, quando recebi um convite que iria mudar a minha vida.

Gabriel e Gerson, amigos da faculdade, tiveram uma experiência impactante no início de 2017. Eles tinham ido à vila de Dondo, perto da cidade de Beira, em Moçambique, para ajudar comunidades locais que não tinham acesso a água potável.

Os dois me convidaram para retornar junto com eles para Moçambique. Gerson estava trabalhando no Sul do Brasil com Engenharia Civil e Gabriel, no setor financeiro em São Paulo. “Se você não quebrar esse ritmo corporativo agora, vai ser difícil sair depois”, foi uma das frases marcantes que Gabi me disse.

E por que eu? Depois que comecei a trabalhar com causas sociais durante a faculdade, isso simplesmente virou a minha paixão. De ONGs a negócios sociais, não importa, era com isso que eu gostaria de atuar, fazendo realmente diferença na vida das pessoas.

A ideia inicial era trabalhar com reformas a preços acessíveis para a população de baixa renda. De reformas fomos parar no surfe. Não tem planejamento que resista a um dia naquelas praias

Da esquerda para a direita: Gabriel, Rômulo e Gerson, idealizadores do projeto Lwandi Surf.

Chegamos em Maputo, capital de Moçambique, no dia 14 de abril de 2019. Na chegada, basicamente você está em São Paulo (respeitando suas respectivas proporções). Conhecemos o centro e a parte mais chique da cidade passeando de carro.

“Mas a África não é miséria, pessoas desnutridas e leões correndo atrás de zebras?” É o que muita gente pensa. E também um pouco do que eu pensava. Olha o estereótipo aí!

Já quebrei muitos deles desde que cheguei. Começando pela mania que temos de generalizar a África como se fosse um único lugar. Os países são extremamente diferentes internamente. Em Moçambique, por exemplo, existem aproximadamente 15 línguas nativas. Imagine a diferença dentro da grande África.

Antes de partir, conhecemos um moçambicano numa plataforma de couchsurfing. Manuel Lélio Gungulo nos ajudou com o visto de trabalho e nos acolheu durante os quatro primeiros meses. Pessoa fantástica e que já consideramos da família, ele é um empreendedor social e fundou a Susamati, empresa que trabalha com saneamento básico. A Susamati fabrica vasos sanitários de concreto (aqui em Moçambique, chamam de “pias”) a baixo custo que são conectados diretamente à fossa séptica da casa.

A partir dos nosso know-how, padronizamos a produção dos vasos sanitários, mudamos a fórmula do concreto e reduzimos em dez vezes o custo de produção deles. Aprendemos que com um pouco de conhecimento já se pode fazer uma diferença gigante

Com o passar do tempo, entretanto, Maputo ficou sufocante. Foram quatro meses vivendo na capital, com aquele estresse diário do transporte público e abordagens constantes da polícia, que é extremamente corrupta e sempre tenta tirar dinheiro dos estrangeiros. Havia mais a ser descoberto, sentíamos que faltava algo. Não estávamos tocando um projeto nosso como era o plano original.

Era hora de nos mudarmos e de criar algo novo. Decidimos conhecer o pequeno paraíso chamado Ponta do Ouro, que fica a duas horas de carro da capital e a cinco minutos da fronteira com a África do Sul. Para quem conhece o sul do Brasil, é como se fosse uma mini Garopaba.

Fomos com a intenção de surfar as boas ondas que Ponta do Ouro possui e percebemos que todos os surfistas, incluindo os de kite surf, eram sul-africanos. Então nos perguntamos: onde os locais estão surfando? Onde estão os jovens?

Educação e esporte sempre foram um interesse comum entre nós três. Depois de um formulário preenchido para a Waves for Change, ONG de surftherapy que nasceu nos arredores de Cape Town, na África do Sul, essas áreas se tornaram o nosso dia a dia. A vivência como voluntários da W4C nos inspirou a criar o Lwandi Surf .

“Lwandi” é uma palavra do idioma local, o changana, que significa “oceano” ou “mar”. Nossa ideia com o projeto era ir mais adiante nas aulas esportivas, oferecendo o conceito da terapia do surfe, além de yoga, acompanhamento escolar (inspirados no filme Coach Carter) e rodas de conversa para debatermos assuntos importantes para a vida.

Não era apenas uma mistura de esporte e educação. Queríamos trabalhar a saúde física e mental, talvez até espiritual, dos participantes.

Rapidamente planejamos a mudança e uma campanha de crowdfunding no Kickante para adquirir os equipamentos iniciais. Em pouco tempo, colocamos a campanha no ar e conseguimos captar pouco mais 8 mil reais dos 10 mil reais que colocamos como meta.

O pontapé do projeto, em agosto de 2019, foi o mapeamento da comunidade ao nosso redor. Descobrimos as carências e como a cidade funcionava: o que os jovens faziam no tempo livre, quantas e onde estão as escolas, quantos adolescentes estão nas ruas e como é o envolvimento com o álcool e outras drogas.

Dentre muitos debates e dúvidas sobre quem selecionar para o projeto, decidimos trabalhar com crianças e adolescentes na faixa de 11 a 17 anos e que estejam frequentando a escola.

Numa bela tarde, conhecemos um time de futebol da cidade. Estavam lá os nossos jovens querendo fazer o gol da vitória, mas também interessados em aprender a surfar

Além de aprender a surfar, os jovens do projeto Lwandi participam de rodas de conversa, aulas de inglês, reforço escolar e yoga.

Iríamos começar com 15 adolescentes, cinco para cada mentor. Fechamos as atividades de 2019 com 25. Já era de se esperar. Depois de convidar os primeiros quinze, cada um convidou pelo menos um amigo e assim a mensagem foi se espalhando.

Caminhando pela rua, vimos muitos jovens vendendo coisas, de bananas a pulseiras, e procuramos entender melhor a vida deles. Difícil não se comover com as histórias. Muitos eram menores de idade, distantes da família e já não frequentavam mais a escola.

Criamos a obrigação de atender pelo menos cinco meninos que vivem em condições de rua nesta primeira turma. Dentre os 30 com os quais atuamos hoje, cinco trabalham vendendo na rua para ajudar na renda familiar e outros cinco vivem nas condições que falei acima, frequentando um colégio.

Em 5 de outubro foi a inauguração oficial do projeto. No fim das contas, o surfe é um grande imã para puxar esses jovens e trabalhar inúmeros outros assuntos com eles.

Somos privilegiados por receber um dos sorrisos mais sinceros e bonitos. O sorriso da primeira onda, sempre voltado para o mentor, seguido de muita comemoração por todos do grupo. E a yoga? Eles adoram!

Por ser uma cidade turística, focamos inicialmente na parte de acompanhamento escolar com aulas de inglês duas vezes na semana (se fosse por eles, seriam todos os dias). Mas diferente da faculdade. Ou seja, aulas divertidas — sem essa de professores emburrados por aqui.

Muita coisa mudou desde o planejamento estratégico feito no Brasil, mas uma coisa ainda permanece: ficar cinco anos morando aqui. Tempo suficiente para impactar e formar muitos jovens, estabilizar o projeto e gerar empregos. Depois, a ideia é deixar o Lwandi Surf para os moçambicanos cuidarem. Sempre foi esse o objetivo

Claro, nem tudo são flores. Como sempre, o visto foi uma dor de cabeça gigante e estamos começando os processos legais para criar a nossa ONG. A burocracia aqui é ainda maior do que no Brasil. E o financeiro? Apesar de termos guardado um dinheiro no Brasil, ainda vivemos com ajuda de nossas famílias — nossos principais investidores, como costumamos falar –, além de alguns projetos de engenharia que normalmente ficam com o nosso “crânio”, o Gerson.

Fora o dinheiro adquirido com o crowdfunding, também estamos recebendo um suporte de uma incubadora de projetos sociais de São Paulo chamada Baleia Solidária. Outro parceiro importante é a empresa de intercâmbios sociais Exchange do Bem. A partir deste mês, receberemos voluntários do Brasil para trabalhar conosco entre duas semanas a três meses.

Como formas de geração de renda no projeto, temos muitas ideias a serem desenvolvidas, de marca de roupa até pranchas ecofriendly. Certamente criaremos coisas novas pela frente.

O que esperamos do Lwandi? Colocar esses jovens dentro de faculdades e/ou no mercado de trabalho. E quem sabe, no futuro, formar atletas profissionais para o país

Sonhos nossos e deles que precisam ser trabalhados. Lembro de perguntar para um garoto quais eram os seus sonhos — e ele não soube responder. Precisamos reensinar esses jovens a sonhar, porque, até então, a vida não lhes permitiu. Precisamos ajudá-los a surfar a onda da vida!

 

Rômulo de Lima de Oliveira, 24 anos, natural de Campo Grande, é formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Maria. Apaixonado pela área da Educação e pelo desafio de sua mudança, ele é cofundador da iniciativa Roda Escola e um dos idealizadores do projeto Lwandi Surf, em Ponta do Ouro, Moçambique.

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